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sexta-feira, 29 de novembro de 2024

UMA CIÊNCIA DIANTE DO MAL: CARLO GINZBURG E O LINGUISTIC TURN

Desejava escrever longamente sobre a sabedoria dos inimigos, mas esse gênero de assunto exige prolegômenos que por si só merecem um capítulo. 

Ao leitor talvez já pareça inadequado tratar de um saber assim, de forma imediata e afetiva - explicitando o ódio - ao invés de me juntar ao culto da objetividade que, sob o epíteto de positivismo, tomou conta da ciência história. 

Se a ciência positivista somente poderia vir a ser pelo exame empírica das coisas externas e naturais, é evidente que, para a ciência histórica moderna, edificada sobre os testemunhos escritos do passado, isso haveria de ser um problema, já que o sujeito, para as ciências naturais positivas, era considerado uma instância da fantasia, ou seja, o local em que os dados empíricos, as intuições sensíveis, eram processadas de formas parciais e infiéis ao real. Se Kant introduz o conceito de coisa-em-si e fenômeno, não se deve esquecer que este se caracteriza pela forma com que um sujeito conhece as coisas.

Ao contrário da opinião positivista, que despreza a subjetividade como máquina torcedora da realidade, estamos aqui inclinados ao fato de que a ciência não somente só pode nascer assim, psicologicamente, mas que é essa psicologia que, no curso de sua experiência, dá os meios para que o próprio conhecimento possa vir a ser. 

Precisamos, para um saber objetivo, não de uma ciência anti-subjetiva, mas sim uma ciência da subjetividade. Essa é a conclusão que se avulta em meu espírito, e que me leva a pensar nos saberes inimigos. O que podemos aprender com eles? Ou ainda, como deve ser o saber  capaz de aprender com eles? 

Essas respostas, antes de serem esboçadas, exigem toda uma série de prolegômenos sobre as condições do saber diante do ódio. Ou seja, do que podemos saber quando nos sentimos tomados por esse sentimento suscitado pelo inimigo, pelo vil, pelo mal, pelo baixo, pelo estúpido, etc. 

A ideia me ocorreu ao ler ensaios de Carlos Ginzburg, um primeiro chamado "A representação do inimigo", e um outro, de nome "O inquisidor como antropólogo". Como se vê desde os títulos, neles o historiador italiano estuda a história não do ponto de vista exclusivamente dos acontecimentos, mas sim de que estes foram subjetivamente representados desde uma relação de inimizade.  

Um outro tema reincidente a esse livro de Carlos Ginzburg (O fio e os rastros) é o ceticismo que recaiu sobre a ciência histórica desde o chamado linguistic turn.

Refere-se aqui aquela crítica epistemológica, de matriz norte-americana, é verdade, mas de origens na filosofia francesa, em que, contra a base do antigo positivismo, e seguindo o caminho já aberto desde as ciências espirituais alemães, evidenciou os limites subjetivos do discurso postos por aquela que se reivindicava como a ciência e a verdade. 

Essa crítica, também dirigida para o saber historiográfico, de modo geral, fez com que os historiadores se voltassem, por um lado, para o fato de que todas representações eram redigidas desde uma subjetividade, de modo a representar não a realidade, mas sim a consciência daquele que escreveu. 

Se essa vertente do linguistic turn se caracteriza por esse psicologismo último, uma vertente aparentemente oposta, mas na verdade complementar, desenvolveu-se enquanto uma ciência imanentes da discursividade, de forma a retratar, pelo exame empírico, não mais a "realidade" em que os ingênuos positivistas tinham afã de encontrar nas representações, mas sim princípios formais e retóricos que formalizavam os textos enquanto códigos socialmente compartilhados.

Perceba que essa crítica imanente não obedecia de forma alguma a contradição estrita posta com aquela ciência das subjetividades primeiras, e que os contrastes entre crítica interna e externa obscurecem quando pensamos que um é condição aprioristica do outro - o código discursivo existe na e por meio da vida, e a vida somente existe e se desenvolve por meio de tais códigos -. 

De qualquer maneira, esse novo ramo de crítica textual imanente da historiografia fez com que muitos historiadores se dirigissem para os estudos poéticos, retóricos, conceituais ou filológicos. A história propriamente dita - queremos dizer, como o clássico gênero das res gestae, em que se investigam os atos, os acontecimentos e ações, esta somente poderia ser posta desde a perspectiva de uma pluralidade de vozes: ou seja, a história somente poderia ser representada enquanto uma indecisão entre os relatos de cada sujeito. Cada documento deveria ser lido não como informação ou dado, mas como uma informação ou dado cujo apriori era o desejo, a paixão, os valores e, de forma geral, toda aquela atividade considerada própria da subjetividade, os excedentes que ela introduziria em sua apreensão do real. 

