cada dia é mais claro que não sou, não serei e que nem quero ser culto. essa é uma fronteira que me separa do mundo dos artistas, que circundo, demonstro interesse, e até frequento como turista. minha vulgaridade é contudo indisfarçável. mais confortável estou entre os acadêmicos, entre gente mal vestida, que não sabe se portar à mesa, que se assemelha ao profissional burguês, em vestes de trabalho: não possuem aquela graça aristocrática na fala e modos, o instinto de agradar, a arte da boa vida, a elegância travestida de boemia, traços característicos do tipo artista e culto. o acadêmico pode até mesmo ser erudito; seu discurso pode impressionar pela inteligência, mas nunca pela retórica. desajeitado e bruto, ele conhece, somente. daí sua dificuldade instintiva com as palavras e o amor inato às ideias.
quarta-feira, 10 de julho de 2024
sábado, 15 de junho de 2024
gilberto freyre é um antropólogo naturalista, mas...
me enveredo em uma longa análise da obra de gilberto freyre a partir das ciências naturais-biológicas para chegar no ponto e dizer ao leitor que, no entanto, a obra de gilberto freyre não é uma ciência-natural-biológica. tanto gasto de tinta pareceria ocioso se fosse para confundir o modelo epistêmico de sua sociologia com o das ciências positivas. se me demoro construindo esse tal modelo, se perco tempo demonstrando suas afinidades com os grandes livros de gilberto freye é, em primeiro lugar, por "estilo argumentativo", viciado sempre nos modos adversativos, em que depois da preposição se introduz um "mas", um "porém", um "todavia", que introduz ao sentido previamente e às vezes longamente construído um desvio.
sim, gilberto freyre possuí séries de semelhanças com as ciências da natureza, sem que, no entanto, deva ser confundido com.
nascido na alvorada do século XX, a formação de gilberto freyre manteve laços estreitos com a antropologia modelada enquanto um ramo dos estudos evolutivos e de hereditariedade, sem, todavia, deixar de se debruçar naquele domínio que que dilthey iria tratar como o da lebenphilosophie, e que pode ser relacionado com aquilo que husserl trata por lebenswelt por se tratarem de um conhecimento incapaz de ser formulado pelas ciências positivas, e nos quais, historicamente, se desenvolveram aquilo que convém chamar de "ciências humanas" ou "humanidades".
que as humanidades venham a ser constituídas enquanto uma "filosofia da vida", como uma ciência do "mundo da vida", demonstra a ambiguidade e imprecisão circundante a todo conceito de vida no século XIX e XX: por um lado, a vida se converte em biologia, em estudos experimentais realizados em laboratórios, por profissionais zelosos pelos métodos de mensuração e pela aplicação de modelos da física e química ao estudo dos seres vivos; por outro, uma compreensão da vida e natureza legada - provavelmente - do romantismo, que se caracteriza pelo turbilhão da experiência incapaz de ser sintetizado fielmente pela técnica científica.
gilberto freyre, embora fosse ou almejasse, durante as primeiras décadas de trabalho, ser um cientista, não deixou de compreender a vida enquanto esse fenômeno romântico, excessivo, cuja formulação mais clara em sua obra está relacionada com sua analogia entre o sociólogo e o romancista, a pretensão de representar a vida do curso de seu movimento, de expressar pela extensão da representação aquilo que a métrica e unidade conceitual eram incapazes de aludir.
não preciso dizer que essa compreensão de gilberto freyre rapidamente se tornaria anacrônica: a primeira edição de casa-grande & senzala nos estados unidos foi recebida com críticas ásperas, direcionadas principalmente à "metodologia mística" - termo empregado pelo próprio gilberto freyre, e que remetia a dimensão auto-biográfica, proustiana, meditativa, com que escreveu o livro -, que ao crítico parecia inadequado ao trabalho verdadeiramente científico da antropologia. e o resto, como sabemos, é história, já que em nosso próprio país se desenvolveria, a partir de são paulo, quando profissionalizada nossa universidade, uma crítica análoga, e ainda mais vasta, contra a "anti-cienticifidade" de gilberto freyre.
