sábado, 18 de maio de 2024

ARREBOL QUADRADO 13# a máquina e o corpo

Nina Rodrigues adiantou o bisturi na direção de uma coelha grávida, o sanguíneo  abdômen aberto diante de seus olhos serenos. Numa incisão precisa, que pelos anos de Faculdade há muito estava habituada, extraiu do útero uma placenta. Com cuidado, depositou o bolo carnoso do anestesiado animal em sua cavidade peritoneal. 

Com o bisturi ainda em punho, olhou a hora no relógio de parede, que girava, como sempre, o perpétuo mecanismo em seu sentido de círculo. Ainda era cedo. Precisava encontrar com Dr. Freud para as lições de psicologia, mas ainda tinha mais meia hora, tempo suficiente e até mesmo de sobra para terminar. 

Nina Rodrigues voltou então seus olhos para a coelha grávida; verificou que a placenta se enxertara, por conta própria, no intestino do animal, e que se alimentava normalmente, como se ali tivesse nascido. Satisfeita com o resultado, dirigiu-se aos ovários pequeninos, e executou uma operação chamada pelos médicos de ablação, em que se suprime a função do corpo lúteo de gravidez. Demoraram alguns minutos, mas as demais placentas ainda alojadas no útero, uma a uma abortam. Apenas a placenta anômala, situada na cavidade peritoneal, se manteve intacta. 

- Eis um exemplo no qual o intestino se comportou como um útero e, poder-se-ia mesmo dizer, mais vitoriosamente que as placentas, digamos, "naturais", disse, satisfeita, Nina Rodrigues a Gilberto Telles, seu assistente, que de perto observava tudo. Mantinha certo ar de desinteresse, que Nina Rodrigues interpretava como certo desdém. Quando Gilberto Telles, também conhecido pelo seu apelido de Sorriso falava, no entanto, sua voz era amável, contraste que, para ela, somente exagerava seu ar arrogante.

- Está me dizendo que discorda de Aristóteles?

- Ahn? 

A médica sentiu-se verdadeiramente confusa. Claro que havia lido Aristóteles, mas somente no colégio, quando se preparava para a carreira de medicina. Guardava alguma memória do que ensinavam os professores, mas no campo médico, há muito, ela sabia, os ensinamentos do velho estagirita eram mais que ultrapassados. Não podia entender, portanto, como em pleno século XX alguém poderia ter o trabalho de refutar Aristóteles, já que a própria história havia feito a gentileza de fazê-lo.

- O que a senhorita afirmou, explicou Sorriso, vai diretamente contra o que ensinava Aristóteles.

- Olhe, Telles, não sei como anda gastando suas noites, mas sei bem de uma coisa: não é lendo a filósofos de mil anos atrás que irá se tornar um bom médico.

- Não acha que exista sabedoria no passado?

- Evidente, mas a sabedoria tem hora. E agora - ela indicou a coelha, já acordada, que caminhava na mesa de dissecação - a hora é outra. 

Como muitos homens da época, Gilberto Telles cultivava menos o espírito e mais a afetação. Não era estúpido, como se vê, mas também não esquecia de que a inteligência é precedida por uma dimensão estética que lhe antecede e lhe prepara a recepção, assim como uma carta com brasões e belo envelope dispõe o leitor aos melhores sentimentos quanto ao que virá. Esse, talvez, fosse o defeito capital de Nina Rodrigues: não o deslumbramento com a ciência e a crença religiosa no progresso, que eram mais defeitos de época do que de individualidades; mas sim sua inocência diante da autossuficiência da razão em um mundo que funcionava irracionalmente. Sua honestidade absoluta diante do conhecimento que lhe impedia de perceber como saber por si mesmo era muito pouco, e embora por seu esforço tivesse chegado muito longe - mais longe do que qualquer um imaginaria chegar - dentro de sua área profissional, como ainda veremos, sua pobre inocência vedaria oportunidades e mesmo lhe faria ser passada para trás. 

Talvez sejam coisas relativas à educação, à formação. Filha de comerciantes, nunca foi educada para os ambientes acadêmicos: o discurso que aprendeu era destinado aos salões e salas de jantares. E mesmo esse, pobre criatura, sentia no seu íntimo mal assimilado. Quando via a desenvoltura que sua irmã agia diante das visitas, ou então a graça e elegância com que Lola Baruch era cortejada pelos rapazes, Nina Rodrigues se envergonhava. Ela estava no meio do caminho: entre um destino masculino - a Faculdade de Medicina - e um feminino - a Casa -, e por isso não estava em nenhum dos dois. Nina Rodrigues era, mas era pela metade. Havia se tornado alguém, mas havia, era inegável, se tornado errado. Infeliz nos dons cortesãos dos salões literários, sem jeito para visitar os teatros, a fala tropeçando quando tomava o discurso, tudo que fazia bem era com as mãos e olhos, era fechar a boca, se enfiar numa sala, dissecar animais, ler livros, escrever. 