Foi nessa perspectiva que surgem os chamados cultural studies, que situam as discursividades desde o fato da indeterminabilidade última das verdades, e que não raro se desenvolvem em uma crítica da verdade enquanto imposição despótica de um poder. 

Essa ampla reflexão sobre as subjetividades nos documentos históricos, afinada com a reflexão sobre o poder e o saber no geral, dirige-se ainda pela aparentemente velha dicotomia que fundou a crítica kantiana: a distinção entre coisa-em-si e fenômeno. De modo que essa defasagem introduzida por Kant, que para ela era o ponto de partida para uma filosofia, é agora muitas vezes tomado como seu ponto de chegada

Não  que isso seja exatamente uma novidade. Os dois grandes nomes da metafísica positivista do século XIX, Comte e Spencer, saudaram a reflexão kantiana - a distinção irredutível entre o todo do ser e a parte do sujeito - como o primeiro princípio em que se desenvolveriam suas filosofias primeiras. Tal qual essa vertente historiográfica e cética associada ao linguistic turn, esses velhos positivistas, que acreditavam edificar o mais rigoroso saber empírico, tomavam a distinção entre uma verdade ontológica perpetuamente inapreensível, e um conhecimento parcial dos sujeitos, sempre limitados pela localidade de sua experiência, atrelado aos seus afetos, sentimentos, crenças, opiniões, etc. A distinção entre positivistas e esses que podemos chamar de subjetivistas é mais de posição do que de epistemologia, (pelo menos a partir desse ponto de vista).

Muitas vezes nos parece que o linguistic turn é simplesmente uma vanguarda; sem que o deixe de ser, seu estudo das textualidades e códigos imanentes, muitas vezes, dá vazão a um empirismo caracteristicamente positivista, que impõe ao historiador a necessidade de se ater a essa realidade imediata, que é a textualidade, como a dimensão única do que se pode conhecer. Só que ao invés do dado do fato, o texto passa a entregar somente o código em que este estaria representado.

Todo saber pelos meios do chamado linguistic turn parece se dirigir a um gênero de semiótica. Isso, contudo, não deve ser considerado como um problema em si mesmo. Pelo menos não era para Carlo Ginzburg, para quem o fato da subjetividade e da aprioridade do código, ao invés de problema a ser contornado por uma ciência superior, deve ser tomado como dado necessário para ele. 

O fato é que Ginzburg toma a sua semiótica não das afluentes francesas ou norte-americanas, mas sim da linguística marxista de Mikhail Bakhtin. Lembremos que contra o idealismo da linguística estrutural, esse russo insistentemente remetia a linguagem enquanto um acontecimento, e que por isso deveria ser tomado como uma produção dialógica, e não uma estrutura ou sistema. Inspirado nesse gênero de semiótica material que infelizmente será impossível caracterizar nesse curto espaço de papel, Carlo Ginzburg insiste que as discursividades analisadas, seja pelas semióticas estritamente objetivas, quando seja por aquela crítica das parcialidades de todos os saberes, que esses discursos nascem e operam na vida, para a vida, em resposta aos seus diversos estímulos, e que sua necessidade última só pode estar nessa vida em que surge. 

Talvez isso que aluda com o conceito de vida, no parágrafo acima, esteja demasiado obscuro ao leitor. Essa explicação necessitaria de todo um novo capítulo, e enquanto isso, sequer começamos a explicar sobre as diferentes relações que podemos manter com o discurso odioso. Devemos encerrar logo esse daqui, e nos apressar a escrever um novo, este dedicado estritamente ao discurso odioso. Não podemos deixar de dizer, no entanto, porque seria leviandade com o leitor, que a representação da vida e a representação do texto, e enfim, que o saber histórico num geral, saiba atender as necessidades postas na e pela vida. Por isso a politicidade urgente de seus eruditos panfletos, por isso o furor combativo, por isso a genealogia das ideologias, e tantas formas mais de historiografia que evidenciam o fato do saber existir sobre uma verdadeira guerra, e que esse saber deve tomar parte dela.

 

quarta-feira, 29 de maio de 2024

DE NOVO FOUCAULT E A ARQUEOLOGIA DO SABER

Existe evidente confusão entre a "arqueologia" enunciada por Michael Foucault e um conceito mais geral de "estruturalismo". O próprio Foucault colabora com o imbróglio conceitual em seus primeiros livros, quando anuncia a particularidade de sua historiografia em relação as demais em voga. E se quando supostamente resolveria a questão em seu Arqueologia do Saber o autor é oblíquo e indefinido, é porque a arqueologia não é simplesmente a história das condições apriorísticas do conhecimento, conforme uma leitura estruturalista do conceito poderia formular, e ainda, como o próprio autor sugeriu, insuficientemente, no As palavras e as coisas, mas sim a ciência das redistribuições das origens e limites a qual toda e qualquer ciência está sujeita: de como o saber redistribui, ao longo da história, a matéria de seu conhecimento. 

