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sábado, 3 de agosto de 2024

17. a iniciação de lola baruch

o fracasso condena, mas liberta, disseram a greta gothe, uma putinha austríaca de cabelos escuros que veio para buenos aires com um marido velho e violento. 

o marido morreu de pneumonia logo depois de ter chegado, o que foi bom: greta gothe era espancada repetidamente pelo marido bêbado fedido de vinho. como tinha boa educação, ela passou a dar aulas para a alta sociedade de buenos aires: de alemão e de piano. não esperava, no entanto, que com a grande guerra viessem para buenos aires tantos professores muito mais aptos, fosse no ofício musical, fosse na arte do alemão. apesar de uma moça bem-educada, ela não era exatamente profissional em nada: ensinava para aqueles latino-americanos, impressionados com qualquer coisa de europeu, apenas os rudimentos que a educação mundana havia lhe ensinado para viver em uma boa família. 

as mulheres nesse tempo eram modeladas para serem esposas e donas de casa: para parir e alegrar o ambiente doméstico. digo para parir porque o sexo, para elas, deveria ser estritamente biológico. as artistas do sexo eram mesmo as putas, que os maridos, na calada da noite, se engraçavam. greta gothe primeiro não sabia foder: tudo que era era uma austríaca de trinta e dois anos, viúva de mamas caídas de cadela prenha depois de ter dado a luz ao primeiro filho. se sentia velha e indesejada no mercado matrimonial. vivia com os últimos recursos deixado pelo marido, e já pressentia a profunda carestia. 

vir para país miserável desse para passar fome, pensava no seu íntimo, enquanto dava de mamar para o pequenino hans, que devorava o leite espesso de seu seio como se pressentisse se tratar da última ceia. em breve, seu peito secaria e nem ao filho teria o que dar de comer. já não era humilhante ela própria ter que dar leite para o próprio filho? céus, não esperava vir para um país com essa moeda miserável para não poder nem mesmo pagar uma índia pra amamentar meu filho, ela pensava em seu alemão. seu pensar em alemão era seu elo restante com sua terra natal: pela boca, falava somente com seu espanhol desajeitado. pelas mãos, não escrevia mais para o velho continente, porque tinha vergonha de contar de sua situação. os parentes estavam mortos, e não tinha coragem de pedir auxílio para mais ninguém desde que fora humilhada pela família do marido, que nunca aceitou o casamento dos dois - todos imaginavam que greta gothe era uma vigarista pequeno-burguesa em busca de herança, e quem diria, depois de ter aceitado ir para esse fim de mundo, o marido deixou-lhe menos de dois mil pesos e uma barriga emprenhada com seus genes de judeu avarento -. 

olhava o pequeno hans sugar as energias de seu seio e não sabia se devia amá-lo por ser fruto da sua carne, sua única família, ou se devia odiá-lo por ser mais peso preso ao já insustentável peso do seu ser. outro dia leu no jornal sobre um bebê encontrado morto em uma lata de lixo e ocorreram em sua cabeças pensamentos criminosos. matar aquela criança, seria delicioso... mas olhava os olhinhos de seu hans e sabia que seria incapaz, não seria? sim, seria incapaz de matar seu próprio filho, mas alguma coisa era preciso ser feita, algum limite precisava ser ultrapassado. não podia mais trabalhar como professora, tentou o emprego de secretária, mas não conseguiu encontrar nenhum. o desemprego, naquela buenos aires cheia de imigrantes italianos, estava enorme. greta gothe odiava o cheiro daqueles italianos chegando das fábricas para dormir na pensão claustrofóbica em que vivia desde que perdera o emprego na casa dos ocampo. a família de aristocratas parasitas, herdeiros de cargos públicos e instancias conquistadas à sangue dos índios, havia preferido contratar uma certa madame carrouges, uma francesa velha e com uma verruga na ponta do nariz, para instruir as crianças. a senhora ocampo não gostava de ter uma mulher jovem e bonita, mãe solteira e viúva, dentro de uma casa de família.

