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quinta-feira, 27 de abril de 2023

trechos mortos 2

 

e retiram um pouco do que ocorre em privado para fazer com que apareçam em público, em páginas de livros e jornais. Um afeto que, como já me referi por meio do texto, não se esgota na pessoa, mas em tudo que lhe cerca, que vista desde esta perspectiva personalista, parece fazer de tudo que lhe cerca forma de extensão de sua alma. É impressionante, neste artigo de Oliveira Lima, a sessão entra a página 75 e 80 em que Gilberto dedica-se, com muita atenção, à descrição da casa de Oliveira Lima. Meu desejo seria lê-la por inteiro, para indicar a monotonia própria destes gêneros de catálogos, mas me limitarei a me referir que enumera cada retrato e o respectivo retratado, cada paisagem e o respectivo lugar, os bustos e seus representados, os diferentes objetos e sua ressonância histórica, bandeiras, retalhos de tetos de igreja, mapas, autógrafos de grandes homens, lanças, e também - a rúbrica é do descritor - “as fotografias aqui são mais íntimas”, os retratos de amigos e familiares, 

O perfil que faz de Oliveira Lima - a quem trata com a reverência de um mestre, poderia ser melhor esmiuçada, já que Gilberto também parece dele ter herdado considerável capital simbólico, mas precisarei indicar por aqui, indicando somente que o perfil de Oliveira Lima, trata-se da monumentalização de um homem de letras, da produção letrada no Brasil, como já sugeriu Ângela de Castro Gomes em importante estudo, mas que além de ser uma consagração por meio do olhar subjetivo, da intimidade, é também consagração da amizade, da relação que estes dois homens de letras tiveram. E que não somente o texto torna-se extensão e memória da personalidade homenageada, mas todo o mundo ao seu redor, que Freyre submete a verdadeiro processo de museificação por meio da escritura.

Gostaria de terminar esta fala esboçando algumas conclusões, que mais que concluir, abrem alguns caminhos de continuidades para novas reflexões.

Se formos nos referir ao conceito de cordialidade, que remonta a obra de Sérgio Buarque, facilmente somos devolvidos à escritura freyreana. No tópico relativo à importância do ensino superior, por exemplo, ambas convergem em situar as faculdades como instâncias de desterritorialização das relações familiares típicas. 

Em Casa-Grande & Senzala, a seguinte passagem me parece exemplar, por colocar em choque os antigos valores patriarcais com os novos desejos adquiridos pelos rapazes, a partir do contato com as universidades:


Pobres “meninos travessos” do tempo dos filhos chamarem ao pai de “Senhor Pai”, era deles que o padre Gama sentia falta, escandalizado com os meninos e os rapazes da nova geração: desavergonhados que conheciam melhor as quadrilhas que o padre-nosso; viciados no charuto Havana e na cachucha; leitores de ”pestilenciaes Novelas” e de “Poesias eróticas”, em vez dos “Evangelhos”, das “Epistolas de São Paulo”, e para “para recreio, os Contos Moraes de Marmontel, o virtuoso Telemaco, a Moral em Acção, a Escola de Bons Costumes, a Mestra Bona”, que eram os livros indicados pelo padre para a leitura da mocidade. Rapazes falando alto e dando opiniões sobre todas as coisas na presença dos mais velhos, em vez de se comportarem com respeito de outrora, pelos Pais, pelos Avós, pelos Tios. Nas festas de família, sem que ninguém lhes perguntasse, já os mais salientes davam “o seu voto magistral a respeito da bondade, ou imperfeição do chá”, “applaudindo este pão de ló, reprovando aquele sequilho”; durante a Missa, namoravam o tempo inteiro, dando as costas ao Santíssimo Sacramento para olharem as meninas de frente, “rindo-se para esta, contemplando aquella, galanteando auquel’outra… torcendo o bigóde… penteando com os dedos o furibundo passa piolho”; e quase já não tomavam a benção aos pais!


E em Raízes do Brasil, como se trata-se de uma síntese, lemos o seguinte:


[Ao ingressar nas universidades, os estudantes deveriam] ajustar-se, nesses casos, a novas situações e a novas relações sociais que importavam na necessidade de uma revisão, por vezes radical, dos interesses, atividades, valores, sentimentos, atitudes e crenças adquiridos no convívio da família.  