a questão se torna, então, não somente o que seria essa "libenphilosophie" de gilberto freyre, ou no que consistiria a porção de sua obra ainda indefinida, em espera, indicada apenas como um negativo - um "não é" - das ciências positivas, mas também como essas próprias ciências positivas em que gilberto freyre construiu seu modelo científico, ao longo do século XXX, se desatualizaram, se tornaram literalmente ultrapassadas, ao ponto de que, nos anos 70, quando gilberto freyre trata de "como e porque é e não é sociólogo", fará somente acenos discretos a elas, preferindo investir na outra direção de sua obra, caracterizada pelo intuicionismo, a relação entre sociologia, arte e vida, a influência dos sociólogos alemães a partir do seu modelo empático-compreensivo, a herança mística e de reflexão auto-biográfica dos ibéricos, os relatos de viajantes, etc, tentando assim construir um modelo contra a ciência em voga.
carta aberta ao filott
se manifesta muito ódio entre o filott, mas venho cá dizer que, via de regra, no tempo regular do cotidiano, é ódio do tipo civilizado, com troca de farpas que não exclui algum respeito, antagonismos que não terminam em inimizades, picuinhas que não causam guerras. é o correto.
a guerra acredito ser legitima: não sou nenhum liberal. somente seria estúpido uma animosidade excessiva por aqui, que claro, de vez em quando os ânimos se excitam o suficiente para ultrapassar o limiar do razoável, mas faz parte. grande defeito é empregar toda essa energia na usina nuclear do sr. musk. creio que já está em tempo das meninas e rapazes se organizarem melhor, ultrapassar a organização confortável imposta pela lei do algoritmo e formular um modelo de ágora mais adequada às necessidades.
termino com essas palavras a minha defesa de uma cultura digital mais politizada. espero que elas encontrem nos corações dos senhores um lugar de acolhida.
assinado,
mallarme.
quarta-feira, 29 de maio de 2024
antropologia e antropogenia: passagem do finito ao infinito
na antropogenia, a fundação do humano é inscrita numa genealogia da natureza: desde o ser mais ínfimo até o mais complexo existiria uma cadeia cuja duração culmina no aparecimento de nossa espécie.
as relações entre origem e originado, contudo, são imprecisas: é o ser humano regido pelos seus princípios elementares da biologia, que remetem e repetem indefinidamente a origem - como no esquema de haeckel em que a ontogenia repete a filogenia - ou sua constituição excepcional de ser intelectual, dotado de linguagem, razão, ou qualquer outro atributo especial, super-animal, fundou, neste ramo da árvore da vida, uma dimensão que escapa às leis naturais, isto é, a antropologia?¹
vejamos a lei do positivismo conforme formulada por littré para pensarmos essa tensão entre antropogenia e antropologia, ou ainda, entre o retorno da origem no originado e a ultrapassagem daquela por este: a física, explica o ilustre discípulo de comte, determina a química que determina a biologia que determina a sociologia. a pergunta sobre a excepcionalidade humana é um questionamento a respeito do mecanicismo explicitado pela sequência em que a ciência positiva subordinaria o conhecimento da humanidade ao conhecimento natural; por outro lado, as ciências do espírito ou da vida, conforme a formulação de dilthey, questionaria como que o humano, se não obstante faz parte da e se constitui na natureza, escaparia a série de leis e estudos desenvolvidos nos últimos séculos para analisá-la (física, química, biologia...).
é menos uma questão ontológica, talvez, do que epistemológica: se a natureza implica em uma definição da vida (humana) a partir dos princípios estabelecidos por tais campos do saber, a antropologia, especialmente a partir do fundamento do conceito de cultura, re-abreria o que estava definido desde seu princípio, desfazendo a subordinação do conhecimento do homem às ciências da natureza.
é uma relação delicada, que os cientistas sociais do início do século XX tratam a partir das relações entre os princípios de raça - que seria a expressão do natural no social - e os de cultura - que representaria a infinidade e plasticidade humana diante dos limites postos pela lei da natureza -. do finito da natureza ao infinito da vida (humana), portanto.
a sugestão de lévi-strauss, ao desconsiderar as determinações raciais sobre as culturais, contudo, como que inverte os termos da equação: o ser humano, por sua natureza, seria infinitamente plástico: é a sua cultura que lhe faz vir a ser alguma coisa. a cultura então se torna o lugar de formação, em que o infinito potencial - seu "corpo sem órgãos" - é estrangulado, constrangido, dentro de uma extensão e temporalidade definida pela vida social. nessa dimensão de reflexão, nessa passagem afuniladora - "do cru ao cozido" -, que a antropologia irá se desenvolver menos como ciência da natureza do que uma ciência, não do anti-natural, mas do sobre-natural. enlace ambíguo, que trata de uma consciência de dominar e fazer-se exceção ao natural, ao mesmo tempo que, em um lugar incerto, saber-se regido por seu jogo.
