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quarta-feira, 10 de maio de 2023

O ÚTERO COMO TECNOLOGIA DE GUERRA (esboço)

a. PROLEGÔMENOS


Em certa altura d’As palavras e as coisas, em glosa àqueles que fazem “história das ideias ou das ciências”, Foucault afirma que desde antes de Darwin, e mesmo antes de Lamarck,



já se pressentem a grande potência criadora da vida, seu inesgotável poder de transformação, sua plasticidade e esse fluxo no qual ela envolve todas as suas produções, inclusive nós mesmos, num tempo de que ninguém é o senhor. Bem antes de Darwin e bem antes de Lamarck, o grande debate do evolucionismo eteria sido aberto pelo Telliamed, a Palingénesie e o Rêve de D’Alembert.



A citação de Foucault, confesso, está empregada de forma um pouco indevida, mas de forma alguma injustificada. Sentado no banco do réu, diante das testemunhas, justifico o delito cometido. Emprego a citação - que na verdade seria mais uma glosa à historiografia das ideias com que o filósofo não cansou de discordar - como uma espécie de quadro negro, em que esquematicamente sintetizo, ou melhor, ilustro gentilmente ao leitor, aquilo que por nós ficou conhecido como evolucionismo, ou ainda, história natural. O uso, contudo, é indevido, porque logo na sequência Foucault indicará seus limites: é sim uma síntese, mas antes uma síntese que prepara uma crítica, ao demonstrar que aquilo que os historiadores classificavam como sucessão de rupturas, guardavam ainda semelhança com as “ideias” que planejavam romper; e aquilo que os historiadores classificavam como manutenção de continuidades, guardavam diferenças com o que se esperava ser homogêneo.

Esta espécie de aporia, Foucault tentará resolver em obra vindoura, o hermético Arqueologia do saber, livro que, antes de tudo, é uma espécie de exercício de ceticismo: de negar e reduzir ao absurdo aquilo que por costume acreditavam tratar de saber. Ultrapassa, contudo, o ceticismo, e busca formular os fundamentos de seu método: trata-se da recusa de  “remeter o discurso à longínqua presença da origem”, e “tratá-lo no jogo da sua instância”. É o que tentará fazer na sequência da citação que transcrevi, não pensar a história das ideias como um jogo de superação/manutenção de uma origem remota (provavelmente, os gregos), mas inscrevê-lo dentro de uma episteme, esta espécie de linguagem que nos permite pensar, ou melhor, para nos mantermos minimamente fiéis às palavras empregadas pelo autor, traçar o chão em que permite o conhecimento de “aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua heterogeneidade”. Não perderemos mais tempo com Foucault, porém, permitamos ao historiador o doce gesto de uma despedida, que reverbere pela última vez sua voz, que faça um último monólogo, antes de desaparecer para sempre, ou antes de pairar sobre o restante do texto como incômodo fantasma:


Até Aldrovandi, a História  era o tecido inextricável e perfeitamente unitário daquilo que se vê das coisas e de todos os signos que foram elas descobertos ou nelas depositados: fazer a história de uma planta ou de um animal era tantodizer quais são seus elementos ou seus órgãos, quanto as semelhanças que se lhe podem encontrar, as virtudes que lhe atribuem, as lendas e as histórias com que se misturou, os brasões onde figura [...] A história de um ser vivo era esse ser mesmo, no interior de toda a rede semântica que o ligava ao mundo. [...] os signos faziam parte das coisas, ao passo que no século XVII eles se tornam modos de representação. [...] Toda a semântica animal ruiu como uma parte morta e inútil. As palavras que eram entrelaçadas ao animal foram desligadas e subtraídas: e o ser vivo, em sua anatomia, em sua forma, em seus costumes, em seu nascimento e em sua morte, aparece como que nu. A história natural encontra seu lugar nessa distância agora aberta entre as coisas e as palavras.


Curioso notar que, na história pessoal de Franz Boas, seja o homem que abandone a família. Na antropologia, centrada, naturalmente, em outras sociedades, costumam situar a mulher como o objeto de troca que sela a relação e aliança entre as famílias.

