Em um mesmo parágrafo fizemos uso do termo naturalismo que sugere dois sentidos distintos para essa única palavra. O primeiro naturalismo por nós escrito seria aquele associado à literatura, à ficção, à língua, à forma, etc. A segunda aparição da palavra, ocasião para que abrisse essa nota de rodapé, se refere ao que hoje se chamaria de biologia; é um naturalismo científico, responsável pelo estudo da anatomia, fisiologia, etc, de vegetais e animais. Há também um terceiro naturalismo; terceiro porque sua existência é dupla, e seu estatuto discursivo elástico. Me refiro ao naturalismo dos viajantes, aos diários, relatos de viagens e demais gêneros por eles produzidos. Essa separação entre literário e científico, no entanto, embora pertinente em relação à organização, controle e estabilização dos enunciados, se dentro de uma perspectiva da escritura, da disseminação da língua, percebemos séries de vazamentos e contaminações entre um e outro. Os naturalistas e seus estudos fisiológicos e anatômicos de plantas e animais, colocados a partir de uma história natural e/ou da da evolução, faz com que o estudo seja somente um ramo específico dessa ancestral genealogia em que todos os seres vivos são desdobramento de uma mesma força ou lei; desde os primordiais moneras, até o fantástico desabrochar da inteligência humana, atuaria o mesmo princípio, cujo protótipo mais disseminado foi a seleção natural de Charles Darwin. A história natural, portanto, é o desdobramento de leis da natureza; da interação entre organismo e meio; de sua concorrência e associação com os demais; e se sobrevivem aqueles mais aptos, e se são herdadas as características mais vantajosas, é portanto destino provado cientificamente que a natureza impõe aos seres vivos a adaptação e/ou o aperfeiçoamento e/ou progresso. A antropologia do século XIX surge como um ramo dessa história natural cujo intuito seria buscar, a partir das coordenadas oferecidas por diversos a prioris extraídos das leis naturais, as particulares do desenvolvimento humano no tempo, especialmente a partir da perspectiva de que este desenvolvimento deveria se expressar na forma de aperfeiçoamento das faculdades humanas - a razão, a política e a beleza, para repetirmos a tríada kantiana, são dimensões em que separa-se os humanos dos demais animais e seres vivos. Muita dessa antropologia, em contraste com o que se caracterizou enquanto etnografias, não por acaso era de caráter especulativo; seu objeto de estudo, afinal, não eram grupos ou comunidades humanas específicas, mas acontecimentos enterrados e apagados pelos milhares anos de história: Como do macaco se desenvolveu o homem? Qual seria afinal a origem da razão? Como passaram de bandos desarticulados e sem leis para sociedades dotadas de moralidade e organizada por preceitos públicos? Em que circunstância passou o ser humano a falar, comunicar e representar o mundo e os acontecimentos nessa forma tão arrojada que a língua permite? Percebam que essas perguntas não se tratam exatamente de encontrar princípios explicativos ou teóricos, porque esses já estavam dados; embora hajam divergências aqui e acolá, o princípio de tudo repousa naquilo que é a lei da natureza: a escassez, a superação do mais apto e o falecimento dos fracos, a herança das aptidões e gradual desaparecimento dos defeitos, etc. O que se tratava para estes antropólogos não era desvendar as leis da natureza; essa afinal já estava dada. O que a antropologia especulativa fazia era antes uma tentativa de estender as leis da evolução e os estudos naturalistas ao seu limite, até o ponto em que sairíamos das leis naturais e teríamos que passar a pensar em leis humanas; ainda que essas leis humanas partissem da analogia entre a evolução humana e a evolução natural, ao colocarem essa linha divisória entre o macaco e o homem - razão, ética, língua - de maneira críptica se abria a brecha por onde os antropólogos do século seguinte fundaram um campo totalmente autônomo, separando a antropologia dos métodos e teorias naturalistas por meio da aproximação de outros saberes. Embora saibamos da artificialidade dos paradigmas e origens, é difícil não mencionar o livro Estruturas elementares do parentesco, publicado em 1949 sob o nome de Claude Lévi-Strauss, não somente por propor um gênero de antropologia que se disseminou não só por dentro da disciplina antropológica, mas para outros campos discursivos. Talvez a antropologia cultural de Franz Boas pudesse ser um mito de origem mais adequado para tratar da cisão entre os estudos antropológicos e as leis naturais, é verdade, já que estabelece a primazia da cultura sobre o meio e a raça. Sem negar a importância de Boas para os estudos antropológicos, mas parte considerável do poder cifrado em Estruturas elementares do parentesco foi ter estabelecido a distinção entre natureza e cultura com a mesma força sistemática que caracterizava as teorias e filosofias da natureza. Quando Lévi-Strauss demarca a fronteira entre natureza e cultura por meio da capacidade humana de controlar, operacionalizar, distorcer, artificializar, organizar, e enfim, dar sentido diverso para aquilo que é o fim último da lei da natureza, a reprodução, transforma o que era fundamento e intuito da história natural em instrumento para a realização de coisas alheias ao mundo animal; muito especialmente, no Estruturas elementares do parentesco, a reprodução, o controle socialmente disposto sobre ela, faz com que a natureza, a reprodução da espécie, fosse, primeiro, um instrumento de política, que desenha redes de alianças e inimigos, mas segundo, e esse é o grande salto proposto, a reprodução da espécie, por meio da troca matrimonial, passa a atender não à lei da seleção natural, à reprodução dos caracteres mais fortes, mas sim à reprodução da sociedade, reprodução de suas estruturas. Não se herda ou não se interessa mais com a herança genética, com as aptidões passadas de pai para filho; Lévi-Strauss leva as ciências sociais para pensar na reprodução e nascimento como herança de um nomos, uma comunidade e modo de viver anterior ao nascimento da criança, e tão logo esteja nascida, tão logo será posta para participar de tal nomos, de modo tão intenso e alienante que a sociedade passa a adquirir as feições de natureza; a cultura é naturalizada. Somente à guisa de conclusão, ainda sobre Franz Boas, importante destacar que muito embora tivesse proposto a cultura como esse espaço teórico capaz de separar a antropologia do naturalismo, sua postura diante dos conceitos que canalizavam a filosofia e história natural dentro da antropologia, com a raça, o meio, é quase sempre o de ceticismo: embora preconize o estudo da cultura como método mais adequado para se conhecer uma sociedade, e que rejeite a hipótese evolucionista da superioridade entre povos e/ou raças, o ponto de Boas não passa por abolir a importância dos estudos biológicos, a genética e fisionomia, como saberes da disciplina antropológica; Boas, antes de mais nada, pretende declarar cientificamente infundadas as teorias de que a psicologia de uma pessoa possa ser explicada por sua origem genética, preferindo pensar na questão das patologias sociais como oriundas de causas estritamente sociais.
o principal modelo de Lévi-Strauss, pelo que parece
se destaca por definir de forma positiva a separação e distinção
transpor esse arsenal linguístico e conceitual para um gênero, se não de historiografia especulativa, que dema o desenvolvimento da raça e/ou culturas e/ou civilizações, surge como símile da história natura uma história progressiva e violenta cujo modelo mais proeminente foi a seleção natural de Darwin
Nenhum comentário:
Postar um comentário