domingo, 21 de abril de 2024

ARREBOL QUADRADO #12: DA QUINTA CATEGORIA

 

O domingo de sol entediava a Azevedo Diniz. Tentava ler a Crítica da Razão Pura, famoso livro de Emanuel Kant, na edição traduzida apressadamente pelo filólogo português Ramos de Mereja e emprestada por um amigo, Kou McLana, que havia recém-chegado de Porto após uns negócios pessoais bem-sucedidos. (McLana era traficante de haxixe marroquino; Porto era um importante entreposto comercial para onde o entorpecente seguia antes de ser distribuído por toda a Europa; graças a McLana, filantrópico estrangeiro em missão de modernizar o Brasil, o produto marroquino passaria a chegar até os burgueses dos trópicos). 

Azevedo Diniz tentava compreender a quádrupla divisão dos juízos kantianos, tão arbitrária, pensava, quanto as das enciclopédias chinesas. Era como o caso do pré-socrático Zenão, em que Aquiles corre para sempre atrás da tartaruga, ou ainda, dos números trans-infinitos: entre 0 e 1 existeria o mesmo intervalo entre 0 e 1000. Qualquer reta poderia ser dividida um número infinito de vezes. Por que então as categorias do entendimento se repartiriam assim, tão raquiticamente, em modestas quatro partes: juízos de quantidade, de qualidade, de relação e de modalidade? Diante da natureza infinita do universo, era até mesmo humilhante que nosso entendimento fosse limitado a número tão ínfimo.

Dia e noite passou Azevedo Diniz pensando nisso. Foi enquanto ia para o batizado de um afilhado seu que ocorreu o caso: no canto direito do coche velho que viajava, caído no chão, Azevedo Diniz encontrou a quinta categoria. Abriu a boca, incapaz de acreditar no que via, mas não havia erro: era mesmo a quinta categoria transcendental do entendimento. Tomou-a para si e, desnorteado, por um ímpeto de honestidade irrefletido de que de imediato se arrependeu, gritou para que o cocheiro parasse. O trabalhador freiou os cavalos e voltou-se para o embaraçado Azevedo Diniz, que não sabia o que fazer com a quinta categoria.

- Cavalheiro, perguntou Azevedo Diniz, tentando esconder a ansiedade, isso - e mostrou a quinta categoria - por acaso pertence ao senhor?

O cocheiro, homem simples chamado Ezequiel Palacios, imigrado do Paraguai depois da guerra, assim como Azevedo Diniz torcia para que ocorresse, sequer compreendeu o que tinha diante da vista, e fez pouco caso da quinta categoria.

- Não, senhor, respondeu, e passou a considerar de algum passageiro ter esquecido. Azevedo Diniz arregalou os olhos, aterrorizado com a possibilidade de perder a quinta categoria, e passou a inventar qualquer desculpa.

- Ah, acho que é meu mesmo, fui eu quem deixou cair, que distraído!, disse Azevedo Diniz, sorrindo de nervoso, e meteu a quinta categoria no bolso da casaca. Ezequiel Palacios não deu a mínima para a questão, simplesmente queria completar a viagem e receber o pagamento. Seguiram então adiante.

Enquanto Azevedo Diniz derramava a água na cabeça enorme de seu afilhado, um menino chamado de Marcinho Taquara, não pensava em outra coisa fora nas filosofias que poderiam ser escritas com aquela quinta categoria que sentia pesada no bolso. 

Terminada a cerimônia, inventou qualquer desculpa para sair o mais breve possível da festa. Quando chegou em casa, já tinha metade de um ensaio na cabeça. Bastou que colocasse no papel. Quando releu o resultado, viu que não fazia justiça ao que ideava, mas também que não estava mal. Demorou ainda alguns dias a retocar o rascunho, e antes do final do mês conseguiu a publicação em jornal prestigioso, de nome “A Coruja Carioca” graças a uma recente amizade com Coelho Neto, o poeta que todos devem conhecer. 

