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domingo, 29 de dezembro de 2024

A ZOOLOGIA DE HEGEL

1.

a primeira obra de arte foi uma bosta. 

hegel relaciona o impulso-de-arte com o desejo e necessidade de cagar. diz ele mais ou menos que, diante do material inorgânico expelido pelos processos metabólicos, o homo faber se apossa da matéria e impõe a ela às formas da imaginação.

para hegel, o cocô é um conceito do intestino.


2.



hegel pensa a morfologia animal igualzinho pensa a filosofia: tudo tende ao absoluto e somente o absoluto é a revelação daqueles traços antes desprovidos de sentido.


3.



o homem - é a síntese e superação em que todos os traços insignificantes (como eram os traçados que os nhambiquaras faziam em suas cabanas: formas irregulares e desprovidas de sentido, grafismo estúpido que não compreendeu a natureza linguística da diferenciação, e que por isso não realizou o seu intuito secreto) de todas demais espécies; para hegel, todas as criaturas querem, mesmo que não saibam que queiram, ser o homem. para hegel, toda a natureza é acometida por essa profunda inveja da anatomia humana. só ela que é a realização perfeita e harmônica da matéria orgânica com a inorgânica; o homem, criatura perfeita, possui a complexidade interna (fisiológica) do verme, sem excluir a beleza externa (fisionômica) do inseto. sua carne é uma dialética viva.


4.


o progresso da dialética hegeliana, apesar de retornos, avança perpetuamente até a perfeição: o homem, o conceito, o estado...


5.


ao falar do canto das aves, se explicita como a hierarquia da história natural (a taxionomia morfológica) se relaciona diretamente a uma hierarquia da manifestação espiritual: a dotação morfológica da ave, que permite que canta, a coloca um passo mais próxima do conceito.


6.

para hegel a morfologia dos animais é compreendida como o produto do conceito. a matéria orgânica do corpo é formado, assim como nas artes plásticas a pedra, sob o intuito do conceito, é formada.
 
para hegel a história natural é o desígnio de uma inteligência eterna; o conceito sempre estava lá, desde o princípio, desde sempre aspirando ascender das formas baixas do monera até atingir a perfeita consciência de si sob a forma da linguagem articulada. 

a aparição do humano é revelação do conceito ideal de corpo que já era intuído pela vida mais rudimentar. o primeiro monera já queria ser o homem.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

anotações sobre A TRAMA DA NATUREZA (2018), de PEDRO PAULO PIMENTA

4. a infinitude da natureza diante de um entendimento limitado e fraco

5. fisiologia e representação (Diderot);

    fins da razão X fins naturais

6. anatomia kantiana:

    mecanismo X organismo: 

    causas mecânicas X causas finais

8. trama da natureza: arte sem artífice

    acefalia X inteligência 

197. homo artifex: o homem que fabrica arte.

74. o nascimento do HOMO FABER: narcisismo da espécie

14. HUME: quais estruturas/faculdades/órgãos explicam o comportamento?

    CIÊNCIA MORAL

16. filosofia natural e filosofia moral

    imput das sensações (corpo/fisiologia) > fábrica da imaginação (ficção)

    (conteúdo)                                                (forma)

17. filosofia natural: recepção da sensação pelo corpo: puro dado, a sensação tal qual surge na alma sem qualquer percepção antecedente [a filosofia natural estuda a sensibilidade desde o grau zero da experiência, a sensação anterior a qualquer a priori] 

    filosofia moral: exame das sensações secundárias ou refletidas, as PAIXÕES

    "na produção e na conduta das paixões, há um mecanismo regular, suscetível de uma disquisição tão acurada quanto as leis do movimento, da Ótica, da Hidrostática ou de qualquer outra parte da Filosofia Natural"

    o mecanismo regular da paixão: a priori formado na experiência que ordena a sensação 

18. para LOCKE: toda ideia possui um referente material ou empírico

20. origem médica da semiótica: o corpo externo como signo de acontecimentos internos

    SEMIÓTICA de LOCKE: estudo da formação do pensamento
                                                estudo dos signos (externo) do pensamento (interno);
            a semiótica como um estudo experimental dos acontecimentos internos por meio de seus signos

    o conhecimento das ideias das coisas X o conhecimento das coisas mesmas

    para LOCKE: há uma referencialidade contínua entre as ideias e as coisas, e aquela é meio para estas

    "o entendimento está destinado pelo criador a desvendar a ordem das coisas, dispostas para ele, através de signos dessa ordem"

