segunda-feira, 22 de maio de 2023

POR UMA HISTORIOGRAFIA DE VANGUARDA

O argentino Ricardo Piglia, em ensaio muito breve e conciso - talvez por algum impulso brechtiano de dissolver a magia que anima as histórias e que ilude inúmeros leitores - revelou como o conto moderno opera de maneira bem simples. 

Que o leitor - e muitas vezes o próprio escritor - não percebessem tão simplório mecanismo, talvez signifique que mesmo o truque mais gasto e ordinário, se for bem executado, ainda é capaz de produzir grandes feitos. 

No que consiste o truque do conto moderno? Piglia explica que sua trama opera a partir da ilusão - um legítimo truque empregado para distrair o leitor - e ao invés de narrar-se a história que acompanhamos, na verdade, o texto oculta uma narração dupla: o segredo, contudo, é que a segunda destas histórias ocorre de maneira discreta, sem que o leitor perceba ou dê atenção suficiente; se a primeira história é evidente e salta a seus olhos, a segunda é narrada, mas narrada por meio cifras: espécie de narração criptográfica. O escritor, portanto, faz um belo truque de prestidigitação, como os mágicos; ocupam a atenção do espectador com qualquer bobagem, enquanto, fora dos olhares, por dentro de sua manga, prepara o movimento que, revelado no final, irá deixar todos de queixo caídos, e arrancará os aguardados aplausos da multidão.

A surpresa manifestada pela aparição da segunda narrativa aqui contudo não precisa surgir no final; afinal, não estamos em um conto; este, digo ao improvável leitor desavisado, que por algum motivo tem diante dos olhos estas palavras, é somente um projeto de pesquisa, feito para circular e ser lido entre não mais que quatro ou cinco pessoas.

Trata-se de um gênero textual, digamos, burocrático, em que explico, primeiro, os antecedentes, ou ainda, como cheguei ao meu objeto de pesquisa; e como também este é um gênero judicativo, que precisa receber o crivo de algumas autoridades acadêmicas, o que estou a fazer - mesmo quando não pareça - é a explicação, defesa e exposição (parcial) de um trabalho de pesquisa já em andamento, e que a partir da orientação dos pares serão impostos alguns limites e também oferecidas novas possibilidades. Pobre leitor!, que desorientado chegaste até aqui, irei ainda lhe explicar que, por convenções do gênero, estou isento da necessidade de causar surpresas (embora certo aplauso, claro, seja recomendado).

O que ocorre, contudo, é minimamente confuso, porque é com consciência que continuamente imponho marcas de gêneros ficcionais neste texto que deveria ser não-ficcional, coisa que, para a maioria dos pesquisadores, parecerá simplesmente encheção de linguiça, pois a linguagem clara e objetiva é parte do discurso historiográfico (quer dizer, tornou-se parte, a partir de dado momento, a partir de certa disseminação do que é o discurso historiográfico), e se no discurso historiográfico - cujo dever é narrar fidedignamente o ocorrido - tudo que pareça demasiado literário no historiográfico, infelizmente, por mais avançadas que estejam as discussões sobre as relações entre a história e a ficção, e que se escrevam longas teses e artigos sobre o assunto, a verdade é que o literário, quando surge dentro do historiográfico, é ainda assim lido como ornamento, excedente desnecessário, parafernalha que atrapalha a manifestação de alguma coisa que costumam ter dificuldade de definir, mas que pode ser o lógos, o discurso verdadeiro, mas como a maioria dos historiadores estão cultivados em certo positivismo tão difuso que já nem mais percebem atravessá-los, o literário vira empecilho para a objetividade que deveria caracterizar o discurso histórico, o que ainda irá se justificar pela necessidade das pesquisas terem uso dentro da comunidade acadêmica, porque o conhecimento deve ser capaz de circular dentro deste mercado do intelecto em que uma tese irá servir de tijolo para uma próxima tese!, e que assim será construída enfim esta torre de babel em que todas línguas estarão reunidas - a torre será provavelmente construída na dependência de alguma universidade norte-americana por meio dos papers de estudiosos do mundo inteiro, mas que contudo residem fora de seus países e escrevem em inglês (os tijolos propriamente ditos serão colocados por algum pedreiro imigrante ou qualquer trabalhador que aceite um salário miserável -...

Não me espanta que não compreendam o poder epistemológico e retórico de não somente bem-escrever - escrever bem é entregar um livro que fique entre os trinta mais vendidos de alguma Casa-grande das Letras ou qualquer editora que venda porcarias -; não me refiro ainda ao de “bem-conduzir” ao leitor pelas duras páginas científicas, e assim concorrer com os jornalistas e garantir ao historiador a participação no mercado editorial, ou ainda, nas novas mídias que a internet torna cada vez mais importante: youtube, podcasts, tik-tok, etc… Me refiro a uma coisa mais séria, que embora possa ser mais facilmente ignorada por alguém que faz pesquisas estatísticas, por biólogos que observam a divisão celular e simplesmente fazem seu registro, por estudiosos da teoria do caos ou do comportamento estranho que possuem as partículas minúsculas que hoje acreditamos explicar nossas vidas: átomos, elétrons, neurônios, serotonina, e os tantos outros que não sabemos sequer nomear…

Se tais ofícios possuem tão mais facilidade para compreender a importância daquilo que é referido corriqueiramente como “forma literária”, um historiador, cujo dever é relatar aquilo que se passou no passado - realizar, portanto, uma historiografia, uma escrita da história… - como afinal podemos não apenas ignorar os impactos de tudo que os estudos literários e o mais importante: a literatura, produziu ao longo dos últimos séculos? E não, não me refiro somente a tomá-las como objetos de estudo.

Se no século XIX e XX os escritores tiveram que defender a execução de uma literatura de vanguarda, penso que o mesmo deveria ser feito pelos historiadores: a defesa de uma historiografia de vanguarda. Que não abandone o rigor, que não abandone tudo aquilo que pretende fazer de nosso ofício um saber capaz de participar de uma comunidade acadêmica, e enfim, as características que - se não autorizam chamá-la de científica -, ainda nos fazem pensar em termos de uma ciência histórica… Mas não seria a literatura também um tipo específico de ciência? Não são os poetas afinal detentores de um gênero de saber? A história, cuja imprecisão de seu discurso fez muitas vezes que fosse igualada à retórica, foi poucos séculos colocada em um espaço próprio: mas lembremos não somente de nossas origens, e se o fim da retórica significou o nascimento da literatura, e que dela agora somos irmãos, que isto não seja lido pelo viés negativo.

Que compreendemos os poderes e os saberes do literário; melhor não negar esta proximidade, e querer correr de volta para os braços da ciência natural. Proponho um outro caminho, um tanto estranho, talvez, mas que a mim faz bastante sentido: que compreendemos a ficção não como falsidade ou ornamento; que compreendemos como a ficção também participa de alguma forma da verdade; e como a historiografia também partilha destes ainda estranhos poderes que pressentimos, mas que desconhecemos, e que chamamos por muitos nomes: poesia, literatura, ficção, retórica… e até mesmo, pelos mais astutos inimigos, de mentira


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