NOTAS DE RODAPÉ
¹ No fim do século XIX e início do XX o conceito de "antropologia" era empregado para se referir ao estudo das origens antropogênicas e dos diferentes caracteres raciais engendrados por meio da hitória natural. Aqui, no entanto, proponho uma distinção entre antropologia e antropogenia para demarcar com clareza a distância que os estudos sociais e humanísticos - as ciências da vida e do espírito - produziram, ao longo do último século, das ciências naturais. Desta deriva conceitual, que re-mapeou a geografia do saber do humano, me parece ter se constituído a atual disciplina antropológica.
quinta-feira, 16 de maio de 2024
o racismo hermenêutico de gilberto freyre
se na antropologia do XIX o racismo era parte da dimensão ontológica da vida - a superioridade entre raças era inscrita já na ordem natural -, na obra de gilberto freyre ela se relativiza em uma hermenêutica dessa natureza. ou seja, mesmo que existam diferenças entre as raças, o racismo é um fenômeno das culturas. gilberto freyre mantém ainda a primazia da teoria racial dentro de sua sociologia; recusa, no entanto, que o valor dessas diferenças não sejam interpretadas culturalmente, a partir dos variados contextos históricos e mesológicos em que vivem.
domingo, 11 de junho de 2023
naturalismo e antropologia: lévi-strauss como paradigma da separarão
Em um mesmo parágrafo fizemos uso do termo naturalismo que sugere dois sentidos distintos para essa única palavra. O primeiro naturalismo por nós escrito seria aquele associado à literatura, à ficção, à língua, à forma, etc. A segunda aparição da palavra, ocasião para que abrisse essa nota de rodapé, se refere ao que hoje se chamaria de biologia; é um naturalismo científico, responsável pelo estudo da anatomia, fisiologia, etc, de vegetais e animais. Há também um terceiro naturalismo; terceiro porque sua existência é dupla, e seu estatuto discursivo elástico. Me refiro ao naturalismo dos viajantes, aos diários, relatos de viagens e demais gêneros por eles produzidos. Essa separação entre literário e científico, no entanto, embora pertinente em relação à organização, controle e estabilização dos enunciados, se dentro de uma perspectiva da escritura, da disseminação da língua, percebemos séries de vazamentos e contaminações entre um e outro. Os naturalistas e seus estudos fisiológicos e anatômicos de plantas e animais, colocados a partir de uma história natural e/ou da da evolução, faz com que o estudo seja somente um ramo específico dessa ancestral genealogia em que todos os seres vivos são desdobramento de uma mesma força ou lei; desde os primordiais moneras, até o fantástico desabrochar da inteligência humana, atuaria o mesmo princípio, cujo protótipo mais disseminado foi a seleção natural de Charles Darwin. A história natural, portanto, é o desdobramento de leis da natureza; da interação entre organismo e meio; de sua concorrência e associação com os demais; e se sobrevivem aqueles mais aptos, e se são herdadas as características mais vantajosas, é portanto destino provado cientificamente que a natureza impõe aos seres vivos a adaptação e/ou o aperfeiçoamento e/ou progresso. A antropologia do século XIX surge como um ramo dessa história natural cujo intuito seria buscar, a partir das coordenadas oferecidas por diversos a prioris extraídos das leis naturais, as particulares do desenvolvimento humano no tempo, especialmente a partir da perspectiva de que este desenvolvimento deveria se expressar na forma de aperfeiçoamento das faculdades humanas - a razão, a política e a beleza, para repetirmos a tríada kantiana, são dimensões em que separa-se os humanos dos demais animais e seres vivos. Muita dessa antropologia, em contraste com o que se caracterizou enquanto etnografias, não por acaso era de caráter especulativo; seu objeto de estudo, afinal, não eram grupos ou comunidades humanas específicas, mas acontecimentos enterrados e apagados pelos milhares anos de história: Como do macaco se desenvolveu o homem? Qual seria afinal a origem da razão? Como passaram de bandos desarticulados e sem leis para sociedades dotadas de moralidade e organizada por preceitos públicos? Em que circunstância passou o ser humano a falar, comunicar e representar o mundo e os acontecimentos nessa forma tão arrojada que a língua permite? Percebam que essas perguntas não se tratam exatamente de encontrar princípios explicativos ou teóricos, porque esses já estavam dados; embora hajam divergências aqui e acolá, o princípio de tudo repousa naquilo