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domingo, 29 de dezembro de 2024

A ZOOLOGIA DE HEGEL

1.

a primeira obra de arte foi uma bosta. 

hegel relaciona o impulso-de-arte com o desejo e necessidade de cagar. diz ele mais ou menos que, diante do material inorgânico expelido pelos processos metabólicos, o homo faber se apossa da matéria e impõe a ela às formas da imaginação.

para hegel, o cocô é um conceito do intestino.


2.



hegel pensa a morfologia animal igualzinho pensa a filosofia: tudo tende ao absoluto e somente o absoluto é a revelação daqueles traços antes desprovidos de sentido.


3.



o homem - é a síntese e superação em que todos os traços insignificantes (como eram os traçados que os nhambiquaras faziam em suas cabanas: formas irregulares e desprovidas de sentido, grafismo estúpido que não compreendeu a natureza linguística da diferenciação, e que por isso não realizou o seu intuito secreto) de todas demais espécies; para hegel, todas as criaturas querem, mesmo que não saibam que queiram, ser o homem. para hegel, toda a natureza é acometida por essa profunda inveja da anatomia humana. só ela que é a realização perfeita e harmônica da matéria orgânica com a inorgânica; o homem, criatura perfeita, possui a complexidade interna (fisiológica) do verme, sem excluir a beleza externa (fisionômica) do inseto. sua carne é uma dialética viva.


4.


o progresso da dialética hegeliana, apesar de retornos, avança perpetuamente até a perfeição: o homem, o conceito, o estado...


5.


ao falar do canto das aves, se explicita como a hierarquia da história natural (a taxionomia morfológica) se relaciona diretamente a uma hierarquia da manifestação espiritual: a dotação morfológica da ave, que permite que canta, a coloca um passo mais próxima do conceito.


6.

para hegel a morfologia dos animais é compreendida como o produto do conceito. a matéria orgânica do corpo é formado, assim como nas artes plásticas a pedra, sob o intuito do conceito, é formada.
 
para hegel a história natural é o desígnio de uma inteligência eterna; o conceito sempre estava lá, desde o princípio, desde sempre aspirando ascender das formas baixas do monera até atingir a perfeita consciência de si sob a forma da linguagem articulada. 

a aparição do humano é revelação do conceito ideal de corpo que já era intuído pela vida mais rudimentar. o primeiro monera já queria ser o homem.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

narcisismo e paranoia na civilização

adorno louva o sistema burguês trabalhista de hegel por formular, na perfeição bem-acabada do conceito, o mundo unificado por meio das relações de troca, da mercadoria. seria, por parte de hegel, uma espécie de intuição do espírito do tempo: a empreitada do alemão teria "inferido a partir do conceito, esse caráter sistemático da sociedade, muito antes que ele pudesse impor-se no campo acessível à experiência de hegel". 

adorno se refere à sistematização hegeliana da integração das partes com a totalidade como expressão do espírito capitalista, de um modo que a fenomenologia e o projeto filosófico de hegel poderia ser um espelho de cristal para as relações constituídas sob o signo da mercadoria, em que tudo somente pode ser em relação a um outro: "essa capacidade da produção esquecer a si mesma, o princípio de expansão insaciável e destrutivo da sociedade de troca, espelha-se na metafísica hegeliana". não queremos sugerir que conceitos não possuem tal poder de clarividência; de certo, a obra hegeliana permitiu, deu forma, as aspirações teóricas de adorno em relação ao capitalismo do século XX, assim como o mito de édipo serviu a freud para inteligir com tamanha clareza suas próprias ideias. a mitologia, essa espécie de laço espiritual, série de histórias e imagens partilhadas, funda essa possibilidade de entendimento, e mesmo comunicação. poderemos, contudo, pensar na extensão e duração dessa mitologia das partes pelo todo, uma ontologia sinedótica em que o singular somente consegue existir pelo e no olhar do outro. 

trata-se de procurar o chão histórico em que se desenvolveu o narcisismo, é claro, já que este consiste na auto-consciência doentia de si, ou ainda, uma percepção de auto-percepção persecutória, que não permite esquecer de si mesmo em nenhum momento: seu corpo, sua fala, seus movimentos, tudo e mais ainda se torna objeto de consciência para o narcisista, como se, em sua fantasia, recriasse em si e para si o olhar e julgamento do outro: só é capaz de se conceber mediante ele. se a civilização é um desenvolvimento da coesão social pela integração e alienação progressiva do trabalho, então a civilização também caracteriza um caso progressivo de narcisismo, em que o eu, na proximidade crescente com o outro, somente pode conceber a si mesmo desde seu olhar. não por acaso que, na intensificação da modernidade, a sinceridade e autenticidade surgem como questões centrais para a vida reflexiva: como ser para si mesmo? como escapar do fluxo repressivo e modelador, a violência imposta pela proximidade do outro, pela manifestação tão clara do leviatã social? 

