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sexta-feira, 18 de abril de 2025

sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1.

o que a teoria marxista-comunista deseja?

pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formulá-las em um nível superior. sohn-rethel trata o socialismo como o início de uma gestão racional da vida social, a superação de uma fase que, nos termos dele, seria ainda da natureza. desde uma perspectiva que considero a mais correta, o fim das classes e da propriedade privada seria menos o fim de uma fase natural pré-histórica do que o fim de uma época: a época da forma-mercadoria.

no nível teórico, o marxismo é uma ciência da história, no sentido de que somente pode compreender a estrutura atual como resultado de uma história das forças produtivas. mas, como li esses dias no giannotti, existe uma diferença entre a história necessária para a operação capitalista, e a operação em si mesma (por exemplo, o feudalismo é parte da história do capitalismo, mas o feudalismo não se refere à lógica de reprodução autônoma do capitalismo); por isso, me parece possível afirmar que o marxismo, enquanto uma disciplina nascida em uma sociedade capitalista, somente pode vir a ser a partir de suas condições materiais de acúmulo e expansão, que o capital trata como se fosse infinita.


2.
 
a questão das sociedades arcaicas ou primitivas nos coloca, e que tentarei responder desde o ponto de vista marxista: existia história em sociedades arcaicas e sem classes? creio que sim, muito embora o seu desenvolvimento não seja como nas sociedades de classe, que no caso do capitalismo, basea-se no progresso da divisão do trabalho e acúmulo do capital privado.

lévi-strauss coloca um pouco dessa ideia no seu pensamento selvagem: não é que as sociedades frias não tenham história, mas elas vivem em uma temporalidade diferente: o devir existe, mas de uma forma diversa. isso se relaciona com uma percepção culturalista e historicista (talvez essas ideias possa ser remetida a franz boas) em que o tempo não se dá como uma constante universal: as formas de vivenciar e processar os efeitos da temporalidade são sociais e, portanto, variam conforme cada sociedade.

sobre o conceito de "povos sem história", ou seja, povos que existiriam como que fora do tempo, em que o devir entra por um ouvido e sai pelo outro, lévi-straus procurará sair de tal negatividade entre sociedades originais, isto é, que estão em estado de natureza, e sociedades desenvolvidas, capazes de acumular na sua forma a passagem do tempo, na distinção entre sociedades frias e sociedades quentes: "umas procurando, graças às instituições que se dão, anular, de forma quase automática, o efeito que os fatores históricos poderiam ter sobre seu equilíbrio e sua continuidade; as outras, interiorizando resolutamente o movimento progressivo histórico, para dele fazer o motor de seu desenvolvimento" (p.268)

como eu leio essa distinção? de um lado, temos sociedades arquivísticas, que continuamente registram e acumulam bancos de dados; do outro, temos sociedades mitológicas, que continuamente rejeitam a necessidade tão imperiosa e civilizada de acúmulo: por meio do sistema mitológico, elas ao mesmo tempo (1) esquecem os acontecimentos ao revolvê-los a um significado mítico e (2) reescrevem, sob os mesmos signos, uma série de novas informações.

desde um ponto de vista marxista, e portanto, materialista, a distinção entre sociedades frias e quentes remete a procedimentos de estocagem de informações. lévi-strauss demonstra como o mito, ao contrário dos teóricos da a-historicidade das sociedades frias, pode sim guardar informação, mas que esse é um arquivamento barato, adequado a baixa produtividade de tais sociedades: elas não tem arquivos civilizados, eles não tem historiadores, ele não tem escritores; tudo que usam são signos, transmitidos oralmente, de uma geração para outra, pelo sistema parental. para registrar e ordenar os acontecimentos, não produzem caracteres sobre papéis: usam a natureza vegetal, animal e geológica; o que se rejeita, portanto, não é a temporalidade, mas sim os dispositivos materiais (as tecnologias) que as sociedades civilizadas incessantemente produzem para continuamente arquivar as novas informações.

