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quinta-feira, 25 de julho de 2024

15. Travessia pelo bosque adormecido (feat. Aristóteles Fumava Balão)

Alma Nora começou a trabalhar em um escritório no mesmo prédio que trabalha o marido, Azevedo Diniz. Seu intuito de esposa preocupada é fiscalizar a interação dele com outras mulheres. Caso ela o pegue a sós com alguma funcionária, ou em situação de excessiva intimidade, essa funcionária, afirmou a senhora Nora será espancada (Alma Nora nos revelou haver um sua bolsa um cassetete retrátil). A seguir, transcrição do que mais falou Alma Nora: 

“Tô pegando o elevador para ir aonde? Lá no andar do Deus. Eu peguei um escritório no mesmo prédio dele, porque é sensacional. Porque eu vou dar um check toda hora, mulherada, para ver o que está fazendo, com quem tá conversando, se tem muita intimidade, se não tem. Se eu achar que tem intimidade de mais, eu vou bater lá. Ou bota outras pessoas, ou essa mulher vai ser mandada embora.”

O marido preferiu não se manifestar, mas nos corredores de seu escritório, os funcionários fofocaram sobre esse escarcéu. Julieta disse, enquanto pintava as unhas: 

- Estou até vendo onde isso irá dar. 

Malandrinho, o assistente, levantou a cabeça de sua prancha e exclamou:

- O que houve? Estou tentando terminar esse relatório. 

(No papel de sua prancheta, em estilo dos livros de naturalistas, está desenhado um gatinho persa trepando em uma fêmea). 

- Não soube? 

- Não soube. 

- É o novo caso de Azevedo Diniz. 

- O que estuprou a irmã? 

- Esse mesmo. 

Malandrinho fez uma careta de nojo. 

- Esse daí nunca prestou. 

- Pois é. 

- Chegou daquele jeito todo, logo no primeiro dia, lembra? 

- Apresentado pelo chefe? 

- É, como se fosse alguém graúdo. 

- O pai dele é amigo do Júlio César. Foi posto aqui no pistolão.

- Quem falou isso? 

- Sabe o Praxedes? 

- O aleijado? 

- Ele mesmo. 

- Vi ele ontem. Estava me perguntando sobre o jogo. 

- De ontem? 

- Sim, o time do São Cristóvão derrotou o América. Vi ao vivo. dois a um, gol no finalzinho. 

- Achei que o Praxedes era Bangu. 

- É nada. Esse é São Cristóvão roxo. 

- Enfim, como dizia. O Praxedes que viu. Contou tudo. 

- Nada que eu já não desconfiasse. Esse daí é um pilantra.

 - E agora essa. 

- Pois é. 

- Mas o que ele fez? Conta! 

- Dessa vez ele não fez nada. Desde que retiraram as queixas, ele está pianinho.

- O que houve então, Julieta? 

- A esposa dele, aquela Alma do escritório do lado, resolveu começar a trabalhar por aqui só para vigiar o Azevedo Diniz. 

- Quê?? 

- É, ela é esposa dele. 

- Não. 

- Veio para cá mordida de ciúme. Ele já tava de caso com aquela Maria Maria. 

- Aquela que vive com as pernas amostra? 

- Isso, que vive na Rua dos Inválidos. 

- Essa é uma vagabunda e todo mundo sabe disso. 

- Sim, não sei como toleram gente assim em nosso escritório. 

- Um escritório tão direito, tão reconhecido. 

- Gentinha. 

A referida Maria Maria era uma moça de vinte e seis anos de idade que de noite trabalhava como prostituta. Tirava seu óculos, se disfarçava com uma maquiagem pesada e uma peruca loura, e ninguém sabia que Maria Maria era Leila Beatnik. 

No fim daquele mesmo dia, Leila Beatnik foi encontrar um cliente. Se colocou deitada, somente de calcinha e sutiã sobre a cama do homem. Os pelos pubianos escuros saltavam para fora e seus peitos se esparramavam como os de cachorra prenha. 

- Gostou?, sussurra ela em tom inocente, se contorcendo toda e fazendo biquinho. O homem segura Leila Beatnik pelo pescoço e puxa-a para perto, bem perto de si. Ela grita baixo: a peruca escorrega e sai do lugar. Leila Beatnik tenta segurar, mas seus cabelos caem na cama, e depois no chão. O homem, indiferente a cor de seus cabelos, olha-a com ferocidade. Seus dedos apertam os ossos frágeis de Leila Beatnik. Ela sussurra de novo: 

- Papai não gostou? 