demitiram greta gothe com a desculpa de não desejarem ser confundidos com germanófilos: que os tempos de guerra implicavam em uma politização da vida cotidiana. lamento, ela disse, dissimulando uma carinha de tristeza, mas nesse tempos duros de guerra, precisamos nós, bons argentinos, reafirmar nossa ligação com nosso sangue, com nossa raça, com nossa herança latina. não podemos compactuar com um povo inassimilável em nossas terras, com a boa raça, reconheço, dos germânicos. aqui não é lugar para vocês, terminou por dizer e desde então nunca mais pisou na mansão dos ocampos. 

greta gothe portanto estaria arruinada se não aceitasse ir até onde sua moral não permitia: não matou seu filho, mas vendeu seu corpo. uma italiana de nome helena piglia, que morava na pensão e trabalhava de puta, disse que aquela fisionomia teutônica de greta gothe seria um espécime bem-vindo no bordel de madame rousseau. ela explicou que madame rousseau prezava sobretudo por um cardápio humano variado: se orgulhava de oferecer, em seus prostíbulos refinados, a maior variedade de raças e sub-raças. essa fisionomia austríaca de greta gothe seria certamente um artigo raro, ela insistia, toda vez que se reuniam. demorou certo tempo, é claro: as ideias morais precisam ser gradualmente dissolvidas, precisam ser submetidas a banhos de ácido constantes, até que se desfaça o plástico artificial que a civilização impôs sobre os órgãos animais, de instintos puros, irrestritos. 

greta gothe, quando chegou às mãos de madame rousseau, era uma mulher assustada, mas de constituição vulnerável, capaz de, por conta de sua precária situação material e psicológica, desfazer-se de todas razões morais cultivadas ao longo de sua formação, e se tornar aquilo que precisava se tornar para sobreviver na selva de velhas casinhas baixas sob o entardecer e de prédios em construção por operários italo-hispânicos que caracterizavam a vida urbana de buenos aires. a primeira vez que fez e recebeu o dinheiro por ter feito, se sentiu horrível, uma criminosa, mas madame rousseau, dotada nos ardis e nas palavras mais doces, tranquilizou-a como uma pantera velha amansa um filhote assustado diante da adrenalina de capturar a primeira presa. madame rousseau era uma professora talentosa, sabia disciplinar daquela forma que faz o pupilo acreditar que o condicionamento era na verdade libertação: e não era, afinal, a liberdade aquilo que greta gothe conquistava, ao libertar seu corpo do destino inerte de dona de casa? aprendeu aquilo que todo homem desejava: com sua língua, treinada nos segredos do amor físico, fazia os maridos esqueceram suas esposas. com o jeito que se movia, com a forma elegante e vagabunda com que falava, seduzia. era justo pagar essa nova liberdade com uma nova escravidão, concluiu certa vez, para tranquilizar a nova lola baruch. e repetiu à jovem , como se fosse de sua autoria: o fracasso condena, mas liberta, minha querida. essas palavras não pareceram ter repercussão no espírito de lola baruch, que silente se dirigiu à alcova. tirou a roupa extravagante com que fora vestida, e ficou somente de conjunto. tentava não pensar em nada, e até conseguia. então ouviu o barulho da porta. à meia-luz, não viu muito do que acontecia, e também fez questão de fechar os olhos. pena que não podia fechar o nariz e não sentir o cheiro de álcool barato, fechar os ouvidos e não sentir a voz baixa e indecente, fechar a pele e não sentir a baba escorrendo em seu pescoço, a barba mal-feita espetando seu queixo, o toque bruto machucando a pele sobre suas costela.

16. o destino de lola baruch

fazia frio. lola baruch se envolvia com o único lençol que havia encontrado na casa. em sua cabeça, pensava nas palavras que nina rodrigues havia dito. mas não parecia nina rodrigues: parecia uma gêmea maligna, com penteado diferente e usando maquiagem. chegou de vestido, e de braço dado com telles. a voz, no entanto era a mesma. cumprimentou lola baruch, e perguntou por novidades. lola baruch estacou, olhando ora para nina rodrigues, incrédula com aquele jeito de se portar, ora para telles, de feição séria, levado por ela como um cachorrinho bem-alinhado, com cabelos repartidos, barba feita e um terno engomado. 

lola baruch havia passado alguns dias fora da cidade e, sem aviso, tudo mudou. chegou e descobriu que azevedo diniz estava foragido, acusado de ter violado a irmã cleópatra. não quis acreditar, mas o silêncio de thomas plínio, a quem procurou no seminário, fez que pensasse o pior. 