perceba que os arquivos naturais (flores, animais, céus e montanhas) são também sistemas de significantes. neles, se escreve a história universal dos selvagens. essa matéria, que empregam para a escrita, é acumulada historicamente no tempo natural ou telúrico do desenvolvimento da terra, um ritmo que certamente se afeta desde as trocas metabólicas feitas entre natureza e homem (os selvagens, por exemplo, selecionam as espécies vegetais e animais que lhe são benéficas), mas que, mesmo para produzir culturas humanas, seguia esse tempo de reprodução da natureza, um tempo muito diverso das sociedades baseadas na troca de mercadoria e produção industrial. (lévi-straus demonstra, no entanto, que também empregam artefatos e engenhos humanos, mas para todos efeitos, esses objetos não descrevem o movimento acumulador das sociedades quentes: a produção de database, nas sociedades frias, é lenta e avessa a expansão).

o mito, erguido sobre uma base material muito limitada, terá, naturalmente, pouco espaço para a escrituração. o mito, portanto, é um banco de dados curto, que precisa ser reescrito continuamente. na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma: as sociedades frias "não tem história" porque, por conta dessa limitação material, não acumulam continuamente os resíduos e informações: o tempo para elas não é um inchaço progressivo, como é nas nossas, mas um contínuo apagar e criar, organizado desde um sistema geracionalmente transmitidos.

portanto, lévi-strauss planeja sair do dualismo entre sociedade com história e sem história mostrando que (1) o devir do tempo existe para toda forma de vida; todos estamos submetidos a esse fluxo que destrói e renova; isso quer dizer que as sociedades frias, tal quais as quentes, de fato processam o tempo: eles só acumulam muito pouco, eles somente não expandem as bases arquivísticas: a mantém dentro de um limite material característico. na verdade, as sociedades frias ativamente rejeitam esse sentido imperativo da história universal, europeia e capitalista baseado no acúmulo e expansão infinito. são sociedades fundamentalmente da finitude; tal penúria de arquivos podemos explicar pela baixa produtividade das sociedades frias: quanto mais matéria existe no mundo, mais necessidade de trabalho para produzi-la. conclui-se ainda que, portanto, (2) o que chamamos de "história" é na verdade uma prática disciplinar, baseada na expansão e acúmulo de dados e arquivos, e somente possível em determinada fase histórica da produção material.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

antropologia e antropogenia: passagem do finito ao infinito

na antropogenia, a fundação do humano é inscrita numa genealogia da natureza: desde o ser mais ínfimo até o mais complexo existiria uma cadeia cuja duração culmina no aparecimento de nossa espécie.

as relações entre origem e originado, contudo, são imprecisas: é o ser humano regido pelos seus princípios elementares da biologia, que remetem e repetem indefinidamente a origem - como no esquema de haeckel em que a ontogenia repete a filogenia - ou sua constituição excepcional de ser intelectual, dotado de linguagem, razão, ou qualquer outro atributo especial, super-animal, fundou, neste ramo da árvore da vida, uma dimensão que escapa às leis naturais, isto é, a antropologia?¹ 

vejamos a lei do positivismo conforme formulada por littré para pensarmos essa tensão entre antropogenia e antropologia, ou ainda, entre o retorno da origem no originado e a ultrapassagem daquela por este: a física, explica o ilustre discípulo de comte, determina a química que determina a biologia que determina a sociologia. a pergunta sobre a excepcionalidade humana é um questionamento a respeito do mecanicismo explicitado pela sequência em que a ciência positiva subordinaria o conhecimento da humanidade ao conhecimento natural; por outro lado, as ciências do espírito ou da vida, conforme a formulação de dilthey, questionaria como que o humano, se não obstante faz parte da e se constitui na natureza, escaparia a série de leis e estudos desenvolvidos nos últimos séculos para analisá-la (física, química, biologia...). 

é menos uma questão ontológica, talvez, do que epistemológica: se a natureza implica em uma definição da vida (humana) a partir dos princípios estabelecidos por tais campos do saber, a antropologia, especialmente a partir do fundamento do conceito de cultura, re-abreria o que estava definido desde seu princípio, desfazendo a subordinação do conhecimento do homem às ciências da natureza. 