Seu assistente, por isso, sentia-se injustiçado. Sabia que roubava a cena em qualquer evento público. Como estava submisso a essa vagabunda? Somente poderia estar de caso com Frederik, ele tinha certeza. E enquanto ela dissecava animais, olhava Nina Rodrigues dos pés a cabeça, avaliando seu tipo de mestiça. "O cumprimento jugulo-púbico de uns 13 cm; o xifo-epigástrico de uns 11 cm; epigástrio-púbico: 19 cm; xifo-púbico: 32 cm; jugulo-púbico: 46 cm; do membro superior: 50 cm; do membro inferior: 72 cm. Já o diâmetro transverso-torácico: 28 cm; do antero-posterior torácico: 18 cm; do transverso hipocondríaco: 25 cm; do antero-posterior hipocondríaco. 17 cm. do bi-ilíaco: 21 cm. Do abdômen superior: 5 cm, e o inferior uns 8 cm. O total uns 14 cm. O tórax deve ser de pelo menos 8 cm. O tronco, 26 cm. Membros de 133 cm. Pesa pelo menos uns 50 Kg. Altura de uns 160 cm. É um longetipo, como a maioria das mulatas. Estatura excedente da média, imagino". Não achava Nina Rodrigues feia, mas também não achava seu tipo bonito. Dr. Fréderik talvez gostasse. 

Primeiro aquela moça tímida, falando pouco, lhe pareceu desejável. Não era para se casar, apenas uma noite de diversão. Fez uma investida e foi recusado. O orgulho ferido abriu a porta para que desgostasse de Nina Rodrigues. Passou a observar como era pequena demais para que tivesse o cargo que tinha. Sentia-se muito satisfeito de, nos eventos que frequentavam juntos, era ele que brilhava, em conversas de salão, e não ela, não obstante fosse sua superiora. Voltavam juntos, e na carruagem, às vezes sentia a atmosfera ruim. Sabia que aquilo a humilhava.

Que podia fazer? Fora desde menino criado para aquilo. Lera os clássicos não só para ler, mas para que pudesse lhe empregar. Nina Rodrigues era estúpida: achava que conhecê-los era questão de saber, quando na verdade era questão de falar, de fazer seu saber parecer bem, fosse qual fosse seu conteúdo. Sentia, é verdade, alguma pena dela, mas naquela corrida de ratos não podia recuar até que fosse alguém. Fora, afinal, para isso que havia sido criado. Para ser um grande médico, quem sabe deputado, ou conselheiro particular do presidente. Não queria ser para sempre o serviçal de uma mulata que se meteu no mundo dos homens. Não iria recuar diante de sua fraqueza inata. De memória, recitou:

- "Olhando um pouco à frente vi o imortal mestre de todo homem de saber sentado em reunião filosofal. Honrarias todos vão lhe oferecer".

- Que se trata disso, afinal?

- Dante, no quarto canto do Inferno, descreve nessas palavras a Aristóteles: a ciência certamente se transforma, mas sua sabedoria seguirá até o fim dos tempos imortal. Onde Aristóteles errou foi para que pudéssemos acertar. E onde erramos, podemos buscar correção em seus acertos, mais sapientes ainda por estarem corretos mesmo com a desvantagem de mais de mil anos.

- Não sei aonde queres chegar. Não trato de Aristóteles, trato do sistema reprodutor de uma coelha.

- A natureza - diz ele em A Política - não procede mesquinhamente tal como os cuteleiros de Delfos, cujas facas servem para muitos usos, mas, peça por peça, o mais perfeito de seus instrumentos não é aquele que serve a muitos trabalhos, mas apenas a um.

- Se o que falas é verdadeiro, o velho estagirita parece ter confundido a maquínica faca com o orgânico corpo; é verdadeiro que melhor é a máquina quanto mais perfeita seja sua finalidade, mas para a entidade orgânica, é o oposto que é válido: melhor será o corpo capaz de muitos fins, e não somente um. Essa é a diferença entre corpo e máquina: e se a evolução engendrou o primeiro, é porque a finalidade perfeita do mecanismo, diante do jogo da sobrevivência, é inferior à inacabada e polivalente plasticidade do corpo.

Os dois então ficaram em silêncio. Havia certo constrangimento no ar. Nina Rodrigues examinou a hora e viu que já era melhor se preparar para sair. Mandou seu assistente arrumar tudo e trancar a porta do laboratório e foi na direção da casa de Dr. Freud.

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