Havia feito tudo mais por prazer intelectual do que por esperanças de recompensa. Sabia que nessa terra a filosofia era conto de fada para uns seis ou sete adultos cultos se baterem por jogos de decifração e raciocínio; sabia também que nessas histórias para meninos grandes, as que mais vendiam eram as que concordavam com os grandes doutores, e não aquelas como as de Azevedo Diniz, que entravam de sola no que pregava o cânone. Além do mais, o que seriam as palavras de Azevedo Diniz contra a do grandioso Emanuel Kant? Menos que nada, sabia muito bem. 

Mas que surpresa agradável teve quando um jovem polímata francês de cabelos escuros ondulados e pele pálida como cera de nome Pierre Jean Ettiené, entrou em cena com um artigo elogioso sobre o ensaio de Azevedo Diniz. 

Pierre Jean Ettiené era formado em filosofia na prestigiosa escola de Sorbonne, e gostava de enunciar essa efeméride biográfica casualmente, como se não fosse proposital, em jantares e passeios mais diversos. Não era exatamente estúpido, mas não abdicou de suas boas relações para ser admitido como professor de filosofia no liceu de Nice. 

Estava preparando sua dissertação sobre a metafísica dos tupinambás brasileiros a partir de documentações de viajantes protestantes. Sua hipótese era que a mentalidade selvagem não seria simplesmente inadequada para o pensamento abstrato, mas que sua mitologia poderia ser entendida como formulação, em nível de intuições empíricas, da realidade transcendental. "Como se houvesse um sistema de tradução entre os mitos dos índios e a mais refinada metafísica de nossa civilização", explicou em artigo de jornal publicado tão logo chegou ao Brasil, em viagem patrocinada pelo Museu Nacional e pela Sorbonne. 

Jean Pierre Etienné aprendia o português com certa velocidade, e embora precisasse do auxílio do dicionário português-francês, conseguiu ler e compreender a revolução proposta por Azevedo Diniz. Se naquela aldeia intelectual o ensaio podia passar ileso, sem qualquer repercução fora comentários formais em mesas de jantares, uma mente como aquela de Jean Pierre Etienné, educada em toda a tradição metafísica europeia, jamais poderia deixar passar em branco a descoberta da quinta categoria transcendental do entendimento. 

Encontrou rapidamente o endereço de Azevedo Diniz e enviou uma carta solicitando um encontro. Naturalmente, pediu que levasse a quinta categoria. Quando Jean Pierre Etienne viu-a de perto, não conteve as lágrimas. Ofereceu uma gorda quantia, e como Azevedo Diniz estava sem dinheiro, não teve remédio fora pedir um preço ainda mais elevado e assim vender a quinta categoria ao francês.

Pouco depois foi publicado n'"A marmota filosófica" um ensaio de Jean Pierre Etienné especulando sobre o que seria da filosofia depois que a quinta categoria fosse estudada e compreendida em toda sua complexidade. No mês seguinte, o primeiro artigo sobre o assunto apareceu em Paris. A comunidade intelectual do mundo inteiro passou então a conhecer o nome de Jean Pierre Etienné. Quando publicou sua tese, no ano seguinte, o francês já era reconhecido como um dos maiores filósofos do mundo, e a quinta categoria do entendimento já era parte da história universal do conhecimento.

Poucos sabem, no entanto, que essa história começou assim, numa mundana carruagem em que Azevedo Diniz viajava. Façamos justiça a Jean Paul Ettiené, que mencionou, em uma rodapé da página 476 do seu segundo livro, Estruturas Elementares do Entendimento, o nome e o ensaio do brasileiro como um dos precursores no estudo da quinta categoria. Seja lá quais forem os motivos da Providência, mesmo com tal menção, Azevedo Diniz não foi capaz de adquirir qualquer notoriedade internacional. No seu país, alguns amigos lhe parabenizaram com afinco pela menção, mas foi só .

Sua curta carreira de filósofo durou ainda mais alguns ensaiozinhos, escritos em prosa confusa, que alguns leitores especializados elogiaram, mas sempre com alguma ressalva. Ele então se entediou do assunto e voltou a escrever poesia.

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