é uma relação delicada, que os cientistas sociais do início do século XX tratam a partir das relações entre os princípios de raça - que seria a expressão do natural no social - e os de cultura - que representaria a infinidade e plasticidade humana diante dos limites postos pela lei da natureza -. do finito da natureza ao infinito da vida (humana), portanto.

a sugestão de lévi-strauss, ao desconsiderar as determinações raciais sobre as culturais, contudo, como que inverte os termos da equação: o ser humano, por sua natureza, seria infinitamente plástico: é a sua cultura que lhe faz vir a ser alguma coisa. a cultura então se torna o lugar de formação, em que o infinito potencial - seu "corpo sem órgãos" - é estrangulado, constrangido, dentro de uma extensão e temporalidade definida pela vida social. nessa dimensão de reflexão, nessa passagem afuniladora - "do cru ao cozido" -, que a antropologia irá se desenvolver menos como ciência da natureza do que uma ciência, não do anti-natural, mas do sobre-natural. enlace ambíguo, que trata de uma consciência de dominar e fazer-se exceção ao natural, ao mesmo tempo que, em um lugar incerto, saber-se regido por seu jogo.


NOTAS DE RODAPÉ

¹ No fim do século XIX e início do XX o conceito de "antropologia" era empregado para se referir ao estudo das origens antropogênicas e dos diferentes caracteres raciais engendrados por meio da hitória natural. Aqui, no entanto, proponho uma distinção entre antropologia e antropogenia para demarcar com clareza a distância que os estudos sociais e humanísticos - as ciências da vida e do espírito - produziram, ao longo do último século, das ciências naturais. Desta deriva conceitual, que re-mapeou a geografia do saber do humano, me parece ter se constituído a atual disciplina antropológica.