a relação de força entre o outro e o sujeito é tema central na tragédia íntima de rousseau, cujo corpo parece fracassar, como se fosse um ser extemporâneo, incapaz de se adequar a sua própria e tão clara intuição do panótico social, cada vez mais objetivado na indústria cultural, na perseguição levado a cabo pelos instrumentos do jornalismo, na criação dessa fantasia aterrorizadora e deliciosa de ser celebridade. rousseau se deleitava, mas, também, sofria: termina sua vida entregue às reflexões intimas, cerrado em seu desejo recorrente de distanciamento e solidão, cuidando de sua mórbida velhice em uma casa de campo, longe da vida citadina e da conspiração do público. é um homem cuja obra e biografia representam, tanto ou mais que a conceituação de hegel, a tensão da vida capitalista enquanto uma ontologia do valor de troca, em que somente conseguimos nos conceber a partir da consciência de sermos consciência de um outro. o sujeito cartesiano, marco mitológico da filosofia moderna, funda-se antes de mais nada na subjetividade de si para si: e descartes precisa se isolar em um chalé taciturno para silenciar o ruído externo e ficar a sós consigo mesmo. 

a sociedade, leviatã já idealizado por hobbes em que esse todo imaginário subjuga todas as partes, é uma entidade persecutória, cujo olhar é quase impossível de se abstrair. por último, retomando ao comentário sobre a antecipação divinatória de hegel, sobre a forma com que seu sistema formaliza a vida histórica dos séculos seguintes, vale fazer uma breve hipótese de carácter histórico. a aristocracia do século XVIII francesa, como demonstra o exemplo de rousseau, já vivia sob essa condição narcísica, de se saber inconsciente ou conscientemente cindido entre um eu e uma imagem do eu ao outro, incapaz de definir o originário, e atormentado por essa impossibilidade. 

sobre isso, o exemplo de rousseau (que em certa obra, na divisão que faz de si mesmo em vários, na própria representação como terceira pessoa, encorpora tão bem) é eloquente, mas ainda podemos pensar em como, desde o século XVI, a experiência de corte na inglaterra, estimulou a thomas morus a escrita de sua utopia. ali, a  tensão entre a vida pública, a necessitada de deleitar e de cultivar um ethos particular, entra em choque com a inconveniência característica da verdade. a adequação da retórica e a extemporaneidade da filosofia se confrontam, mais uma vez, sendo esta valorizada pelo seu poder de se livrar do domínio do outro sobre si. essa, talvez, fosse a paixão que animasse ainda a filosofia de rousseau: o desejo de se libertar do outro e se ver transparente, de si para si, e não de si para o outro para si. 

em hegel, contudo, e essa talvez seja sua radicalidade em relação a seu predecessor francês, esse desejo parece caducar diante da consciência de que o sujeito é, na verdade, sujeito-objeto; de que sua apercepção - em continuidade a kant - é sempre fenomênica, uma imagem projetada dentro da projeção social, que não é outra coisa fora a história do espírito.

o infinito e o universal como liberdade

o positivismo é fascinado pelo fato e pelo dado: sua razão fria e calculista é máscara. por baixo da máscara está um fetichista cujas pupilas se dilatam, extasiadas, diante da forma-fato, da forma-dado. essa é a dimensão mais obscura da retórica da clareza. por trás das formas mais transparentes é onde melhor se ocultam segredos. (é a lição da carta roubada de edgar allan poe). e sob a forma acabada da facticidade, sob o domínio tranquilo da positividade, estão cifrados instintos terríveis, morais ancestrais, metafísicas esquecidas, que retomam, no presente nosso, a realidade reificada pelas forças invisíveis da história.

nesse sentido, o conceito de totalidade investe contra a finitude e determinação perversa própria da historicidade. diante da objetividade, da imediatez e da auto-evidência, a totalidade abre a história para o outro, para o incondicionado, para as figuras do infinito capaz de desfazer a identidade despótica do particular e do positivo no espaço em branco, a ser criado, do negativo. vingança do presente contra o passado pelas armas do futuro: no insignificante aberto pela negação pode-se recuperar, esperamos, alguma autonomia, alguma liberdade. 

essa caracterização iluminista do infinito, que luta contra a determinação da historicidade, do tempo e do espaço, contra tudo que nos condicione por fora da reflexão ativa, não obstante seja hoje avaliada como parte de um movimento universalista, capaz de supra-sumir toda forma de não identidade na identidade total, aos iluministas ou pós-iluministas (penso em hegel, husserl, dilthey) surge, ao contrário, como possibilidade de se libertar do irracional, das forças que nos dirigem sem que nos saibamos dirigidos, da identidade inconsciente, na direção do outro, do novo, da diferença; enfim, o infinito, em tensão com o imediato da história, do aqui-agora, é força capaz de romper a potência estacionária do passado, a opressão daquilo que está pensado e esquecido como pensado, e iniciar a possibilidade de crítica e progresso.