É também o padrão que Gilberto Freyre atribui para a formação da família brasileira. Não da família que se tornaria patriarcail, burgueses cuja riqueza possibilitou que encenassem aristocratismo português, inclusive no casamento com a branca; Gilberto refere-se principalmente ao aventureiro, os bandeirantes, os criadores de gados, os pequenos profissionais liberais, enfim, a sociedade que se construiu ao redor da expansão da economia açucareira (a ausência de mulheres europeias, aliadas ao gosto do lusitano, principalmente o menos nobre - estes que Gilberto aponta como o grosso da imigração lusitana: não a aristocracia, mas a precoce burguesia mercante - sentiam pela mulher "exótica", isto é, de fora. Para Gilberto, este gosto lusitano, construído pelo contato frequente pelo contato entre diferentes raças - contato geográfico, contato econômico, contato cultural, contato sexual - teria "predisposto" o português não só ao sexo e relação com as ameríndias, mas também facilitado em seu processo de aterramento, ou ainda, conversão aos costumes locais.

O etnógrafo, pelo menos se levarmos em conta a forma com que Tristes Tópicos deseja espelhar-se na viagem de Jean de Léry ao Brasil, parece sentir espécie de nostalgia deste homem aventureiro, que Jean de Léry talvez personifique com enorme dignidade, mas cuja massa deve ser antes lembrada enquanto desterrada por necessidades econômicas. É isto, pelo menos, que Gilberto sugere sobre o início da colonização do Brasil: os enormes lucros dos engenhos começou a atrair uma variedade de imigrantes, não apenas portugueses, mas foram estes que mantiveram controle e monopólio da região. Uma das vantagens que os portugueses tiveram contra os holandeses, sugere Gilberto, foi a melhor integração com os povos não-europeus (e isto, no caso, referia-se também aos africanos, já exportados como escravos para que atendessem a demanda açucareira).

É atribuído pioneirismo para a teoria antropológica de Lévy-Strauss, cujos ilustres estudos estabeleceram o casamento como fronteira entre natureza e cultura (ou ainda, entre animalidade e humanidade).

O casamento, pois, representaria o poder do ser humano de transformar um produto da história natural, um órgão, o útero, o aparelho reprodutor da espécie em uma tecnologia que ultrapassaria além de sua função natural de, segundo as leis da natureza, reproduzir a espécie.

Por meio de seus estudos sobre parentesco, sobre as variadas formas com que se trocavam filhas entre as mais variadas famílias.

A quantidade de árvores genealógicas que Lévi-Strauss empregou em sua pesquisa é impressionante. O antropólogo deve ter de fato gastado muito tempo - não para encontrar a lei, o princípio subjacente a todos os casos, o tabu do incesto, já que o incesto já era um tema de estudo entre os antropólogos - mas quando Lévi-Strauss compreendeu que a família não uma definição positiva - a filiação biológica pai - mãe - filho -.

O grande achado teórico de Lévi-Strauss foi transformar a família como laço biológico em um conceito negativo, não-biológico: explicado não pela descendência biológica simplesmente, mas por um princípio que parecia universal, embora funcionasse de maneiras um tanto variada, dependendo do lugar e espaço, e enfim, da cultura em questão: o tabu do incesto.

É da sua família não sua mãe e pai simplesmente por serem seus progenitores, mas sim aquele quem está marcado pela interdição do incesto, a quem você não pode se casar, talvez nem se relacionar sexualmente... A moral vitoriana de Freud, pelo menos, demonstrou pelo mito de Édipo que o incesto possui consequências desagradáveis...

Não sei quanto tempo Lévi-Strauss demorou-se para deparar com o princípio universal do incesto, e nem para compreender que assim se fundamentava a separação entre quem era e quem não era da família, e que o casamento representava a aliança entre duas partes distintas... O certo é que em seu estudo sobre as relações de parentesco, de 1949, dedica o livro à memória de Lewis W. Morgan, antropólogo americano importante, que já havia desenvolvido importantes estudos sobre as relações de parentesco e os arranjos familiares, muito embora, e isto talvez explique o desprestígio em que caiu sua obra, a lei que procurava era uma que explicasse a sucessão de diferentes arranjos familiares na história - enfim, um antropólogo evolucionista -.