domingo, 11 de junho de 2023

naturalismo e antropologia: lévi-strauss como paradigma da separarão

  Em um mesmo parágrafo fizemos uso do termo naturalismo que sugere dois sentidos distintos para essa única palavra. O primeiro naturalismo por nós escrito seria aquele associado à literatura, à ficção, à língua, à forma, etc. A segunda aparição da palavra, ocasião para que abrisse essa nota de rodapé, se refere ao que hoje se chamaria de biologia; é um naturalismo científico, responsável pelo estudo da anatomia, fisiologia, etc, de vegetais e animais. Há também um terceiro naturalismo; terceiro porque sua existência é dupla, e seu estatuto discursivo elástico. Me refiro ao naturalismo dos viajantes, aos diários, relatos de viagens e demais gêneros por eles produzidos. Essa separação entre literário e científico, no entanto, embora pertinente em relação à organização, controle e estabilização dos enunciados, se dentro de uma perspectiva da escritura, da disseminação da língua, percebemos séries de vazamentos e contaminações entre um e outro. Os naturalistas e seus estudos fisiológicos e anatômicos de plantas e animais, colocados a partir de uma história natural e/ou da da evolução, faz com que o estudo seja somente um ramo específico dessa ancestral genealogia em que todos os seres vivos são desdobramento de uma mesma força ou lei; desde os primordiais moneras, até o fantástico desabrochar da inteligência humana, atuaria o mesmo princípio, cujo protótipo mais disseminado foi a seleção natural de Charles Darwin. A história natural, portanto, é o desdobramento de leis da natureza; da interação entre organismo e meio; de sua concorrência e associação com os demais; e se sobrevivem aqueles mais aptos, e se são herdadas as características mais vantajosas, é portanto destino provado cientificamente que a natureza impõe aos seres vivos a adaptação e/ou o aperfeiçoamento e/ou progresso. A antropologia do século XIX surge como um ramo dessa história natural cujo intuito seria buscar, a partir das coordenadas oferecidas por diversos a prioris extraídos das leis naturais, as particulares do desenvolvimento humano no tempo, especialmente a partir da perspectiva de que este desenvolvimento deveria se expressar na forma de aperfeiçoamento das faculdades humanas - a razão, a política e a beleza, para repetirmos a tríada kantiana, são dimensões em que separa-se os humanos dos demais animais e seres vivos. Muita dessa antropologia, em contraste com o que se caracterizou enquanto etnografias, não por acaso era de caráter especulativo; seu objeto de estudo, afinal, não eram grupos ou comunidades humanas específicas, mas acontecimentos enterrados e apagados pelos milhares anos de história: Como do macaco se desenvolveu o homem? Qual seria afinal a origem da razão? Como passaram de bandos desarticulados e sem leis para sociedades dotadas de moralidade e organizada por preceitos públicos? Em que circunstância passou o ser humano a falar, comunicar e representar o mundo e os acontecimentos nessa forma tão arrojada que a língua permite? Percebam que essas perguntas não se tratam exatamente de encontrar princípios explicativos ou teóricos, porque esses já estavam dados; embora hajam divergências aqui e acolá, o princípio de tudo repousa naquilo que é a lei da natureza: a escassez, a superação do mais apto e o falecimento dos fracos, a herança das aptidões e gradual desaparecimento dos defeitos, etc. O que se tratava para estes antropólogos não era desvendar as leis da natureza; essa afinal já estava dada. O que a antropologia especulativa fazia era antes uma tentativa de estender as leis da evolução e os estudos naturalistas ao seu limite, até o ponto em que sairíamos das leis naturais e teríamos que passar a pensar em leis humanas; ainda que essas leis humanas partissem da analogia entre a evolução humana e a evolução natural, ao colocarem essa linha divisória entre o macaco e o homem - razão, ética, língua - de maneira críptica se abria a brecha por onde os antropólogos do século seguinte fundaram um campo totalmente autônomo, separando a antropologia dos métodos e teorias naturalistas por meio da aproximação de outros saberes. Embora saibamos da artificialidade dos paradigmas e origens, é difícil não mencionar o livro Estruturas elementares do parentesco, publicado em 1949 sob o nome de Claude Lévi-Strauss, não somente por propor um gênero de antropologia que se disseminou não só por dentro da disciplina antropológica, mas para outros campos discursivos. Talvez a antropologia cultural de Franz Boas pudesse ser um mito de origem mais adequado para tratar da cisão entre os estudos antropológicos e as leis naturais, é verdade, já que estabelece a primazia da cultura sobre o meio e a raça. Sem negar a importância de Boas para os estudos antropológicos, mas parte considerável do poder cifrado em Estruturas elementares do parentesco foi ter estabelecido a distinção entre natureza e cultura com a mesma força sistemática que caracterizava as teorias e filosofias da natureza. Quando Lévi-Strauss demarca a fronteira entre natureza e cultura por meio da capacidade humana de controlar, operacionalizar, distorcer, artificializar, organizar, e enfim, dar sentido diverso para aquilo que é o fim último da lei da natureza, a reprodução, transforma o que era fundamento e intuito da história natural em instrumento para a realização de coisas alheias ao mundo animal; muito especialmente, no Estruturas elementares do parentesco, a reprodução, o controle socialmente disposto sobre ela, faz com que a natureza, a reprodução da espécie, fosse, primeiro, um instrumento de política, que desenha redes de alianças e inimigos, mas segundo, e esse é o grande salto proposto, a reprodução da espécie, por meio da troca matrimonial, passa a atender não à lei da seleção natural, à reprodução dos caracteres mais fortes, mas sim à reprodução da sociedade, reprodução de suas estruturas. Não se herda ou não se interessa mais com a herança genética, com as aptidões passadas de pai para filho; Lévi-Strauss leva as ciências sociais para pensar na reprodução e nascimento como herança de um nomos, uma comunidade e modo de viver anterior ao nascimento da criança, e tão logo esteja nascida, tão logo será posta para participar de tal nomos, de modo tão intenso e alienante que a sociedade passa a adquirir as feições de natureza; a cultura é naturalizada. Somente à guisa de conclusão, ainda sobre Franz Boas, importante destacar que muito embora tivesse proposto a cultura como esse espaço teórico capaz de separar a antropologia do naturalismo, sua postura diante dos conceitos que canalizavam a filosofia e história natural dentro da antropologia, com a raça, o meio, é quase sempre o de ceticismo: embora preconize o estudo da cultura como método mais adequado para se conhecer uma sociedade, e que rejeite a hipótese evolucionista da superioridade entre povos e/ou raças, o ponto de Boas não passa por abolir a importância dos estudos biológicos, a genética e fisionomia, como saberes da disciplina antropológica; Boas, antes de mais nada, pretende declarar cientificamente infundadas as teorias de que a psicologia de uma pessoa possa ser explicada por sua origem genética, preferindo pensar na questão das patologias sociais como oriundas de causas estritamente sociais. 


