quarta-feira, 29 de maio de 2024

antropologia e antropogenia: passagem do finito ao infinito

na antropogenia, a fundação do humano é inscrita numa genealogia da natureza: desde o ser mais ínfimo até o mais complexo existiria uma cadeia cuja duração culmina no aparecimento de nossa espécie.

as relações entre origem e originado, contudo, são imprecisas: é o ser humano regido pelos seus princípios elementares da biologia, que remetem e repetem indefinidamente a origem - como no esquema de haeckel em que a ontogenia repete a filogenia - ou sua constituição excepcional de ser intelectual, dotado de linguagem, razão, ou qualquer outro atributo especial, super-animal, fundou, neste ramo da árvore da vida, uma dimensão que escapa às leis naturais, isto é, a antropologia?¹ 

vejamos a lei do positivismo conforme formulada por littré para pensarmos essa tensão entre antropogenia e antropologia, ou ainda, entre o retorno da origem no originado e a ultrapassagem daquela por este: a física, explica o ilustre discípulo de comte, determina a química que determina a biologia que determina a sociologia. a pergunta sobre a excepcionalidade humana é um questionamento a respeito do mecanicismo explicitado pela sequência em que a ciência positiva subordinaria o conhecimento da humanidade ao conhecimento natural; por outro lado, as ciências do espírito ou da vida, conforme a formulação de dilthey, questionaria como que o humano, se não obstante faz parte da e se constitui na natureza, escaparia a série de leis e estudos desenvolvidos nos últimos séculos para analisá-la (física, química, biologia...). 

é menos uma questão ontológica, talvez, do que epistemológica: se a natureza implica em uma definição da vida (humana) a partir dos princípios estabelecidos por tais campos do saber, a antropologia, especialmente a partir do fundamento do conceito de cultura, re-abreria o que estava definido desde seu princípio, desfazendo a subordinação do conhecimento do homem às ciências da natureza. 

é uma relação delicada, que os cientistas sociais do início do século XX tratam a partir das relações entre os princípios de raça - que seria a expressão do natural no social - e os de cultura - que representaria a infinidade e plasticidade humana diante dos limites postos pela lei da natureza -. do finito da natureza ao infinito da vida (humana), portanto.

a sugestão de lévi-strauss, ao desconsiderar as determinações raciais sobre as culturais, contudo, como que inverte os termos da equação: o ser humano, por sua natureza, seria infinitamente plástico: é a sua cultura que lhe faz vir a ser alguma coisa. a cultura então se torna o lugar de formação, em que o infinito potencial - seu "corpo sem órgãos" - é estrangulado, constrangido, dentro de uma extensão e temporalidade definida pela vida social. nessa dimensão de reflexão, nessa passagem afuniladora - "do cru ao cozido" -, que a antropologia irá se desenvolver menos como ciência da natureza do que uma ciência, não do anti-natural, mas do sobre-natural. enlace ambíguo, que trata de uma consciência de dominar e fazer-se exceção ao natural, ao mesmo tempo que, em um lugar incerto, saber-se regido por seu jogo.


NOTAS DE RODAPÉ

¹ No fim do século XIX e início do XX o conceito de "antropologia" era empregado para se referir ao estudo das origens antropogênicas e dos diferentes caracteres raciais engendrados por meio da hitória natural. Aqui, no entanto, proponho uma distinção entre antropologia e antropogenia para demarcar com clareza a distância que os estudos sociais e humanísticos - as ciências da vida e do espírito - produziram, ao longo do último século, das ciências naturais. Desta deriva conceitual, que re-mapeou a geografia do saber do humano, me parece ter se constituído a atual disciplina antropológica.

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