- venha, disse thomas plinio por fim, venha rezar pela alma de nosso amigo. e beatamente se ajoelho no genuflexório e fechou os olhos.

ola baruch não viu remédio fora fazer uma prece. depois de ditar algumas palavras improvisadas a jesus, abriu o canto do olho e viu que thomas plínio ainda rezava. esperou quase cinco minutos até que ele abrisse os olhos, se levantou e viu que eram observados por um rapaz de pele sebosa e cabelos longos. pelas vestes, era seminarista também. 

- olá, thomas.

- olá, kelvin dibiase, respondeu o outro. os dois passaram a conversar sobre o que havia acontecido a uma freira, lucrécia, que lola baruch não conhecia e cuja história não interessava. depois de alguns instantes se escapuliu. nada no entanto foi mais chocante do que a carta que encontrou ao chegar em casa. um moleque entregou e ela pagou com uma moeda. era de rené descartes, o velho cadeirante, ex-senador, que escrevia a seu pai solicitando sua assistência na conspiração contra o presidente. lola baruch tremeu. tentou fechar a carta, mas o lacre já estava violado. não havia como fingir que não abrira, então atirou a carta no fogo. 

por causa desse ato involuntário, quando o novo presidente foi eleito pela junta provisoriamente que havia tomado o poder, um vizinho que trabalhava no ministério da guerra avisou que a família estava na lista de suspeitos apoiadores do antigo governo. muito provavelmente, explicou, iriam mandar uma patrulha para capturar e torturar o pai de lola baruch. a família então precisou se esconder no campo, pelo menos durante algum tempo. ficaram numa velha cabana, até que um homem entregou passaportes falsos por baixo da porta. viajaram para a argentina. o inverno era rigoroso, a casa não tinha lareira, e seu pai trabalhava como pedreiro. a mãe queria costurar roupas para fora, mas o pai proibiu, porque seria indigno a uma esposa sua que trabalhasse. 

foi então que lola baruch se tornou prostituta, depois que, em certa noite, enquanto caminhava pelo distrito comercial, lugar de noitadas, fez amizade com uma puta de nome beatriz. não sabia se era nome de guerra ou real, mas lola baruch achou poético conhecer beatriz, aquela menina nova, de pele ainda bem cuidada, a voz de menina angelical,  um submundo infernal e portenho, entre marinheiros fedendo a suor e dandies esquisitões que colocavam drogas nas bebidas das mulheres que queriam levar para cama. quando reencontrou beatriz, ela estava acompanhada de condessa rousseau, uma suíça de uns cinquenta e poucos anos de idade que fingia ser uma francesa de quarenta e dois. a maquiagem pesada ajudava no disfarce, pelo menos na meia luz que banhava o submundo de buenos aires. sob a luz clara, a maquiagem de condessa rousseau se tornava uma expeça massa argilosa cor de pele, como uma fina porcelana repleta de sulcos que se moviam junto de seu rosto. condessa rousseau acho lila baruch bonita, bem formada de corpo. depois de dobrar o salário inicial, a menina enfim cedeu. 

- excelente. começamos na próxima noite, disse a condessa, com um sorriso amplo que revelava todas as rachaduras de seu rosto.

sábado, 18 de maio de 2024

ARREBOL QUADRADO 13# a máquina e o corpo

Nina Rodrigues adiantou o bisturi na direção de uma coelha grávida, o sanguíneo  abdômen aberto diante de seus olhos serenos. Numa incisão precisa, que pelos anos de Faculdade há muito estava habituada, extraiu do útero uma placenta. Com cuidado, depositou o bolo carnoso do anestesiado animal em sua cavidade peritoneal. 

Com o bisturi ainda em punho, olhou a hora no relógio de parede, que girava, como sempre, o perpétuo mecanismo em seu sentido de círculo. Ainda era cedo. Precisava encontrar com Dr. Freud para as lições de psicologia, mas ainda tinha mais meia hora, tempo suficiente e até mesmo de sobra para terminar. 