21. em LOCKE, o conhecimento possui essa CAUSA FINAL: desvendar a ordem natural

22. 47. a natureza como DESIGN DIVINO
            "o desígnio aparece como transcendente às coisas, perpassando-as"

23. "um ser natural em particular é a expressão específica dessa ordem que se põe e se renova a cada instante na natureza como totalidade sistemática"

[MEMÓRIA ETERNA DE DEUS QUE ENGENDRA CONTINUAMENTE A NATUREZA]

"protótipo original" das espécies

24. a abertura das ciências empíricas e naturais à especulação

28. CORPO COMO ECONOMIA ANIMAL

36. necessidade, regularidade, finalidade (na economia)

20. Necessidade x Probabilidade

188. TATO: sentido primordial, a priori, na experiência do conhecer

193. observação primeira, instintiva, maquínica e inconsciente, organização pré-lógica da experiência

25.    anatomia como chave para compreensão do divino metafísico

        ORDENAÇÃO TELEOLÓGICA DO ANIMAL DENTRO DO QUADRO NATURAL

196. ordem antropológica e ordem natural (catástrofe do humano e nova ordem natural segundo seu desígnio)

37. a MENTE como um ÓRGÃO que se contrai, distende, como um MÚSCULO

72. as faculdades mentais podem se EXERCITAR e APRIMORAR

56. registro de impressões na memória enquanto ideias
        IDEIAS SÃO REPRESENTAÇÕES DAS IMPRESSÕES DADAS AOS SENTIDOS

35. alma - cérebro - inteligência > adaptação ambiental, desenvolvido pelo EXERCÍCIO e USO

190. na origem da linguagem, ela é puro referente ao mundo empírico e externo, NÃO HÁ ABSTRAÇÃO

                        A ABSTRAÇÃO É POSTERIOR À REPRESENTAÇÃO

169. organismo e princípio de eficiência energética de seu funcionamento

188. 190. VELOCIDADE de apreensão dos dados empíricos (REPRESENTAÇÃO)

41. descontinuidade entre PERCEPÇÃO e IMAGINAÇÃO
    a imaginação é FÁBRICA [ficção] da representação; a percepção é sua MATÉRIA-PRIMA

      a imaginação TRANSFORMA as impressões [COM FINS OPERACIONAIS]

   43. a imaginação e o HÁBITO ECONÔMICO
        economia de energia no processamento do mundo
        o ENTENDIMENTO economiza energia ao invés de renderizar o mundo com toda sua clareza e detalhes infinitos (FUNES ESTÁ SEMPRE CANSADO). 

        o ENTENDIMENTO, ao IMAGINAR - substituir as impressões em suas totalidades por uma representação mais econômica - ordena o mundo a partir de um FIM DADO PELO SUJEITO, a partir da repetição, do hábito, da experiência

59. a RENDERIZAÇÃO da realidade

44. 72. a FANTASIA então possui essa função técnica de economia: a representação perfeita é desnecessária e mesmo prejudicial aos fins da natureza animal (ECONOMIA)

120. a FICÇÃO dos elos entre as partes da natureza como um REMÉDIO contra os excessos e carências (HYBRIS) da natureza

91. PREGUIÇA

90. a natureza como excesso e desmedida (HYBRIS)

91. uma crítica antropológica à imperfeição da economia natural

92. o direito de GUERRA e DOMÍNIO contra a natureza

82. CATÁSTROFES e recriação da natureza X NATUREZA ETERNA (memória perfeita)
        a DESAGREGAÇÃO e REAGREGAÇÃO contínua da natureza: qual a base de sua memória?

140. CONVENIÊNCIA

52. 58. 59. DESIGN x AGREGADO (político e econômico)

o design se impõe como lei desde a eternidade: há uma IDENTIDADE PRIMEIRA entre as partes; o agregado se forma um tanto mais desordenadamente, somente vem a ser a partir da CONVENIÊNCIA das partes em relação [lei divina e eterna X reflexão parlamentar contínua]

83. a ORDEM é uma prorrogativa da matéria (como funciona sua MEMÓRIA?