O homem desfaz, devagar, a sua cara de malvado em um sorriso de bêbado: 

- Você está linda, Leila. 

Os dois se beijam. Ele deita por cima dela e fazem amor no tempo do rádio tocar três músicas. Ele paga ela. Vão até a porta, trocam um beijo e se separam. Ele voltará para sua família, ela ficará contando o dinheiro da noite. Típica fantasia masculina, pensava Leila Beatnik, enojada. Misoginia e pedofilia. Preciso fingir ser uma garotinha travessa para ele ter tesão. Ai, como é cansativa essa vida de puta. Fazer ginástica, raspar todo dia os pelos da perna, passar perfumes cheirosos, loções de pele e todo gênero de farmácia, para vir um homem desses e sequer olhar para o meu corpo. Leila Beatnik pega sua câmera fotográfica. Posa na frente do espelho e tira uma foto. Depois de revelada, fica olhando a si mesmo, nua. Era bonita? Não sabia, mas ela não se excitava com seu corpo. O que excitava Leila Beatnik era que os outros reconhecessem nela a sua beleza. Se não recebia essa aprovação, Leila Beatnik sentia-se mal. Às vezes, tinha náuseas e cefaléias intensas. Chegava do trabalho do escritório e se atirava na cama. Tudo que queria era que pudesse dormir, mas a dor de cabeça intensa impedia. Sentia vontade de chorar. Gritava com o travesseiro enfiado na boca. Depois de muito tempo se queixando, resolveu aceitar a recomendação feita por Azevedo Diniz e procurou ajuda psiquiatra. 

Foi assim que passou a se consultar com Nina Rodrigues, uma psiquiatra jovem, mas que Azevedo Diniz afirmou ser muito talentosa. Para Maria Maria, Nina Rodrigues era deslumbrante. Não somente porque era bela como uma flor que lembra ter visto na infância mas que esqueceu as formas, mas Nina Rodrigues era bondosa. Sempre ouvia, com seu rosto de boa menina, tudo aquilo que Maria Maria falava. Dava bons conselhos, defendia nas horas corretas, criticava às vezes até demais, mas sempre para o bem de Maria Maria. Não sabia se era sua amiga, se sua namorada ou se sua mãe. Não podia ser todas juntas? Mas Maria Maria mesmo assim não poderia dormir com ela. Pensava, antes de dormir, no corpo nu de Nina Rodrigues, mas não via nada: a nudez de Nina Rodrigues era para Maria Maria impensável. O que devia haver por baixo da roupa da doutora? Debaixo daquele jaleco branco e cumprido. Por baixo dos óculos e do penteado de boa menina. Por baixo do sorriso treinado na arte de agradar. Por baixo das palavras que fingia. Quem falava ali, jamais era Nina Rodrigues, sabia Maria Maria. E se falava de coração aberto sobre Leila Beatnik, em troca Nina Rodrigues devolvia palavras calculadas, seguindo a risca os saberes de Freud de que o psicanalista deve ser um ator do método. 

Foi isso que o velho Freud disse para Nina Rodrigues, enquanto viam o anoitecer da praia. 

- Nina, gostaria de te agradecer.

- Pelo quê, Sigmund? 

- Por tudo. E também te dizer...

Freud desvia o olhar. Nina procura compreender o que Sigmund quer dizer, mas não compreende. Respira fundo e se aproxima: 

- Pode me contar, Sigmund. 

- Tem certeza? Não irá agradar. 

- Pode me contar. 

Freud fala baixo, perto do ouvido de Nina, mas sem tocá-la de forma alguma, evitando o contato por um escrúpulo cavalheiresco: 

- Você não é boa psicanalista. 

Nina Rodrigues arregalou os olhos, mas fingiu não sentir nada. Manteve o tom de voz disciplinado:

- Não acha?, disse, tentando parecer indiferente às palavras de Freud. Este fez cara de choro. 

- Não queria magoa-la, Nina. 

- Você nunca quer magoar. Você sempre mágoa, resmungou Nina, a indiferença subitamente cedendo a um tom maldoso de certeza irrefutável. 

- Não é assim. 

- Tá, Sigmund. Por que não sou boa psicanalista?

- Bom, Nina... você não...

- Não o quê?

- Você não está fingindo.