Nina Rodrigues voltou então seus olhos para a coelha grávida; verificou que a placenta se enxertara, por conta própria, no intestino do animal, e que se alimentava normalmente, como se ali tivesse nascido. Satisfeita com o resultado, dirigiu-se aos ovários pequeninos, e executou uma operação chamada pelos médicos de ablação, em que se suprime a função do corpo lúteo de gravidez. Demoraram alguns minutos, mas as demais placentas ainda alojadas no útero, uma a uma abortam. Apenas a placenta anômala, situada na cavidade peritoneal, se manteve intacta. 

- Eis um exemplo no qual o intestino se comportou como um útero e, poder-se-ia mesmo dizer, mais vitoriosamente que as placentas, digamos, "naturais", disse, satisfeita, Nina Rodrigues a Gilberto Telles, seu assistente, que de perto observava tudo. Mantinha certo ar de desinteresse, que Nina Rodrigues interpretava como certo desdém. Quando Gilberto Telles, também conhecido pelo seu apelido de Sorriso falava, no entanto, sua voz era amável, contraste que, para ela, somente exagerava seu ar arrogante.

- Está me dizendo que discorda de Aristóteles?

- Ahn? 

A médica sentiu-se verdadeiramente confusa. Claro que havia lido Aristóteles, mas somente no colégio, quando se preparava para a carreira de medicina. Guardava alguma memória do que ensinavam os professores, mas no campo médico, há muito, ela sabia, os ensinamentos do velho estagirita eram mais que ultrapassados. Não podia entender, portanto, como em pleno século XX alguém poderia ter o trabalho de refutar Aristóteles, já que a própria história havia feito a gentileza de fazê-lo.

- O que a senhorita afirmou, explicou Sorriso, vai diretamente contra o que ensinava Aristóteles.

- Olhe, Telles, não sei como anda gastando suas noites, mas sei bem de uma coisa: não é lendo a filósofos de mil anos atrás que irá se tornar um bom médico.

- Não acha que exista sabedoria no passado?

- Evidente, mas a sabedoria tem hora. E agora - ela indicou a coelha, já acordada, que caminhava na mesa de dissecação - a hora é outra. 

Como muitos homens da época, Gilberto Telles cultivava menos o espírito e mais a afetação. Não era estúpido, como se vê, mas também não esquecia de que a inteligência é precedida por uma dimensão estética que lhe antecede e lhe prepara a recepção, assim como uma carta com brasões e belo envelope dispõe o leitor aos melhores sentimentos quanto ao que virá. Esse, talvez, fosse o defeito capital de Nina Rodrigues: não o deslumbramento com a ciência e a crença religiosa no progresso, que eram mais defeitos de época do que de individualidades; mas sim sua inocência diante da autossuficiência da razão em um mundo que funcionava irracionalmente. Sua honestidade absoluta diante do conhecimento que lhe impedia de perceber como saber por si mesmo era muito pouco, e embora por seu esforço tivesse chegado muito longe - mais longe do que qualquer um imaginaria chegar - dentro de sua área profissional, como ainda veremos, sua pobre inocência vedaria oportunidades e mesmo lhe faria ser passada para trás. 

Talvez sejam coisas relativas à educação, à formação. Filha de comerciantes, nunca foi educada para os ambientes acadêmicos: o discurso que aprendeu era destinado aos salões e salas de jantares. E mesmo esse, pobre criatura, sentia no seu íntimo mal assimilado. Quando via a desenvoltura que sua irmã agia diante das visitas, ou então a graça e elegância com que Lola Baruch era cortejada pelos rapazes, Nina Rodrigues se envergonhava. Ela estava no meio do caminho: entre um destino masculino - a Faculdade de Medicina - e um feminino - a Casa -, e por isso não estava em nenhum dos dois. Nina Rodrigues era, mas era pela metade. Havia se tornado alguém, mas havia, era inegável, se tornado errado. Infeliz nos dons cortesãos dos salões literários, sem jeito para visitar os teatros, a fala tropeçando quando tomava o discurso, tudo que fazia bem era com as mãos e olhos, era fechar a boca, se enfiar numa sala, dissecar animais, ler livros, escrever. 