Os estudos de Lévy-Strauss tendem a ser sincrônicos - e com isto não desejo retomar a patética discussão com a diacronia, que simplesmente busca pensar a transformação da estrutura sincrônica em outra - mas sim que tomam seus objetos de estudos, as culturas primitivas, arcaicas, a partir de certo a priori quase a-histórico - ou, melhor dizendo, predica-lhes um desenvolvimento lento, ou pelo menos, mais devagar de transformação.

Não possuo grande desenvoltura para discutir um assunto tão amplo como o conceito de história em Lévy-Strauss e em sociedades primitivas, confosso. O que me parece certo é que poucas vezes seus trabalhos trabalharam com o problema do conflito. O próprio fundamento do casamento, afinal, é a aliança. Uma política como conciliação. Se pensarmos no aspecto funcionalista, que feito fantasma ronda a antropologia durkheimiana, de quem Lévy-Strauss era espécie de herdeiro, o casamento poderia mesmo ser fundamento da própria sociedade, de sua coesão e permanência; a aliança que separaria o ser humano do mítico estado de natureza: a de Hobbes, mas também a de Darwin: a guerra de contra todos.

Gilberto Freyre enxerga com bastante clareza a importância da família dentro da política - para uma política da guerra, seja a mais breve, como a contra os holandeses ou franceses, seja a guerra verdadeiramente longa travada nos tempos colônias, contra os indígenas.

Gilberto Freyre deixa muito claro que a principal arma empregada contra o indígena brasileiro - além da força-bruta, evidente - foi a reprodução biológica, que no caso não implicava na familiarização do pai à família da mãe: as relações de violência, que evidentemente se deram, também eram acompanhadas de outro fator: a fixação do homem à família das mulheres.

O aspecto aventureiro, nômade, a que se atribui a vida dos bandeirantes, e associado aos filhos sem pais, em Gilberto destaca-se como tais meninos eram "adotados" pela Igreja, e que cada padre jesuíta tinha verdadeiro filhinhos: curumins que apadrinhavam, ensinavam os preceitos do catolicismo, e claro, também lhe serviam como tradutores, meio de relação, com o restante da tribo.

O nomadismo das bandeiras em Gilberto Freyre costuma se colocar em oposição aos senhores de engenho: assentavam-se em um mesmo lugar, até porque seu sustento era a cana e o engenho - exige-se o sedentarismo - e junto do sedentarismo associado ao meio de produção, o reforço dos laços de família, aliança e, importante ressaltar, proteção: da natureza hostil, dos indígenas perigosos, e mesmo do rigor jesuíta: dentro da geografia que os engenhos começavam a desenhar a partir do latifúndio de açúcar e a exploração da força escrava, o poder não estava de fato no Del-Rey, nem na Igreja, mas centralizada da casa-grande, que além de detentores dos meios de produção, estavam a um continente de distância da burocracia estatal e episcopal (a local estava, explica Freyre, dentro do controle da casa-grande).

O sucesso da colonização brasileira da América, explica Gilberto em última instância, se deve à precoce burguesia portuguesa, por sua mistura racial, lusitana, semita e moura, já habituados ao contato com o outro seja pela proximidade geográfica seja pela necessidade mercantil. Acrescento um argumento ao de Gilberto: se não eram aristocratas, não precisavam casar-se por conta de sangue. Eram burgueses, mercadores: suas alianças eram feitas, imagino, tendo em vista os negócios.

Euclides da Cunha, em Os sertões, escreveu o seguinte sobre a "força motriz da história": "Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. e durante o curso desse processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem feições definidas, sem vigor, e as mais vezes inviáveis, nada mais são, em última análise, do que os mutilados inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades". (p. 86)

quinta-feira, 27 de abril de 2023

trechos mortos 2

 

e retiram um pouco do que ocorre em privado para fazer com que apareçam em público, em páginas de livros e jornais. Um afeto que, como já me referi por meio do texto, não se esgota na pessoa, mas em tudo que lhe cerca, que vista desde esta perspectiva personalista, parece fazer de tudo que lhe cerca forma de extensão de sua alma. É impressionante, neste artigo de Oliveira Lima, a sessão entra a página 75 e 80 em que Gilberto dedica-se, com muita atenção, à descrição da casa de Oliveira Lima. Meu desejo seria lê-la por inteiro, para indicar a monotonia própria destes gêneros de catálogos, mas me limitarei a me referir que enumera cada retrato e o respectivo retratado, cada paisagem e o respectivo lugar, os bustos e seus representados, os diferentes objetos e sua ressonância histórica, bandeiras, retalhos de tetos de igreja, mapas, autógrafos de grandes homens, lanças, e também - a rúbrica é do descritor - “as fotografias aqui são mais íntimas”, os retratos de amigos e familiares, 