o principal modelo de Lévi-Strauss, pelo que parece 


se destaca por definir de forma positiva a separação e distinção 

transpor esse arsenal linguístico e conceitual para um gênero, se não de historiografia especulativa, que dema o desenvolvimento da raça e/ou culturas e/ou civilizações, surge como símile da história natura uma história progressiva e violenta cujo modelo mais proeminente foi a seleção natural de Darwin


segunda-feira, 22 de maio de 2023

O QUE É A BIBLIOGRAFIA: atomismo do espírito; ou porque acredito em mitos

Aproxima-se, diante do púlpito, uma mulher de nome indefinido, mas que declara ao microfone seu "ceticismo, e também, inevitável pelas constantes leituras que fiz de Machado durante um mestrado, não soar irônica em meu pessimismo".

Declara também que somente encontrou em tal ocasião "brecha para se expressar, mesmo que não saiba o motivo da expressão", e pediu ao público do congresso que desculpasse qualquer "salto argumentativo [...] porque estava bêbada [...] depois de dois copos de uísque" e que também havia o "rivotril" que disse beber como "passarinho que avoa até bebedouro posto em janela de apartamento miserável".

O que disse em sequência foi o seguinte:

Este enorme edifício que os senhores acadêmicos planejam, este largo empreendimento ficcional que fazem aqui, reunidos de modo tão teatral quanto deputados em câmeras de deputadas... Não, não falo contra os senhores, nem contra seus ofícios, nem mesmo contra a fictícia torre... Ela, afinal, que orienta não apenas os escritos que escrevem aqueles que em sua construção desejam se iniciar..."

(Neste ponto apontou para mim, que defendia minha tese de doutorado)

"Este pobre rapaz, coitado, não falo assim por pena, somente para indicar que a operação que realizou durante alguns anos, e que lhe deve ter ocupado os nervos e as paixões, não importa para nada, não adiciona nenhum tijolo na imaginária torre que constroem por meio do conhecimento..."

(Me olhou e deu um sorrisinho, que me pareceu simpático, de empatia, mas que talvez também fosse de pena).

"O que o rapaz faz, ao escrever e defender uma tese, ao ser cumprimentado pelo senhor..."

(E indicou o Oswaldo Candido, professor emérito do Departamento de História).

"Quando o senhor cumprimenta o rapaz pelo acréscimo que agora se faz à bibliografia acerca de seu tema de pesquisa... Sinto prazer sádico em dizer, mas também tristeza...)

(Voltou a olhar para mim, e parecia genuinamente triste).

"Isto que se refere como contribuição à grande biblioteca do saber é evidentemente uma contribuição fictícia, mas reconheço, eu não sou estúpida, que é sim contribuição para operações maiores!, que este tijolinho que o rapaz acrescenta no enorme e inexistente edifício, se este tijolinho não representa nada, importa por um motivo diverso do imaginado por vocês, bando de positivistas!" (Fez um gesto amplo que abrangeu o auditório e a banca, e a partir deste momento passou a falar diretamente para aqueles que nela estavam sentados).

"A tese deste pobre diabo, o tijolinho que finge adicionar na torre imaginária que o senhor chamou de bibliografia, vou revelar sua qualidade verdadeira: é somente o produto, o objeto magnético e de capacidades mágicas que nos distrai daquilo que faz a máquina do saber girar... A cadeia de projetos, de bancas, de artigos, de bibliografias... as universidades, as editoras… O motivo do movimento jamais importa: é sempre falso, é sempre ilusório, é sempre fictício. Vivemos na mitologia ou no cruzamento de várias: se o mito é falso, então a verdade, o conhecimento, o saber - o grandioso mito que atravessa séculos sob a forma das mais variadas histórias - se o mito é falso, portanto, a verdade é falsa, e estaríamos em uma contradição que nem ao menos seria necessário o serviço de um lógico para solucionar. A verdade é que o mito é real: que o ilusório é real, que o fictício é real, que o falso é real, e que não importa a verdade do movimento, basta o estar-em-movimento".