Seu assistente, por isso, sentia-se injustiçado. Sabia que roubava a cena em qualquer evento público. Como estava submisso a essa vagabunda? Somente poderia estar de caso com Frederik, ele tinha certeza. E enquanto ela dissecava animais, olhava Nina Rodrigues dos pés a cabeça, avaliando seu tipo de mestiça. "O cumprimento jugulo-púbico de uns 13 cm; o xifo-epigástrico de uns 11 cm; epigástrio-púbico: 19 cm; xifo-púbico: 32 cm; jugulo-púbico: 46 cm; do membro superior: 50 cm; do membro inferior: 72 cm. Já o diâmetro transverso-torácico: 28 cm; do antero-posterior torácico: 18 cm; do transverso hipocondríaco: 25 cm; do antero-posterior hipocondríaco. 17 cm. do bi-ilíaco: 21 cm. Do abdômen superior: 5 cm, e o inferior uns 8 cm. O total uns 14 cm. O tórax deve ser de pelo menos 8 cm. O tronco, 26 cm. Membros de 133 cm. Pesa pelo menos uns 50 Kg. Altura de uns 160 cm. É um longetipo, como a maioria das mulatas. Estatura excedente da média, imagino". Não achava Nina Rodrigues feia, mas também não achava seu tipo bonito. Dr. Fréderik talvez gostasse. 

Primeiro aquela moça tímida, falando pouco, lhe pareceu desejável. Não era para se casar, apenas uma noite de diversão. Fez uma investida e foi recusado. O orgulho ferido abriu a porta para que desgostasse de Nina Rodrigues. Passou a observar como era pequena demais para que tivesse o cargo que tinha. Sentia-se muito satisfeito de, nos eventos que frequentavam juntos, era ele que brilhava, em conversas de salão, e não ela, não obstante fosse sua superiora. Voltavam juntos, e na carruagem, às vezes sentia a atmosfera ruim. Sabia que aquilo a humilhava.

Que podia fazer? Fora desde menino criado para aquilo. Lera os clássicos não só para ler, mas para que pudesse lhe empregar. Nina Rodrigues era estúpida: achava que conhecê-los era questão de saber, quando na verdade era questão de falar, de fazer seu saber parecer bem, fosse qual fosse seu conteúdo. Sentia, é verdade, alguma pena dela, mas naquela corrida de ratos não podia recuar até que fosse alguém. Fora, afinal, para isso que havia sido criado. Para ser um grande médico, quem sabe deputado, ou conselheiro particular do presidente. Não queria ser para sempre o serviçal de uma mulata que se meteu no mundo dos homens. Não iria recuar diante de sua fraqueza inata. De memória, recitou:

- "Olhando um pouco à frente vi o imortal mestre de todo homem de saber sentado em reunião filosofal. Honrarias todos vão lhe oferecer".

- Que se trata disso, afinal?

- Dante, no quarto canto do Inferno, descreve nessas palavras a Aristóteles: a ciência certamente se transforma, mas sua sabedoria seguirá até o fim dos tempos imortal. Onde Aristóteles errou foi para que pudéssemos acertar. E onde erramos, podemos buscar correção em seus acertos, mais sapientes ainda por estarem corretos mesmo com a desvantagem de mais de mil anos.

- Não sei aonde queres chegar. Não trato de Aristóteles, trato do sistema reprodutor de uma coelha.

- A natureza - diz ele em A Política - não procede mesquinhamente tal como os cuteleiros de Delfos, cujas facas servem para muitos usos, mas, peça por peça, o mais perfeito de seus instrumentos não é aquele que serve a muitos trabalhos, mas apenas a um.

- Se o que falas é verdadeiro, o velho estagirita parece ter confundido a maquínica faca com o orgânico corpo; é verdadeiro que melhor é a máquina quanto mais perfeita seja sua finalidade, mas para a entidade orgânica, é o oposto que é válido: melhor será o corpo capaz de muitos fins, e não somente um. Essa é a diferença entre corpo e máquina: e se a evolução engendrou o primeiro, é porque a finalidade perfeita do mecanismo, diante do jogo da sobrevivência, é inferior à inacabada e polivalente plasticidade do corpo.

Os dois então ficaram em silêncio. Havia certo constrangimento no ar. Nina Rodrigues examinou a hora e viu que já era melhor se preparar para sair. Mandou seu assistente arrumar tudo e trancar a porta do laboratório e foi na direção da casa de Dr. Freud.

sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

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