Em Casa-Grande & Senzala, os meios de produção - o latifúndio, o engenho, a mão-de-obra escrava - possui estreita relação com a produção de uma moral, de uma cultura, ou ainda, para nos situarmos na linguagem freudiana à respeito do aspecto familiar, poderíamos nos referir à produção do desejo. Se as transformações associadas ao fim de um regime patriarcal e gradual inserção do Brasil em uma lógica capitalista global deve ser pensado não só economicamente, mas também a partir de uma série de transformações nesses diversos níveis - culturais, morais, desejantes, etc - esta transformação, além de gradual, deveria levar em conta, para empregarmos uma palavra-chave na obra de Gilberto, uma espécie de tentativa de acomodação dos antigos valores dentro dos novos meios a eles impostos.

Mesmo com a disseminação das práticas letras e o crescente projeto de escrituração do mundo a ela associado, parece-me prudente pensarmos nos usos que essas escrituras mantinham não apenas em nível ideológico - como expressão de uma aristocracia decadente, por exemplo - mas dentro de práticas concretas e sociais a que se destinam estas escrituras, em seu momento de fabricação e uso. A elaboração de textos como os de gênero retrato ou perfil, por exemplo, para além de tratar-se de um projeto de monumentalizar ideologicamente valores das classes dominantes - ou antigas classes dominantes, agora detentoras mais de poderio simbólico do que dos meios de produção propriamente ditos - associam-se também a um outro modo de vida, referem-se a uma outra cultura. 

No caso, pelo menos em relação à geração de Freyre e outros, me parece necessário manter em vista que a produção e circulação do saber passa de maneira estreita pelas relações interpessoais que compõem o restrito mundo de tais intelectuais - não apenas pela questão referida pela sociologia como “herança de capital simbólico e cultural” que as aproximações intelectuais implicam, mas também reconhecer que uma série de textos, primeiro, estão escritos com propósitos afetivos, como se fosse, no limite, extensão da relação de amizade - ou inimizade - que existe entre as partes, mas também, e isso também considero importante, não fazer disso - o afeto, a paixão - espécie de impeditivo para o estudo destes documentos desde a perspectiva de uma história do conhecimento.

Há muito o que se pensar à respeito do aspecto erótico do conhecimento. A história do saber, afinal, é tipicamente representada a partir de uma lógica fria, como se os conceitos, as formas, as idéias, as teorias, as palavras, pensem no nome que quiserem, como se tudo circulasse simplesmente a partir do branco celibatário do papel. 

A tagarelice ruidosa dos sentidos substituída pela gossip privada da consciência, eis o sentido da história?

Pensemos, talvez, em fazer o movimento contrário: se a cordialidade corresponde ao desejo pelo outro, pelnestas relações a-familiares, que encontrasse o desejo onde parece não haver nenhum: que acrescentasse ao idílico céu platônico a sujeira da lama, e fizesse a produção do conhecimento participar da produção dos excrementos: do corpo, do dinheiro, do amor: enfim, a materialidade.



de u - que consiste em desenvolver a escritura fundada na observação - da natureza, dos costumes, etc - na direção daquilo que se caracteriza como “menor”, “sem importância”: como a mobília, a indumentária, a jardinagem, os livros da moda, etc. É, portanto, uma espécie de fusão entre intimidade e a observação, entre o afeto e o objeto, que emprega-se - especialmente por meio de retratos, perfis e testemunhos, gêneros que Gilberto foi pródigo redator - para escriturar, a partir da visão íntima, pessoal, enfim, para empregarmos o termo caro à nossa historiografia, uma escrituração feita a partir do lugar da cordialidade



  1. O DIÁRIO DE VIAGENS E A OBJETIVIDADE


  Nos programas imaginados no intuito de produzir uma literatura autenticamente brasileira, muito importante foi, pelo menos de início, a atenção dada à produção daquilo que a retórica clássica se refere como enargeia, palavra que se referia à clareza produzidas por técnicas descritivas, que pudessem transpor em palavras aquilo que os sentidos percebia.

Poderíamos rastrear a origem desta escritura já nas primeiras cartas e relatos de viagens, que para descrever o novo mundo, desenvolveram tecnologias escriturárias capazes de dar conta da diversidade e estranheza que por aqui encontraram. Dentro do programa romântico, por exemplo, é notável o desenvolvimento e cultivo de uma tecnologia escritural destinada à pintura - emprego o termo pintura pelo claro privilégio da representação do olhar perante os demais sentidos  - da natureza tropical. 