- Como?, exclamou Nina Rodrigues, incrédula com as palavras cínicas de Freud. Ele tentou se justificar: 

- Veja bem, Nina Rodrigues. Você não deve ser você para seu paciente. Você não deve ser nem quem seu paciente deseja. Você deve ser quem seu paciente precisa e não sabe que precisa.

- Quer dizer que estou deixando minhas paixões interferirem no meu trabalho? Freud olha para a lua entre os morros por trás da praia ao responder: 

- É necessário alguma frieza. É necessário disciplinar seu corpo.

 - O que quer dizer? 

- É necessário seguir um método, Nina. É necessário haver um dogma. Uma prescrição de conduta. O psicanalista não pode seguir somente sua intuição. 

- Você então sub-entendeu que eu não tenho entendimento: que sou toda sensibilidade. 

- Não disse isso. Disse que somente acho que você é muito livre nos seus procedimentos. Você se deixa levar pelo que sente do paciente. Você não deve desejar seu paciente, você deve desejar a psicanálise. Você deve desejar a psicanálise. Você deve desejar a psicanálise. 

Nina Rodrigues baixou os olhos, chorosa. Freud se aproximou, e incapaz de tolerar a distância, tocou no ombro de Nina Rodrigues, mas ela repeliu. Com a voz firme, mas o coração apertado, disse: 

- Melhor eu ir, Sigmund. 

Ele se afastou e colocou as mãos no bolso, olhando para a lua:

- Sim. Está ficando tarde. 

Ficaram alguns segundos sem silêncio, examinando as estrelas. Olharam um para o outro e trocaram um beijo rápido. Cada um foi para sua cama. No dia seguinte, Freud voltou para a Alemanha. Nunca mais se viram: Quando Nina foi visitar a Europa, Freud já estava morto.

Carl Jung terminou o charuto oferecido por Dr. Freud, bebendo o último gole do café. Amassou o papel que continha o sonho relatado para seu mestre e amigo durante aquela conversa, que durou aproximadamente doze horas. 

- Mais uma coisa, Sigmund, antes de ir embora. Quando a minha mãe estava morrendo, sabe o que eu disse? 

- Não faço a mínima idéia. Conte-me. 

- Eu a agradeci por tudo que ela tinha feito por mim, e que ela poderia ir embora em paz. Pois seu filho havia se tornado um homem, e estava prestes a conseguir realizar o seu maior sonho. 

- Seu ou dela?, disse Freud, com uma pontada discreta de ironia. Enfiou o charuto na boca como se fosse uma máscara capaz de ocultar suas intenções perversas. Examinou o rosto jovem e belo de Carl Jung, enquanto refletia sobre as ideias matricidas do rapaz. Não ouviu bem o que se seguiu, ocupado nesses pensamentos:

- Nosso, Sigmund. Nosso. Pois o que ela desejava é que seu filho seguisse seu próprio caminho. Era uma mulher sábia, enfrentou as piores dores ao longo de sua vida. Fui sortudo nesse aspecto. Muito sortudo.

Carl Jung parou de falar subitamente e ficou estudando o rosto de seu mestre. Imediatamente, com uma velocidade de autômato programado para devolver o enunciado ao outro, Freud respondeu:

- Eu tenho certeza disso, meu caro. Contigo, a psicanálise agora está em boas mãos. E que horas são?

- Tarde, disse Jung examinando seu relógio de bolso.

- Perdemos um pouco a hora hoje.

Dr. Freud levantou-se do sofá, batendo com uma mão no ombro de Jung, segurando o charuto aceso na outra. A fumaça de tabaco caro continuava espalhada pela sala. Serviram-se ainda com mais uma caneca de café preto, terminaram o pedaço de bolo servido pela empregada, e depois de alguma conversa, foram até a porta da casa de Freud. 

- Até a próxima, Sigmund. Tenho certeza de que seremos bons amigos. 

- Não tenha tanta certeza assim, meu caro. A juventude é uma fase de nossa vida marcada pelos equívocos. Não esteja certo de nada. É melhor perder a razão do que teimar como uma criança mimada que requer colo. Siga seu caminho, e a psicanálise, se estiver alinhada com o seu desejo. Nos vemos semana que vem. 

Se despediram e se separaram. Freud foi deitar na cama junto de sua mulher, Martha, com quem havia feito as pazes depois de um pequeno escândalo conjugal que a família conseguiu abafar com sucesso. A filha pequena do casal dormia no berço ao lado. Freud, antes de deitar, olhou para a filha e se sentiu bem. 