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O ÚTERO COMO TECNOLOGIA DE GUERRA (esboço)

a. PROLEGÔMENOS


Em certa altura d’As palavras e as coisas, em glosa àqueles que fazem “história das ideias ou das ciências”, Foucault afirma que desde antes de Darwin, e mesmo antes de Lamarck,



já se pressentem a grande potência criadora da vida, seu inesgotável poder de transformação, sua plasticidade e esse fluxo no qual ela envolve todas as suas produções, inclusive nós mesmos, num tempo de que ninguém é o senhor. Bem antes de Darwin e bem antes de Lamarck, o grande debate do evolucionismo eteria sido aberto pelo Telliamed, a Palingénesie e o Rêve de D’Alembert.



A citação de Foucault, confesso, está empregada de forma um pouco indevida, mas de forma alguma injustificada. Sentado no banco do réu, diante das testemunhas, justifico o delito cometido. Emprego a citação - que na verdade seria mais uma glosa à historiografia das ideias com que o filósofo não cansou de discordar - como uma espécie de quadro negro, em que esquematicamente sintetizo, ou melhor, ilustro gentilmente ao leitor, aquilo que por nós ficou conhecido como evolucionismo, ou ainda, história natural. O uso, contudo, é indevido, porque logo na sequência Foucault indicará seus limites: é sim uma síntese, mas antes uma síntese que prepara uma crítica, ao demonstrar que aquilo que os historiadores classificavam como sucessão de rupturas, guardavam ainda semelhança com as “ideias” que planejavam romper; e aquilo que os historiadores classificavam como manutenção de continuidades, guardavam diferenças com o que se esperava ser homogêneo.

Esta espécie de aporia, Foucault tentará resolver em obra vindoura, o hermético Arqueologia do saber, livro que, antes de tudo, é uma espécie de exercício de ceticismo: de negar e reduzir ao absurdo aquilo que por costume acreditavam tratar de saber. Ultrapassa, contudo, o ceticismo, e busca formular os fundamentos de seu método: trata-se da recusa de  “remeter o discurso à longínqua presença da origem”, e “tratá-lo no jogo da sua instância”. É o que tentará fazer na sequência da citação que transcrevi, não pensar a história das ideias como um jogo de superação/manutenção de uma origem remota (provavelmente, os gregos), mas inscrevê-lo dentro de uma episteme, esta espécie de linguagem que nos permite pensar, ou melhor, para nos mantermos minimamente fiéis às palavras empregadas pelo autor, traçar o chão em que permite o conhecimento de “aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua heterogeneidade”. Não perderemos mais tempo com Foucault, porém, permitamos ao historiador o doce gesto de uma despedida, que reverbere pela última vez sua voz, que faça um último monólogo, antes de desaparecer para sempre, ou antes de pairar sobre o restante do texto como incômodo fantasma:


Até Aldrovandi, a História  era o tecido inextricável e perfeitamente unitário daquilo que se vê das coisas e de todos os signos que foram elas descobertos ou nelas depositados: fazer a história de uma planta ou de um animal era tantodizer quais são seus elementos ou seus órgãos, quanto as semelhanças que se lhe podem encontrar, as virtudes que lhe atribuem, as lendas e as histórias com que se misturou, os brasões onde figura [...] A história de um ser vivo era esse ser mesmo, no interior de toda a rede semântica que o ligava ao mundo. [...] os signos faziam parte das coisas, ao passo que no século XVII eles se tornam modos de representação. [...] Toda a semântica animal ruiu como uma parte morta e inútil. As palavras que eram entrelaçadas ao animal foram desligadas e subtraídas: e o ser vivo, em sua anatomia, em sua forma, em seus costumes, em seu nascimento e em sua morte, aparece como que nu. A história natural encontra seu lugar nessa distância agora aberta entre as coisas e as palavras.