Por isso que a arqueologia, ao longo do Arqueologia do saber, é parcamente definida; Foucault, ao contrário, age em estilo que chamarei de "cético", desfazendo racionalmente as razões das demais teorias, mas, neste ponto definitivamente menos cético, sempre seguindo na direção de um saber negativo, em espera e de difícil enunciação, já que seria um saber que se formula com ciência da própria instabilidade de seu saber; de como os saberes futuros fatalmente redistribuirão, sem respeito às demarcações do autor, o saber que supostamente se planejaria fundar. 

Por isso que a arqueologia trata inevitavelmente de uma discussão sobre o conceito de identidade, por Foucault ironicamente renunciada, desde o princípio, como sendo uma moral do estado civil. Como, então, fundar um conceito que, por princípio, recusa ser fundado? um conceito que por princípio postula a violência das derivas, dos recortes, da redistribuição? Ao fim e ao cabo, tudo que a arqueologia enuncia é a instabilidade - não a insuficiência, e talvez isso separe Foucault do ceticismo propriamente dito - de todos princípios de saber, de toda forma de ciência. 

Se hoje temos esperança de encontrar no nome próprio, na assinatura, na psicologia, no autor, na subjetividade, no tempo, na sociedade, na humanidade, ou onde lá seja o ponto de encontro de todas as linhas de fuga, Foucault deles todos desdenha, e prenuncia um saber irônico, ainda e sempre em espera, que redistribuirá a superfície de todos os textos, reorganizará as seções de todas biblioteca e reconstruirá a geografia de todos os discursos. Assim, novos objetos surgirão para o novo olhar, novas investigações farão novos sentido, e todo conhecimento se fará de novo e novo mais uma vez.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

POR UMA HISTORIOGRAFIA DE VANGUARDA

O argentino Ricardo Piglia, em ensaio muito breve e conciso - talvez por algum impulso brechtiano de dissolver a magia que anima as histórias e que ilude inúmeros leitores - revelou como o conto moderno opera de maneira bem simples. 

Que o leitor - e muitas vezes o próprio escritor - não percebessem tão simplório mecanismo, talvez signifique que mesmo o truque mais gasto e ordinário, se for bem executado, ainda é capaz de produzir grandes feitos. 

No que consiste o truque do conto moderno? Piglia explica que sua trama opera a partir da ilusão - um legítimo truque empregado para distrair o leitor - e ao invés de narrar-se a história que acompanhamos, na verdade, o texto oculta uma narração dupla: o segredo, contudo, é que a segunda destas histórias ocorre de maneira discreta, sem que o leitor perceba ou dê atenção suficiente; se a primeira história é evidente e salta a seus olhos, a segunda é narrada, mas narrada por meio cifras: espécie de narração criptográfica. O escritor, portanto, faz um belo truque de prestidigitação, como os mágicos; ocupam a atenção do espectador com qualquer bobagem, enquanto, fora dos olhares, por dentro de sua manga, prepara o movimento que, revelado no final, irá deixar todos de queixo caídos, e arrancará os aguardados aplausos da multidão.

A surpresa manifestada pela aparição da segunda narrativa aqui contudo não precisa surgir no final; afinal, não estamos em um conto; este, digo ao improvável leitor desavisado, que por algum motivo tem diante dos olhos estas palavras, é somente um projeto de pesquisa, feito para circular e ser lido entre não mais que quatro ou cinco pessoas.

Trata-se de um gênero textual, digamos, burocrático, em que explico, primeiro, os antecedentes, ou ainda, como cheguei ao meu objeto de pesquisa; e como também este é um gênero judicativo, que precisa receber o crivo de algumas autoridades acadêmicas, o que estou a fazer - mesmo quando não pareça - é a explicação, defesa e exposição (parcial) de um trabalho de pesquisa já em andamento, e que a partir da orientação dos pares serão impostos alguns limites e também oferecidas novas possibilidades. Pobre leitor!, que desorientado chegaste até aqui, irei ainda lhe explicar que, por convenções do gênero, estou isento da necessidade de causar surpresas (embora certo aplauso, claro, seja recomendado).