"em hegel a totalidade não pode ser vista como negação simples do particular, como subsunção completa das situações particulares a uma determinação estrutural genérica. ela será a consequência necessária da compreensão do particular ser sempre mais do que si mesmo, de ele nunca estar completamente realizado. na verdade, ela aparecerá como condição para que a força que transcende a identidade estática dos particulares não seja simplesmente perdida, mas possa produzir relações". (glosa de safatle à "três estudos de hegel", p. 26 - 27).

segunda-feira, 22 de maio de 2023

O QUE É A BIBLIOGRAFIA: atomismo do espírito; ou porque acredito em mitos

Aproxima-se, diante do púlpito, uma mulher de nome indefinido, mas que declara ao microfone seu "ceticismo, e também, inevitável pelas constantes leituras que fiz de Machado durante um mestrado, não soar irônica em meu pessimismo".

Declara também que somente encontrou em tal ocasião "brecha para se expressar, mesmo que não saiba o motivo da expressão", e pediu ao público do congresso que desculpasse qualquer "salto argumentativo [...] porque estava bêbada [...] depois de dois copos de uísque" e que também havia o "rivotril" que disse beber como "passarinho que avoa até bebedouro posto em janela de apartamento miserável".

O que disse em sequência foi o seguinte:

Este enorme edifício que os senhores acadêmicos planejam, este largo empreendimento ficcional que fazem aqui, reunidos de modo tão teatral quanto deputados em câmeras de deputadas... Não, não falo contra os senhores, nem contra seus ofícios, nem mesmo contra a fictícia torre... Ela, afinal, que orienta não apenas os escritos que escrevem aqueles que em sua construção desejam se iniciar..."

(Neste ponto apontou para mim, que defendia minha tese de doutorado)

"Este pobre rapaz, coitado, não falo assim por pena, somente para indicar que a operação que realizou durante alguns anos, e que lhe deve ter ocupado os nervos e as paixões, não importa para nada, não adiciona nenhum tijolo na imaginária torre que constroem por meio do conhecimento..."

(Me olhou e deu um sorrisinho, que me pareceu simpático, de empatia, mas que talvez também fosse de pena).

"O que o rapaz faz, ao escrever e defender uma tese, ao ser cumprimentado pelo senhor..."

(E indicou o Oswaldo Candido, professor emérito do Departamento de História).

"Quando o senhor cumprimenta o rapaz pelo acréscimo que agora se faz à bibliografia acerca de seu tema de pesquisa... Sinto prazer sádico em dizer, mas também tristeza...)

(Voltou a olhar para mim, e parecia genuinamente triste).

"Isto que se refere como contribuição à grande biblioteca do saber é evidentemente uma contribuição fictícia, mas reconheço, eu não sou estúpida, que é sim contribuição para operações maiores!, que este tijolinho que o rapaz acrescenta no enorme e inexistente edifício, se este tijolinho não representa nada, importa por um motivo diverso do imaginado por vocês, bando de positivistas!" (Fez um gesto amplo que abrangeu o auditório e a banca, e a partir deste momento passou a falar diretamente para aqueles que nela estavam sentados).

"A tese deste pobre diabo, o tijolinho que finge adicionar na torre imaginária que o senhor chamou de bibliografia, vou revelar sua qualidade verdadeira: é somente o produto, o objeto magnético e de capacidades mágicas que nos distrai daquilo que faz a máquina do saber girar... A cadeia de projetos, de bancas, de artigos, de bibliografias... as universidades, as editoras… O motivo do movimento jamais importa: é sempre falso, é sempre ilusório, é sempre fictício. Vivemos na mitologia ou no cruzamento de várias: se o mito é falso, então a verdade, o conhecimento, o saber - o grandioso mito que atravessa séculos sob a forma das mais variadas histórias - se o mito é falso, portanto, a verdade é falsa, e estaríamos em uma contradição que nem ao menos seria necessário o serviço de um lógico para solucionar. A verdade é que o mito é real: que o ilusório é real, que o fictício é real, que o falso é real, e que não importa a verdade do movimento, basta o estar-em-movimento".

sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...