Curioso notar que, na história pessoal de Franz Boas, seja o homem que abandone a família. Na antropologia, centrada, naturalmente, em outras sociedades, costumam situar a mulher como o objeto de troca que sela a relação e aliança entre as famílias.

É também o padrão que Gilberto Freyre atribui para a formação da família brasileira. Não da família que se tornaria patriarcail, burgueses cuja riqueza possibilitou que encenassem aristocratismo português, inclusive no casamento com a branca; Gilberto refere-se principalmente ao aventureiro, os bandeirantes, os criadores de gados, os pequenos profissionais liberais, enfim, a sociedade que se construiu ao redor da expansão da economia açucareira (a ausência de mulheres europeias, aliadas ao gosto do lusitano, principalmente o menos nobre - estes que Gilberto aponta como o grosso da imigração lusitana: não a aristocracia, mas a precoce burguesia mercante - sentiam pela mulher "exótica", isto é, de fora. Para Gilberto, este gosto lusitano, construído pelo contato frequente pelo contato entre diferentes raças - contato geográfico, contato econômico, contato cultural, contato sexual - teria "predisposto" o português não só ao sexo e relação com as ameríndias, mas também facilitado em seu processo de aterramento, ou ainda, conversão aos costumes locais.

O etnógrafo, pelo menos se levarmos em conta a forma com que Tristes Tópicos deseja espelhar-se na viagem de Jean de Léry ao Brasil, parece sentir espécie de nostalgia deste homem aventureiro, que Jean de Léry talvez personifique com enorme dignidade, mas cuja massa deve ser antes lembrada enquanto desterrada por necessidades econômicas. É isto, pelo menos, que Gilberto sugere sobre o início da colonização do Brasil: os enormes lucros dos engenhos começou a atrair uma variedade de imigrantes, não apenas portugueses, mas foram estes que mantiveram controle e monopólio da região. Uma das vantagens que os portugueses tiveram contra os holandeses, sugere Gilberto, foi a melhor integração com os povos não-europeus (e isto, no caso, referia-se também aos africanos, já exportados como escravos para que atendessem a demanda açucareira).

É atribuído pioneirismo para a teoria antropológica de Lévy-Strauss, cujos ilustres estudos estabeleceram o casamento como fronteira entre natureza e cultura (ou ainda, entre animalidade e humanidade).

O casamento, pois, representaria o poder do ser humano de transformar um produto da história natural, um órgão, o útero, o aparelho reprodutor da espécie em uma tecnologia que ultrapassaria além de sua função natural de, segundo as leis da natureza, reproduzir a espécie.

Por meio de seus estudos sobre parentesco, sobre as variadas formas com que se trocavam filhas entre as mais variadas famílias.

A quantidade de árvores genealógicas que Lévi-Strauss empregou em sua pesquisa é impressionante. O antropólogo deve ter de fato gastado muito tempo - não para encontrar a lei, o princípio subjacente a todos os casos, o tabu do incesto, já que o incesto já era um tema de estudo entre os antropólogos - mas quando Lévi-Strauss compreendeu que a família não uma definição positiva - a filiação biológica pai - mãe - filho -.

O grande achado teórico de Lévi-Strauss foi transformar a família como laço biológico em um conceito negativo, não-biológico: explicado não pela descendência biológica simplesmente, mas por um princípio que parecia universal, embora funcionasse de maneiras um tanto variada, dependendo do lugar e espaço, e enfim, da cultura em questão: o tabu do incesto.

É da sua família não sua mãe e pai simplesmente por serem seus progenitores, mas sim aquele quem está marcado pela interdição do incesto, a quem você não pode se casar, talvez nem se relacionar sexualmente... A moral vitoriana de Freud, pelo menos, demonstrou pelo mito de Édipo que o incesto possui consequências desagradáveis...