Me refiro ao cultivo de uma tecnologia escritural pictórica pois, embora a partir desta matriz construam-se diferenças línguas, diferentes sistemas de significantes, mantêm-se em nossa literatura em prosa, pelo menos até o século XX, verdadeira tradição pictórica. O que se chama de realismo ou naturalismo, por mais que se nomeie a partir da diferença em relação à literatura romântica, continuou a desenvolver esta escritura pictórica, muito embora trata-se de fazê-la em outra língua. Não é possível outra coisa senão somente executar um esboço do que me refiro, mas se o desenvolvimento do realismo e naturalismo se caracteriza especialmente pela representação do feio ou grotesco - e para falar como Auerbach, pelo fim da adequação clássica entre tema e estilo - mesmo que pelo desenvolvimento de novas línguas, irá se manter o interesse descritivo, que por nós até hoje é reconhecido pelo nome de cor local.

A cor local, muitas vezes referida pejorativamente, como espécie de ideologia literária, contudo pode ser pensada como parte de uma tecnologia escritural, cultivada secularmente dentro de nossa tradição de escritores, e que em sua variedade, implica no desenvolvimento de línguas que se constituem a partir de classificações de entidades concretas - isto é, que existem no espaço -. 

Me refiro a entidades concretas pois é meu intuito distinguir, pelo menos por agora, em caráter experimental, uma escritura da alma, isto é, línguas capazes de tratar os movimentos do pensamento, das paixões, realidades imperceptíveis para os sentidos, uma escritura psicológica, de uma outra, que desenvolve-se a partir da produção da espacialidade, e mais do que espaço, que produzem uma espécie de efeito de presença física. 

Ao fim e ao cabo, não faço outra distinção que não a esboçada no princípio do ensaio entre o diário íntimo e o diário de viagens. E como disse, ambos são importantes dentro da obra de Freyre, que se estava na “vida” pulsante das escrituras da alma, era também - isso é incontestável - um mestre na arte do olhar. 

Se afirmei existirem diferentes línguas, diferentes sistemas de significantes que buscam grafar a observação, é porque poderíamos começar a pensar em uma espécie de história da escritura do olhar. Mas o que me interessa perguntar agora é o seguinte: Como afinal olhou Gilberto Freyre?



Se nomeado assim, no singular, é para em seguida querer decompô-la em pelo menos duas matrizes distintas: uma que consigo rastrear a partir do diário íntimo, e que o próprio autor associa a uma matriz de língua inglesa e a uma cultura protestante. A outra, escritura, disseminada desde uma matriz lusófona, estaria associada ao diário de viagens. 

Assim, estaria construindo, a partir da escritura autobiográfica do diário, dois registros distintos, duas linguagens que buscam dar conta de diferentes objetos: o diário íntimo, cujos objetos de representação básicos poderíamos resumir como (1) a vida cotidiana, (2) a subjetividade do autor e (3) portanto escritura das ideias e paixões que atravessem essa subjetividade.

Em contraste, estipulo uma própria do diário de viagens, interessada sobretudo narepresentação do (1) pitoresco, e com isto me refiro ao extraordinário, o exótico, aquilo que destoa da vida doméstica, (2) do mundo exterior, daquilo que se percebe como merecedor de atenção dos sentidos e (3) se o diário íntimo repousa sobre os movimentos subjetivos, de uma consciência ou inconsciência, o diário de viagens, ao contrário, funda-se na produção da objetividade, de línguas capazes de distingui-los com clareza.

Evidente que trato de tipos ideais ou algo semelhante, e que, na realidade do texto - inclusive no do próprio Gilberto - o registro se torna muito mais polifônico. Os dois diários que Gilberto escreveu - Aventura e Rotina, de 1953, e Tempo morto e outros tempos, de 1975 -, ocorre evidente mistura destes dois “gêneros”, mas me parece razoável, especialmente para propósitos metodológicos, esboçar esta distinção entre diário de viagem, calcado na observação e na escrituração dos sentidos, e do diário íntimo, em que se escritura a subjetividade do autor.

Tratarei de cada um deles com alguma atenção, sem esquecer que o propósito final deste ensaio não é examinar esta dupla escritura que atravessa a obra de Freyre, mas sim esboçar uma espécie de sociologia, em que tentarei demonstrar como estas duas escrituras, embora concorrentes,


quarta-feira, 26 de abril de 2023

SÉRGIO BUARQUE: notas de leitura sobre o homem cordial

Sérgio Buarque, O homem cordial. Companhia das Letras, 2012.


O HOMEM CORDIAL.

Trecho extraído de Raízes do Brasil (ed. original 1936). São Paulo, Companhia das Letras, 1995.