Lá fora, Carl Jung sentia o vento alemão castigar seu rosto.  Era um homem alto, muito robusto e tinha um olhar grave. Sombrio, como qualquer erudito. Neto bastardo de Goethe, costumava ser observado pelas mulheres em qualquer local que frequentava. Carregava em sua mala escritos filosóficos, mas não se dedicava à literatura da mesma forma que seu avô. Freud sempre dizia que Jung deveria ler mais poesia e menos ciência. O caminhar bastardo de Goethe, costumava ser observado pelas mulheres em qualquer local que frequentava. Carregava em sua mala escritos filosóficos, mas não se dedicava à literatura da mesma forma que seu avô. Freud sempre dizia que Jung deveria ler mais poesia e menos ciência. 

O caminhante de pernas fortes, cultivadas nos montes íngremes da Suíça, continuava caminhando, indiferente, como se as pernas pudessem resolver as resolver as questões internas que remoía com a cabeça. Um costume da maioria dos psicólogos naquela época, como não pude de notar em minha visita a Berlim. Estive lá no inverno do ano interior da morte de Fréderik, naquele terrível acidente no submarino. Nos reunimos com Freud, almoçamos linguiças alemãs e cerveja que jamais encontrei igual no Brasil. Com os pratos vazios amontoados em cima da mesa e nossas calças já abertas para aliviar a barriga estufada, Fréderik sugeriu darmos uma caminhada. Freud concordou dizendo que era bom para também digerirmos as ideias - os dois discutiam uma complexa questão de estética transcendental que Freud acreditava haver relevância antropológica; na maior parte do tempo, como é de meu hábito, preferia ouvir e guardar o silêncio -. 

Foi então que fiz um comentário: 

- Aqui vocês gostam de caminhar para pensar, não? 

- Claro, é natural, fisiológico. Na sua terra não se caminha também?, questionou Fréderik.

E pensei nos seresteiros sertanejos, deitados no chão cheio de poeira depois do almoço, abraçados à guitarra a dedilhar notas ao acaso e fazer mumunhas com a boca. Ia me precipitar e dizer que não, concluir que o brasileiro é um povo de pensamento preguiçoso, imóvel e leseiro, mas no instante seguinte lembrei das gafieiras cheia até as paredes com os dançarinos correndo por todo salão. 

- Não sei, respondi. 

Fréderik deu uma risada e tirou sarro de minha cara: 

- Você nunca sabe de nada, Pianeiro! É uma figura!

Tentei me justificar, ao mesmo tempo que dei um sorriso complacente:

- Não sou cientista. Não quero pensar o mundo. Basta sentir o que sinto, fazer o que faço, transformar tudo em música, e a música em um gordo salário que me pague bons jantares como o de hoje. 

- Deveria ler um pouco de Emanuel Kant, não irá se arrepender, disse Freud, sorridente. 

- Sim, concordei vagamente. 

- Mas não saber se andam na sua terra?, continuou Frederik a me debochar. Dei de ombros. 

- De certo modo, sim, respondi. 

Os dois deram boas risadas e falaram palavras em alemão que não entendia. 

- Vamos, Pianeiro, vamos, falou enfim Freud, ainda entre risadas. Me levaram a uma casa de mulheres. Lá escolhi uma austríaca branquela e loira que não cheirava bem, mas que mesmo assim chupei. No balcão, um sujeito franzino, vestido só em mangas de camisa, fumava um charuto. Pedi um drink ao taberneiro e perguntei ao homem se podia fumar um pouco no charuto dele. 

- Não sou de fumar cigarro, mas estou com um gosto ruim na boca. 

- Sem problema, me respondeu. Me entregou o charuto e uma caixa de fósforos. Me atrapalhei para acender, mas no terceiro fósforo obtive sucesso. O gosto ruim de fumaça tomou conta de mim. Quase tossi.

- Obrigado, disse ao devolver. 

- Disponha. 

- Como se chama? 

- Franz. E você, de onde é?

- Brasil.

- América do Sul? 

- Sim.

- Quente lá? 

- Muito quente. 

- Minha empresa abriu uma filial lá. 

- No Brasil? 

- Não, Argentina. 

- Ah.

- Talvez viaje para conhecer.

- Ótimo. Argentina é muito bonita.

- Conhece?

- Sim.