O perfil que faz de Oliveira Lima - a quem trata com a reverência de um mestre, poderia ser melhor esmiuçada, já que Gilberto também parece dele ter herdado considerável capital simbólico, mas precisarei indicar por aqui, indicando somente que o perfil de Oliveira Lima, trata-se da monumentalização de um homem de letras, da produção letrada no Brasil, como já sugeriu Ângela de Castro Gomes em importante estudo, mas que além de ser uma consagração por meio do olhar subjetivo, da intimidade, é também consagração da amizade, da relação que estes dois homens de letras tiveram. E que não somente o texto torna-se extensão e memória da personalidade homenageada, mas todo o mundo ao seu redor, que Freyre submete a verdadeiro processo de museificação por meio da escritura.

Gostaria de terminar esta fala esboçando algumas conclusões, que mais que concluir, abrem alguns caminhos de continuidades para novas reflexões.

Se formos nos referir ao conceito de cordialidade, que remonta a obra de Sérgio Buarque, facilmente somos devolvidos à escritura freyreana. No tópico relativo à importância do ensino superior, por exemplo, ambas convergem em situar as faculdades como instâncias de desterritorialização das relações familiares típicas. 

Em Casa-Grande & Senzala, a seguinte passagem me parece exemplar, por colocar em choque os antigos valores patriarcais com os novos desejos adquiridos pelos rapazes, a partir do contato com as universidades:


Pobres “meninos travessos” do tempo dos filhos chamarem ao pai de “Senhor Pai”, era deles que o padre Gama sentia falta, escandalizado com os meninos e os rapazes da nova geração: desavergonhados que conheciam melhor as quadrilhas que o padre-nosso; viciados no charuto Havana e na cachucha; leitores de ”pestilenciaes Novelas” e de “Poesias eróticas”, em vez dos “Evangelhos”, das “Epistolas de São Paulo”, e para “para recreio, os Contos Moraes de Marmontel, o virtuoso Telemaco, a Moral em Acção, a Escola de Bons Costumes, a Mestra Bona”, que eram os livros indicados pelo padre para a leitura da mocidade. Rapazes falando alto e dando opiniões sobre todas as coisas na presença dos mais velhos, em vez de se comportarem com respeito de outrora, pelos Pais, pelos Avós, pelos Tios. Nas festas de família, sem que ninguém lhes perguntasse, já os mais salientes davam “o seu voto magistral a respeito da bondade, ou imperfeição do chá”, “applaudindo este pão de ló, reprovando aquele sequilho”; durante a Missa, namoravam o tempo inteiro, dando as costas ao Santíssimo Sacramento para olharem as meninas de frente, “rindo-se para esta, contemplando aquella, galanteando auquel’outra… torcendo o bigóde… penteando com os dedos o furibundo passa piolho”; e quase já não tomavam a benção aos pais!


E em Raízes do Brasil, como se trata-se de uma síntese, lemos o seguinte:


[Ao ingressar nas universidades, os estudantes deveriam] ajustar-se, nesses casos, a novas situações e a novas relações sociais que importavam na necessidade de uma revisão, por vezes radical, dos interesses, atividades, valores, sentimentos, atitudes e crenças adquiridos no convívio da família.  


Em Casa-Grande & Senzala, os meios de produção - o latifúndio, o engenho, a mão-de-obra escrava - possui estreita relação com a produção de uma moral, de uma cultura, ou ainda, para nos situarmos na linguagem freudiana à respeito do aspecto familiar, poderíamos nos referir à produção do desejo. Se as transformações associadas ao fim de um regime patriarcal e gradual inserção do Brasil em uma lógica capitalista global deve ser pensado não só economicamente, mas também a partir de uma série de transformações nesses diversos níveis - culturais, morais, desejantes, etc - esta transformação, além de gradual, deveria levar em conta, para empregarmos uma palavra-chave na obra de Gilberto, uma espécie de tentativa de acomodação dos antigos valores dentro dos novos meios a eles impostos.