"Nas velhas corporações o mestre e seus aprendizes e jornaleiros formavam como uma só família, cujos membros se sujeitam a uma hierarquia natural, mas que partilham das mesmas privações e confortos. Foi o moderno sistema industrial que, separando os empregadores e empregados nos processos de manufatuta e diferenciando cada vez mais suas funções, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou os antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fácil, além disso, ao capitalista explorar o trabalho de seus empregados, a troco de salários ínfimos".

[estamos nos rastros da escritura freyreana: a intimidade da família patriarcal desterritorializada a partir da segunda escravidão, das necessidades do novo arranjo capitalista]

Para o empregador moderno — assinala um sociólogo norte-americano — o empregado transforma-se em um simples número: a relação humana desapareceu.  

p. 46. 

abolição da velha ordem familiar por outra, em que as instituições e as relações sociais, fundadas em princípios abstratos, tendem a substituir-se aos laços de afeto e de sangue. [...] essas mesmas tendem a desaparecer ante as exigências imperativas das novas condições de vida.

p. 47. 

E se bem considerarmos as teorias modernas, veremos que elas tendem, cada vez mais, a separar o indivíduo da comunidade doméstica, a libertá-lo, por assim dizer, das “virtudes” familiares.

p. 47 - 48.

Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de família — e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal — tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições à formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos.

p. 48 - 49.

limitações que os vínculos familiares demasiado estreitos, e não raro opressivos, podem impor à vida ulterior dos indivíduos. 

 meios de se corrigirem os inconvenientes que muitas vezes acarretam certos padrões de conduta impostos desde cedo pelo círculo doméstico. 

E não haveria grande exagero em dizer-se que, se os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos, fundados desde 1827 em São Paulo e Olinda, contribuíram largamente para a formação de homens públicos capazes, devemo-lo às possibilidades que, com isso, adquiriam numerosos adolescentes arrancados aos seus meios provinciais e rurais de “viver por si”, libertando-se progressivamente dos velhos laços caseiros, quase tanto como aos conhecimentos que ministravam as faculdades.

[Ao ingressar nas universidades, os estudantes deveriam] ajustar-se, nesses casos, a novas situações e a novas relações sociais que importavam na necessidade de uma revisão, por vezes radical, dos interesses, atividades, valores, sentimentos, atitudes e crenças adquiridos no convívio da família.  

“filhos aterrados” 

p. 49

Nem sempre, é certo, as novas experiências bastavam para apagar neles o vinco doméstico, a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão oposto às exigências de uma sociedade de homens livres e de inclinação cada vez mais igualitária. Por isso mesmo Joaquim Nabuco pôde dizer que, “em nossa política e em nossa sociedade [...), são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam”.?

p. 49 - 50.

[filhos aterrados X órfãos, abandonados]

Aos que, com razão de seu ponto de vista, condenam por motivos parecidos os âmbitos familiares excessivamente estreitos e exigentes, isto é, aos que os condenam por circunscreverem demasiado os horizontes da criança . dentro da paisagem doméstica, pode ser respondido que, em rigor, só hoje tais ambientes chegam a constituir, muitas vezes, verdadeiras escolas de inadaptados e até de psicopatas. Em outras épocas, tudo contribuía para a maior harmonia e maior coincidência entre as virtudes que se formam e se exigem no recesso do lar e as que asseguram a prosperidade social e a ordem entre os cidadãos. 

[fim da sociedade patriarcal e início da sociedade liberal - falo em sociedade liberal pois desconfio que em Raízes do Brasil, isto que se refere como "sociedade moderna", em contraste com o "patriarcalismo arcaico", não se trata de uma passagem para uma sociedade de classes, conforme a tradição marxista irá desenvolver, mas sim, pelo que parece, de uma sociedade de livre concorrência]

p, 50

Não está muito distante o tempo em que o dr. Johnson fazia ante o seu biógrafo a apologia crua dos castigos corporais para os educandos e recomendava a vara para “o terror geral de todos”. Parecia-lhe preferível esse recurso a que se dissesse, por exemplo, ao aluno: “Se fizeres isto ou aquilo, serás mais estimado do que teu irmão ou tua irmã”. Porque, segundo dizia a Boswell, a vara tem um efeito que termina em si, ao passo que se forem incentivadas as emulações e as comparações de superioridade, lançar-se-ão, com isso, as bases de um mal permanente, fazendo com que irmãos e irmãs se detestem uns aos outros. 