E depois de breve silêncio:

- E como anda a economia? 

- Da Argentina? 

- De Brasil. 

- Indo. O estado é insuficiente, mas temos grandes reservas naturais. 

- Muito potencial produtivo.

- Muito. 

- Natureza muito bonita, muito rica. 

- E cheia de grandes propriedades para nos roubar, falei, em tom de piada, mas Franz ou não achou graça ou não entendeu. Ele falou como se não tivesse ouvido: 

- E mulher? 

- E mulher? 

- Mulher. 

- Ah, mulher... 

- Muita? 

- Ô. 

- Melhor que Alemanha? 

- Muito. 

Constrangido, pedi licença e fui tomar meu drink em outro ponto do puteiro.

domingo, 21 de abril de 2024

ARREBOL QUADRADO #12: DA QUINTA CATEGORIA

 

O domingo de sol entediava a Azevedo Diniz. Tentava ler a Crítica da Razão Pura, famoso livro de Emanuel Kant, na edição traduzida apressadamente pelo filólogo português Ramos de Mereja e emprestada por um amigo, Kou McLana, que havia recém-chegado de Porto após uns negócios pessoais bem-sucedidos. (McLana era traficante de haxixe marroquino; Porto era um importante entreposto comercial para onde o entorpecente seguia antes de ser distribuído por toda a Europa; graças a McLana, filantrópico estrangeiro em missão de modernizar o Brasil, o produto marroquino passaria a chegar até os burgueses dos trópicos). 

Azevedo Diniz tentava compreender a quádrupla divisão dos juízos kantianos, tão arbitrária, pensava, quanto as das enciclopédias chinesas. Era como o caso do pré-socrático Zenão, em que Aquiles corre para sempre atrás da tartaruga, ou ainda, dos números trans-infinitos: entre 0 e 1 existeria o mesmo intervalo entre 0 e 1000. Qualquer reta poderia ser dividida um número infinito de vezes. Por que então as categorias do entendimento se repartiriam assim, tão raquiticamente, em modestas quatro partes: juízos de quantidade, de qualidade, de relação e de modalidade? Diante da natureza infinita do universo, era até mesmo humilhante que nosso entendimento fosse limitado a número tão ínfimo.

Dia e noite passou Azevedo Diniz pensando nisso. Foi enquanto ia para o batizado de um afilhado seu que ocorreu o caso: no canto direito do coche velho que viajava, caído no chão, Azevedo Diniz encontrou a quinta categoria. Abriu a boca, incapaz de acreditar no que via, mas não havia erro: era mesmo a quinta categoria transcendental do entendimento. Tomou-a para si e, desnorteado, por um ímpeto de honestidade irrefletido de que de imediato se arrependeu, gritou para que o cocheiro parasse. O trabalhador freiou os cavalos e voltou-se para o embaraçado Azevedo Diniz, que não sabia o que fazer com a quinta categoria.

- Cavalheiro, perguntou Azevedo Diniz, tentando esconder a ansiedade, isso - e mostrou a quinta categoria - por acaso pertence ao senhor?

O cocheiro, homem simples chamado Ezequiel Palacios, imigrado do Paraguai depois da guerra, assim como Azevedo Diniz torcia para que ocorresse, sequer compreendeu o que tinha diante da vista, e fez pouco caso da quinta categoria.

- Não, senhor, respondeu, e passou a considerar de algum passageiro ter esquecido. Azevedo Diniz arregalou os olhos, aterrorizado com a possibilidade de perder a quinta categoria, e passou a inventar qualquer desculpa.

- Ah, acho que é meu mesmo, fui eu quem deixou cair, que distraído!, disse Azevedo Diniz, sorrindo de nervoso, e meteu a quinta categoria no bolso da casaca. Ezequiel Palacios não deu a mínima para a questão, simplesmente queria completar a viagem e receber o pagamento. Seguiram então adiante.

Enquanto Azevedo Diniz derramava a água na cabeça enorme de seu afilhado, um menino chamado de Marcinho Taquara, não pensava em outra coisa fora nas filosofias que poderiam ser escritas com aquela quinta categoria que sentia pesada no bolso. 

Terminada a cerimônia, inventou qualquer desculpa para sair o mais breve possível da festa. Quando chegou em casa, já tinha metade de um ensaio na cabeça. Bastou que colocasse no papel. Quando releu o resultado, viu que não fazia justiça ao que ideava, mas também que não estava mal. Demorou ainda alguns dias a retocar o rascunho, e antes do final do mês conseguiu a publicação em jornal prestigioso, de nome “A Coruja Carioca” graças a uma recente amizade com Coelho Neto, o poeta que todos devem conhecer. 