que é a lei da natureza: a escassez, a superação do mais apto e o falecimento dos fracos, a herança das aptidões e gradual desaparecimento dos defeitos, etc. O que se tratava para estes antropólogos não era desvendar as leis da natureza; essa afinal já estava dada. O que a antropologia especulativa fazia era antes uma tentativa de estender as leis da evolução e os estudos naturalistas ao seu limite, até o ponto em que sairíamos das leis naturais e teríamos que passar a pensar em leis humanas; ainda que essas leis humanas partissem da analogia entre a evolução humana e a evolução natural, ao colocarem essa linha divisória entre o macaco e o homem - razão, ética, língua - de maneira críptica se abria a brecha por onde os antropólogos do século seguinte fundaram um campo totalmente autônomo, separando a antropologia dos métodos e teorias naturalistas por meio da aproximação de outros saberes. Embora saibamos da artificialidade dos paradigmas e origens, é difícil não mencionar o livro Estruturas elementares do parentesco, publicado em 1949 sob o nome de Claude Lévi-Strauss, não somente por propor um gênero de antropologia que se disseminou não só por dentro da disciplina antropológica, mas para outros campos discursivos. Talvez a antropologia cultural de Franz Boas pudesse ser um mito de origem mais adequado para tratar da cisão entre os estudos antropológicos e as leis naturais, é verdade, já que estabelece a primazia da cultura sobre o meio e a raça. Sem negar a importância de Boas para os estudos antropológicos, mas parte considerável do poder cifrado em Estruturas elementares do parentesco foi ter estabelecido a distinção entre natureza e cultura com a mesma força sistemática que caracterizava as teorias e filosofias da natureza. Quando Lévi-Strauss demarca a fronteira entre natureza e cultura por meio da capacidade humana de controlar, operacionalizar, distorcer, artificializar, organizar, e enfim, dar sentido diverso para aquilo que é o fim último da lei da natureza, a reprodução, transforma o que era fundamento e intuito da história natural em instrumento para a realização de coisas alheias ao mundo animal; muito especialmente, no Estruturas elementares do parentesco, a reprodução, o controle socialmente disposto sobre ela, faz com que a natureza, a reprodução da espécie, fosse, primeiro, um instrumento de política, que desenha redes de alianças e inimigos, mas segundo, e esse é o grande salto proposto, a reprodução da espécie, por meio da troca matrimonial, passa a atender não à lei da seleção natural, à reprodução dos caracteres mais fortes, mas sim à reprodução da sociedade, reprodução de suas estruturas. Não se herda ou não se interessa mais com a herança genética, com as aptidões passadas de pai para filho; Lévi-Strauss leva as ciências sociais para pensar na reprodução e nascimento como herança de um nomos, uma comunidade e modo de viver anterior ao nascimento da criança, e tão logo esteja nascida, tão logo será posta para participar de tal nomos, de modo tão intenso e alienante que a sociedade passa a adquirir as feições de natureza; a cultura é naturalizada. Somente à guisa de conclusão, ainda sobre Franz Boas, importante destacar que muito embora tivesse proposto a cultura como esse espaço teórico capaz de separar a antropologia do naturalismo, sua postura diante dos conceitos que canalizavam a filosofia e história natural dentro da antropologia, com a raça, o meio, é quase sempre o de ceticismo: embora preconize o estudo da cultura como método mais adequado para se conhecer uma sociedade, e que rejeite a hipótese evolucionista da superioridade entre povos e/ou raças, o ponto de Boas não passa por abolir a importância dos estudos biológicos, a genética e fisionomia, como saberes da disciplina antropológica; Boas, antes de mais nada, pretende declarar cientificamente infundadas as teorias de que a psicologia de uma pessoa possa ser explicada por sua origem genética, preferindo pensar na questão das patologias sociais como oriundas de causas estritamente sociais.
o principal modelo de Lévi-Strauss, pelo que parece
se destaca por definir de forma positiva a separação e distinção
transpor esse arsenal linguístico e conceitual para um gênero, se não de historiografia especulativa, que dema o desenvolvimento da raça e/ou culturas e/ou civilizações, surge como símile da história natura uma história progressiva e violenta cujo modelo mais proeminente foi a seleção natural de Darwin
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