Mesmo com a disseminação das práticas letras e o crescente projeto de escrituração do mundo a ela associado, parece-me prudente pensarmos nos usos que essas escrituras mantinham não apenas em nível ideológico - como expressão de uma aristocracia decadente, por exemplo - mas dentro de práticas concretas e sociais a que se destinam estas escrituras, em seu momento de fabricação e uso. A elaboração de textos como os de gênero retrato ou perfil, por exemplo, para além de tratar-se de um projeto de monumentalizar ideologicamente valores das classes dominantes - ou antigas classes dominantes, agora detentoras mais de poderio simbólico do que dos meios de produção propriamente ditos - associam-se também a um outro modo de vida, referem-se a uma outra cultura. 

No caso, pelo menos em relação à geração de Freyre e outros, me parece necessário manter em vista que a produção e circulação do saber passa de maneira estreita pelas relações interpessoais que compõem o restrito mundo de tais intelectuais - não apenas pela questão referida pela sociologia como “herança de capital simbólico e cultural” que as aproximações intelectuais implicam, mas também reconhecer que uma série de textos, primeiro, estão escritos com propósitos afetivos, como se fosse, no limite, extensão da relação de amizade - ou inimizade - que existe entre as partes, mas também, e isso também considero importante, não fazer disso - o afeto, a paixão - espécie de impeditivo para o estudo destes documentos desde a perspectiva de uma história do conhecimento.

Há muito o que se pensar à respeito do aspecto erótico do conhecimento. A história do saber, afinal, é tipicamente representada a partir de uma lógica fria, como se os conceitos, as formas, as idéias, as teorias, as palavras, pensem no nome que quiserem, como se tudo circulasse simplesmente a partir do branco celibatário do papel. 

A tagarelice ruidosa dos sentidos substituída pela gossip privada da consciência, eis o sentido da história?

Pensemos, talvez, em fazer o movimento contrário: se a cordialidade corresponde ao desejo pelo outro, pelnestas relações a-familiares, que encontrasse o desejo onde parece não haver nenhum: que acrescentasse ao idílico céu platônico a sujeira da lama, e fizesse a produção do conhecimento participar da produção dos excrementos: do corpo, do dinheiro, do amor: enfim, a materialidade.



de u - que consiste em desenvolver a escritura fundada na observação - da natureza, dos costumes, etc - na direção daquilo que se caracteriza como “menor”, “sem importância”: como a mobília, a indumentária, a jardinagem, os livros da moda, etc. É, portanto, uma espécie de fusão entre intimidade e a observação, entre o afeto e o objeto, que emprega-se - especialmente por meio de retratos, perfis e testemunhos, gêneros que Gilberto foi pródigo redator - para escriturar, a partir da visão íntima, pessoal, enfim, para empregarmos o termo caro à nossa historiografia, uma escrituração feita a partir do lugar da cordialidade



  1. O DIÁRIO DE VIAGENS E A OBJETIVIDADE


  Nos programas imaginados no intuito de produzir uma literatura autenticamente brasileira, muito importante foi, pelo menos de início, a atenção dada à produção daquilo que a retórica clássica se refere como enargeia, palavra que se referia à clareza produzidas por técnicas descritivas, que pudessem transpor em palavras aquilo que os sentidos percebia.

Poderíamos rastrear a origem desta escritura já nas primeiras cartas e relatos de viagens, que para descrever o novo mundo, desenvolveram tecnologias escriturárias capazes de dar conta da diversidade e estranheza que por aqui encontraram. Dentro do programa romântico, por exemplo, é notável o desenvolvimento e cultivo de uma tecnologia escritural destinada à pintura - emprego o termo pintura pelo claro privilégio da representação do olhar perante os demais sentidos  - da natureza tropical. 