Havia feito tudo mais por prazer intelectual do que por esperanças de recompensa. Sabia que nessa terra a filosofia era conto de fada para uns seis ou sete adultos cultos se baterem por jogos de decifração e raciocínio; sabia também que nessas histórias para meninos grandes, as que mais vendiam eram as que concordavam com os grandes doutores, e não aquelas como as de Azevedo Diniz, que entravam de sola no que pregava o cânone. Além do mais, o que seriam as palavras de Azevedo Diniz contra a do grandioso Emanuel Kant? Menos que nada, sabia muito bem. 

Mas que surpresa agradável teve quando um jovem polímata francês de cabelos escuros ondulados e pele pálida como cera de nome Pierre Jean Ettiené, entrou em cena com um artigo elogioso sobre o ensaio de Azevedo Diniz. 

Pierre Jean Ettiené era formado em filosofia na prestigiosa escola de Sorbonne, e gostava de enunciar essa efeméride biográfica casualmente, como se não fosse proposital, em jantares e passeios mais diversos. Não era exatamente estúpido, mas não abdicou de suas boas relações para ser admitido como professor de filosofia no liceu de Nice. 

Estava preparando sua dissertação sobre a metafísica dos tupinambás brasileiros a partir de documentações de viajantes protestantes. Sua hipótese era que a mentalidade selvagem não seria simplesmente inadequada para o pensamento abstrato, mas que sua mitologia poderia ser entendida como formulação, em nível de intuições empíricas, da realidade transcendental. "Como se houvesse um sistema de tradução entre os mitos dos índios e a mais refinada metafísica de nossa civilização", explicou em artigo de jornal publicado tão logo chegou ao Brasil, em viagem patrocinada pelo Museu Nacional e pela Sorbonne. 

Jean Pierre Etienné aprendia o português com certa velocidade, e embora precisasse do auxílio do dicionário português-francês, conseguiu ler e compreender a revolução proposta por Azevedo Diniz. Se naquela aldeia intelectual o ensaio podia passar ileso, sem qualquer repercução fora comentários formais em mesas de jantares, uma mente como aquela de Jean Pierre Etienné, educada em toda a tradição metafísica europeia, jamais poderia deixar passar em branco a descoberta da quinta categoria transcendental do entendimento. 

Encontrou rapidamente o endereço de Azevedo Diniz e enviou uma carta solicitando um encontro. Naturalmente, pediu que levasse a quinta categoria. Quando Jean Pierre Etienne viu-a de perto, não conteve as lágrimas. Ofereceu uma gorda quantia, e como Azevedo Diniz estava sem dinheiro, não teve remédio fora pedir um preço ainda mais elevado e assim vender a quinta categoria ao francês.

Pouco depois foi publicado n'"A marmota filosófica" um ensaio de Jean Pierre Etienné especulando sobre o que seria da filosofia depois que a quinta categoria fosse estudada e compreendida em toda sua complexidade. No mês seguinte, o primeiro artigo sobre o assunto apareceu em Paris. A comunidade intelectual do mundo inteiro passou então a conhecer o nome de Jean Pierre Etienné. Quando publicou sua tese, no ano seguinte, o francês já era reconhecido como um dos maiores filósofos do mundo, e a quinta categoria do entendimento já era parte da história universal do conhecimento.

Poucos sabem, no entanto, que essa história começou assim, numa mundana carruagem em que Azevedo Diniz viajava. Façamos justiça a Jean Paul Ettiené, que mencionou, em uma rodapé da página 476 do seu segundo livro, Estruturas Elementares do Entendimento, o nome e o ensaio do brasileiro como um dos precursores no estudo da quinta categoria. Seja lá quais forem os motivos da Providência, mesmo com tal menção, Azevedo Diniz não foi capaz de adquirir qualquer notoriedade internacional. No seu país, alguns amigos lhe parabenizaram com afinco pela menção, mas foi só .

Sua curta carreira de filósofo durou ainda mais alguns ensaiozinhos, escritos em prosa confusa, que alguns leitores especializados elogiaram, mas sempre com alguma ressalva. Ele então se entediou do assunto e voltou a escrever poesia.

sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

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