Não sei quanto tempo Lévi-Strauss demorou-se para deparar com o princípio universal do incesto, e nem para compreender que assim se fundamentava a separação entre quem era e quem não era da família, e que o casamento representava a aliança entre duas partes distintas... O certo é que em seu estudo sobre as relações de parentesco, de 1949, dedica o livro à memória de Lewis W. Morgan, antropólogo americano importante, que já havia desenvolvido importantes estudos sobre as relações de parentesco e os arranjos familiares, muito embora, e isto talvez explique o desprestígio em que caiu sua obra, a lei que procurava era uma que explicasse a sucessão de diferentes arranjos familiares na história - enfim, um antropólogo evolucionista -.

Os estudos de Lévy-Strauss tendem a ser sincrônicos - e com isto não desejo retomar a patética discussão com a diacronia, que simplesmente busca pensar a transformação da estrutura sincrônica em outra - mas sim que tomam seus objetos de estudos, as culturas primitivas, arcaicas, a partir de certo a priori quase a-histórico - ou, melhor dizendo, predica-lhes um desenvolvimento lento, ou pelo menos, mais devagar de transformação.

Não possuo grande desenvoltura para discutir um assunto tão amplo como o conceito de história em Lévy-Strauss e em sociedades primitivas, confosso. O que me parece certo é que poucas vezes seus trabalhos trabalharam com o problema do conflito. O próprio fundamento do casamento, afinal, é a aliança. Uma política como conciliação. Se pensarmos no aspecto funcionalista, que feito fantasma ronda a antropologia durkheimiana, de quem Lévy-Strauss era espécie de herdeiro, o casamento poderia mesmo ser fundamento da própria sociedade, de sua coesão e permanência; a aliança que separaria o ser humano do mítico estado de natureza: a de Hobbes, mas também a de Darwin: a guerra de contra todos.

Gilberto Freyre enxerga com bastante clareza a importância da família dentro da política - para uma política da guerra, seja a mais breve, como a contra os holandeses ou franceses, seja a guerra verdadeiramente longa travada nos tempos colônias, contra os indígenas.

Gilberto Freyre deixa muito claro que a principal arma empregada contra o indígena brasileiro - além da força-bruta, evidente - foi a reprodução biológica, que no caso não implicava na familiarização do pai à família da mãe: as relações de violência, que evidentemente se deram, também eram acompanhadas de outro fator: a fixação do homem à família das mulheres.

O aspecto aventureiro, nômade, a que se atribui a vida dos bandeirantes, e associado aos filhos sem pais, em Gilberto destaca-se como tais meninos eram "adotados" pela Igreja, e que cada padre jesuíta tinha verdadeiro filhinhos: curumins que apadrinhavam, ensinavam os preceitos do catolicismo, e claro, também lhe serviam como tradutores, meio de relação, com o restante da tribo.

O nomadismo das bandeiras em Gilberto Freyre costuma se colocar em oposição aos senhores de engenho: assentavam-se em um mesmo lugar, até porque seu sustento era a cana e o engenho - exige-se o sedentarismo - e junto do sedentarismo associado ao meio de produção, o reforço dos laços de família, aliança e, importante ressaltar, proteção: da natureza hostil, dos indígenas perigosos, e mesmo do rigor jesuíta: dentro da geografia que os engenhos começavam a desenhar a partir do latifúndio de açúcar e a exploração da força escrava, o poder não estava de fato no Del-Rey, nem na Igreja, mas centralizada da casa-grande, que além de detentores dos meios de produção, estavam a um continente de distância da burocracia estatal e episcopal (a local estava, explica Freyre, dentro do controle da casa-grande).

O sucesso da colonização brasileira da América, explica Gilberto em última instância, se deve à precoce burguesia portuguesa, por sua mistura racial, lusitana, semita e moura, já habituados ao contato com o outro seja pela proximidade geográfica seja pela necessidade mercantil. Acrescento um argumento ao de Gilberto: se não eram aristocratas, não precisavam casar-se por conta de sangue. Eram burgueses, mercadores: suas alianças eram feitas, imagino, tendo em vista os negócios.

Euclides da Cunha, em Os sertões, escreveu o seguinte sobre a "força motriz da história": "Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. e durante o curso desse processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem feições definidas, sem vigor, e as mais vezes inviáveis, nada mais são, em última análise, do que os mutilados inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades". (p. 86)

sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...