Me refiro ao cultivo de uma tecnologia escritural pictórica pois, embora a partir desta matriz construam-se diferenças línguas, diferentes sistemas de significantes, mantêm-se em nossa literatura em prosa, pelo menos até o século XX, verdadeira tradição pictórica. O que se chama de realismo ou naturalismo, por mais que se nomeie a partir da diferença em relação à literatura romântica, continuou a desenvolver esta escritura pictórica, muito embora trata-se de fazê-la em outra língua. Não é possível outra coisa senão somente executar um esboço do que me refiro, mas se o desenvolvimento do realismo e naturalismo se caracteriza especialmente pela representação do feio ou grotesco - e para falar como Auerbach, pelo fim da adequação clássica entre tema e estilo - mesmo que pelo desenvolvimento de novas línguas, irá se manter o interesse descritivo, que por nós até hoje é reconhecido pelo nome de cor local.

A cor local, muitas vezes referida pejorativamente, como espécie de ideologia literária, contudo pode ser pensada como parte de uma tecnologia escritural, cultivada secularmente dentro de nossa tradição de escritores, e que em sua variedade, implica no desenvolvimento de línguas que se constituem a partir de classificações de entidades concretas - isto é, que existem no espaço -. 

Me refiro a entidades concretas pois é meu intuito distinguir, pelo menos por agora, em caráter experimental, uma escritura da alma, isto é, línguas capazes de tratar os movimentos do pensamento, das paixões, realidades imperceptíveis para os sentidos, uma escritura psicológica, de uma outra, que desenvolve-se a partir da produção da espacialidade, e mais do que espaço, que produzem uma espécie de efeito de presença física. 

Ao fim e ao cabo, não faço outra distinção que não a esboçada no princípio do ensaio entre o diário íntimo e o diário de viagens. E como disse, ambos são importantes dentro da obra de Freyre, que se estava na “vida” pulsante das escrituras da alma, era também - isso é incontestável - um mestre na arte do olhar. 

Se afirmei existirem diferentes línguas, diferentes sistemas de significantes que buscam grafar a observação, é porque poderíamos começar a pensar em uma espécie de história da escritura do olhar. Mas o que me interessa perguntar agora é o seguinte: Como afinal olhou Gilberto Freyre?



Se nomeado assim, no singular, é para em seguida querer decompô-la em pelo menos duas matrizes distintas: uma que consigo rastrear a partir do diário íntimo, e que o próprio autor associa a uma matriz de língua inglesa e a uma cultura protestante. A outra, escritura, disseminada desde uma matriz lusófona, estaria associada ao diário de viagens. 

Assim, estaria construindo, a partir da escritura autobiográfica do diário, dois registros distintos, duas linguagens que buscam dar conta de diferentes objetos: o diário íntimo, cujos objetos de representação básicos poderíamos resumir como (1) a vida cotidiana, (2) a subjetividade do autor e (3) portanto escritura das ideias e paixões que atravessem essa subjetividade.

Em contraste, estipulo uma própria do diário de viagens, interessada sobretudo narepresentação do (1) pitoresco, e com isto me refiro ao extraordinário, o exótico, aquilo que destoa da vida doméstica, (2) do mundo exterior, daquilo que se percebe como merecedor de atenção dos sentidos e (3) se o diário íntimo repousa sobre os movimentos subjetivos, de uma consciência ou inconsciência, o diário de viagens, ao contrário, funda-se na produção da objetividade, de línguas capazes de distingui-los com clareza.

Evidente que trato de tipos ideais ou algo semelhante, e que, na realidade do texto - inclusive no do próprio Gilberto - o registro se torna muito mais polifônico. Os dois diários que Gilberto escreveu - Aventura e Rotina, de 1953, e Tempo morto e outros tempos, de 1975 -, ocorre evidente mistura destes dois “gêneros”, mas me parece razoável, especialmente para propósitos metodológicos, esboçar esta distinção entre diário de viagem, calcado na observação e na escrituração dos sentidos, e do diário íntimo, em que se escritura a subjetividade do autor.

Tratarei de cada um deles com alguma atenção, sem esquecer que o propósito final deste ensaio não é examinar esta dupla escritura que atravessa a obra de Freyre, mas sim esboçar uma espécie de sociologia, em que tentarei demonstrar como estas duas escrituras, embora concorrentes,


sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...