O que ocorre, contudo, é minimamente confuso, porque é com consciência que continuamente imponho marcas de gêneros ficcionais neste texto que deveria ser não-ficcional, coisa que, para a maioria dos pesquisadores, parecerá simplesmente encheção de linguiça, pois a linguagem clara e objetiva é parte do discurso historiográfico (quer dizer, tornou-se parte, a partir de dado momento, a partir de certa disseminação do que é o discurso historiográfico), e se no discurso historiográfico - cujo dever é narrar fidedignamente o ocorrido - tudo que pareça demasiado literário no historiográfico, infelizmente, por mais avançadas que estejam as discussões sobre as relações entre a história e a ficção, e que se escrevam longas teses e artigos sobre o assunto, a verdade é que o literário, quando surge dentro do historiográfico, é ainda assim lido como ornamento, excedente desnecessário, parafernalha que atrapalha a manifestação de alguma coisa que costumam ter dificuldade de definir, mas que pode ser o lógos, o discurso verdadeiro, mas como a maioria dos historiadores estão cultivados em certo positivismo tão difuso que já nem mais percebem atravessá-los, o literário vira empecilho para a objetividade que deveria caracterizar o discurso histórico, o que ainda irá se justificar pela necessidade das pesquisas terem uso dentro da comunidade acadêmica, porque o conhecimento deve ser capaz de circular dentro deste mercado do intelecto em que uma tese irá servir de tijolo para uma próxima tese!, e que assim será construída enfim esta torre de babel em que todas línguas estarão reunidas - a torre será provavelmente construída na dependência de alguma universidade norte-americana por meio dos papers de estudiosos do mundo inteiro, mas que contudo residem fora de seus países e escrevem em inglês (os tijolos propriamente ditos serão colocados por algum pedreiro imigrante ou qualquer trabalhador que aceite um salário miserável -...

Não me espanta que não compreendam o poder epistemológico e retórico de não somente bem-escrever - escrever bem é entregar um livro que fique entre os trinta mais vendidos de alguma Casa-grande das Letras ou qualquer editora que venda porcarias -; não me refiro ainda ao de “bem-conduzir” ao leitor pelas duras páginas científicas, e assim concorrer com os jornalistas e garantir ao historiador a participação no mercado editorial, ou ainda, nas novas mídias que a internet torna cada vez mais importante: youtube, podcasts, tik-tok, etc… Me refiro a uma coisa mais séria, que embora possa ser mais facilmente ignorada por alguém que faz pesquisas estatísticas, por biólogos que observam a divisão celular e simplesmente fazem seu registro, por estudiosos da teoria do caos ou do comportamento estranho que possuem as partículas minúsculas que hoje acreditamos explicar nossas vidas: átomos, elétrons, neurônios, serotonina, e os tantos outros que não sabemos sequer nomear…

Se tais ofícios possuem tão mais facilidade para compreender a importância daquilo que é referido corriqueiramente como “forma literária”, um historiador, cujo dever é relatar aquilo que se passou no passado - realizar, portanto, uma historiografia, uma escrita da história… - como afinal podemos não apenas ignorar os impactos de tudo que os estudos literários e o mais importante: a literatura, produziu ao longo dos últimos séculos? E não, não me refiro somente a tomá-las como objetos de estudo.

Se no século XIX e XX os escritores tiveram que defender a execução de uma literatura de vanguarda, penso que o mesmo deveria ser feito pelos historiadores: a defesa de uma historiografia de vanguarda. Que não abandone o rigor, que não abandone tudo aquilo que pretende fazer de nosso ofício um saber capaz de participar de uma comunidade acadêmica, e enfim, as características que - se não autorizam chamá-la de científica -, ainda nos fazem pensar em termos de uma ciência histórica… Mas não seria a literatura também um tipo específico de ciência? Não são os poetas afinal detentores de um gênero de saber? A história, cuja imprecisão de seu discurso fez muitas vezes que fosse igualada à retórica, foi poucos séculos colocada em um espaço próprio: mas lembremos não somente de nossas origens, e se o fim da retórica significou o nascimento da literatura, e que dela agora somos irmãos, que isto não seja lido pelo viés negativo.

Que compreendemos os poderes e os saberes do literário; melhor não negar esta proximidade, e querer correr de volta para os braços da ciência natural. Proponho um outro caminho, um tanto estranho, talvez, mas que a mim faz bastante sentido: que compreendemos a ficção não como falsidade ou ornamento; que compreendemos como a ficção também participa de alguma forma da verdade; e como a historiografia também partilha destes ainda estranhos poderes que pressentimos, mas que desconhecemos, e que chamamos por muitos nomes: poesia, literatura, ficção, retórica… e até mesmo, pelos mais astutos inimigos, de mentira


sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...