[transcrevo este trecho pelo pitoresco, principalmente, mas também é sociologicamente sugestivo, se pensarmos que, dentro de uma sociedade em que os meios de produção estão diretamente relacionado à família, à descendência patriarcal, édipo deve ser preservado de todas as maneiras, isto é, os conflitos entre familiares são extremamente trágicos pois desarranjam todo um sistema social - ou, como o próprio S. B. refere-se no parágrafo seguinte: "ia acarretar um desequilíbrio social"]

p. 50 - 51

[funcionalismo patrimonial x funcionalismo burocrático - confiança/afeto - competência/razão]

A escolha dos homens que irão exercer funções públicas [no funcionalismo patrimonial] faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático quanto mais caracterizados estejam os dois tipos.

p. 51

[No Brasil] foi sem dúvida o da família  aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos dá supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar — a esfera, por excelência, dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração [a intimidade] — está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.  

[estamos atravessando a escritura freyreana, mas tornando negativo aquilo que em freyre é positivo - recomendo (a mim mesmo) a leitura de ensaios que saíram em Tentativas de mitologia, "Cultura e Política", em que se refere a Oliveira Viana e sua justificativa do fascismo enquanto mais adequado à cultura brasileira; e também "Sociedade Patriarcal", em que irá caracterizar a nostalgia patriarcal de Freyre - que os marxistas atribuem a sua origem de classe - e questionar a cientificidade de seu trabalho]

p. 52

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” é a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. 

[as características que hoje são as mais valorizada em trabalhadores de serviço e atendimento ao público, diga-se de passagem]

p. 52

Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças.

[Sérgio Buarque: ANTI-BRASILEIRO!!!!!!! levem ele para a forca, contrariou o geist des volk, safado]

[polidez X cordialidade;  aparência X espontaneidade; protocolo X paixão] 

Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência — e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções. 

padronização das formas exteriores da cordialidade

máscara 

[separação entre espaço público e espaço privado, entre eu público e eu privado]

[a vida moderna, das grandes cidades, exige ao indivíduo essa defesa epidérmica, psíquica, da polidez?]

[a cordialidade brasileira já teria se convertido em polidez?]

No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência.

Ela é antes um viver nos outros. 

[a necessidade do laço familiar; a necessidade de afeto, do viver no outro e pelo outro; a necessidade de comunidade X a vida independente e individual; a autonomia afetiva; a comunidade substituída pela burocracia, pela instituições]

p. 53

[cordialidade:] desejo de estabelecer intimidade

p. 54 

ética de fundo emotivo

para conquistar um freguês tinha necessidade de fazer dele um amigo.!

p. 55 

horror às distâncias que parece constituir, ao menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro.

p. 56

A uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade; transigente, por isso mesmo que pronta a acordos, ninguém pediria, certamente, que se elevasse a produzir qualquer moral social poderosa. Religiosidade que se perdia e se confundia num mundo sem forma e que, por isso mesmo, não tinha forças para lhe impor sua ordem. Assim, nenhuma elaboração política seria possível senão fora dela, fora de um culto que só apelava para os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade.

[dificuldade de "produzir qualquer moral social poderosa"; ver o histórico de edições de Raízes do Brasil; ver o já mencionado ensaio sobre Oliveira Viana]

pouca devoção dos brasileiros

p. 57

muito pouco se poderia esperar de uma devoção que, como essa, quer ser continuamente sazonada por condimentos fortes e que, para ferir as almas, há de ferir primeiramente os olhos e os ouvidos.

[razão X sentidos]

“Em meio do ruído e da mixórdia, da jovialidade e da ostentação que caracterizam todas essas celebrações gloriosas, pomposas, esplendorosas”, nota o pastor Kidder, “quem deseje encontrar, já não digo estímulo, mas ao menos lugar para um culto mais espiritual, precisará ser singularmente fervoroso.”

formas mais rigoristas de culto.

[influência do protestantismo; curiosamente, quando jovem, Freyre recebeu educação protestante, estudou em colégio inglês, mas segundo narra em seu diário de adolescência, quando nos Estados Unidos se desencantou com a fé protestante]

p. 58

Em particular a nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta “terra remissa e algo melancólica”, de que falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no fundo, o ritualismo não nos é necessário. Normalmente nossa reação ao meio em que vivemos não é uma reação de defesa. A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. Ele é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades

[conclusão absolutamente freyreana, em consonância com a "plasticidade do caráter português"]


sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

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