84. ordem X finalidade: ou como pode haver arte sem um autor? (NATUREZA ATEOLÓGICA)

86. DESÍGNIO (metafísica) X ECONOMIA (história natural) ***

    [a destruição da metafísica e a introdução do conceito de trabalho]

50. a NATUREZA X a IMAGINAÇÃO: ausência de finalidade da primeira, intencionalidade da segunda 

42. as CARÊNCIAS NATURAIS

87. dor e prazer: meios de auto-preservação

95. o homem é DOMINADO pelas PAIXÕES - forças de afecção - prazer e dor [animalidade]

65. a MÔNADA como unidade indivisivel no tempo e no espaço (as substâncias empíricas como mônadas)

105. 111. EFICIÊNCIA e PRODUTIVIDADE

    língua como economia de tempo / força /energia

108. língua e DIVISÃO DO TRABALHO: organizar os processos produtivos

        [superação da natureza pela arte]

111. línguas como variações morfológicas (uso e desuso, referencialidade ao ambiente, etc)

119. A NATUREZA É COMO UM ANIMAL, ORDENADO INCONSCIENTEMENTE.

113. 119. mão invisível e economia natural

    intencionalidade acéfala e a finalidade abstrata - fora de qualquer subjetividade, de qualquer entendimento, e nesse sentido, inconsciente - somente pode ser vista desde a perspectiva do sistema, de sua totalidade, síntese abstrata de suas N partes incontáveis 

109. o ajuste do meio ao fim humano somente pode ser feito na experiência:

    a Necessidade é um esquecimento da experiência de sua fabricação (esquecimento da memória consciente no hábito; economia de processamento) TENDÊNCIA DA EXPERIÊNCIA A UM EQUILÍBRIO EFICIENTE.

117. fisiocracia e intervenção do estado na economia: manter a regularidade dos processos de trabalho e circulação - controlar as carências e excessos da natureza - X o ateísmo econômico de SMITH como elogio da experiência subjetiva (uso e adequação) e crítica da lei universal

156. portrait X tablau historique 

      representação ideal x representação das paixões

158. CONSTÂNCIA dos caracteres morfológicos ao longo do quadro natural (gradação suave e contínua)

162. 170. GERME, ou um PROTÓTIPO ANTERIOR À EXPERIÊNCIA, modelado a partir da experiência (no contato com o MEIO) [GENE]

124. o sistema como consciência do conceito que havia a priori (no princípio da reflexão, um conceito pré-consciente, mas atuante)

125. legislação da razão: filosofia transcendental

        artesanato da razão: antropologia pragmática ("os modos de constituição do sentido na experiência")

128. empirismo pré-conceitual (dado primário da experiência) D'ALAMBERT

        a priori transcendental (condição da primeira experiência) KANT

132. a ordem alfabética das enciclopédias e refiguração do livro como progressão de um todo (razão)

129. DOGMATISMO como esquecimento da experiência fundadora do conceito (perigo do sistema)

131. ENTROPIA e dispersão dos conhecimentos; sistema como ARQUIVAMENTO; (esclarecimento?) a memória epistêmica de uma época como sistema - "como pensava-se", por meio de quais metáforas e conceitos [e categorias e etc] - a enciclopedia como máquina de pensar (meio de refazer o pensamento passado, ARQUIVO, MEMÓRIA) - registro do circuito pensante.

141. sociedade como deformação da disposição natural do ser pelo HÁBITO e EXERCÍCIO

        a sociedade como ordenação do organismo; a sociedade como máquina de organização da vida para determinados fins - HÁBITO e EXERCÍCIO como meio de condicionamento da vida a fins sociais. uma CASA é uma máquina em que se delimita especializações humanas.

    ver a história das abelhas, com estritos planos de carreira: há, na progressão da vida, uma refuncionalização da abelha a partir de sua idade. uma sociedade muito liberal.

142. o artesanato da vida (da carne) - arte de si (métodos para a filosofia, como o feito por descartes, ou "como aprendi a filosofar", ou "exercícios para se tornar um bom filósofo" - reflexões e hábitos para a adequação da disposição orgânica a um fim (por exemplo, a filosofia)

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

HUSSERL CONTRA A PSICOLOGIA NATURALISTA

A crítica de Husserl aos psicólogos naturalistas exorta o saber a trabalhar não sobre os "dados primeiros”, i.e., as coisas-em-si anteriores às experiências, aquelas exterioridades que certamente existiam, independente de qualquer sujeito que a experienciasse. 

Não me parece que Husserl queira negar a existência dessas empiricidades de onde provém os dados da experiência. A fenomenologia de Husserl somente deseja rebaixar a qualidade de seu conhecimento perante aquelas formulados pelas ciências da experiência, i.e., aquelas que conhecem não tais dados que seriam dados aos sentidos, existência independente do mundo humano, mas sim que atendesse às necessidades suscitadas pela existência nessa experiência. [nos inclinamos a pensar que já husserl já era um existencialista, pelo menos nos seus "textos de crise", que abandona a posição dogmática e se coloca na altura de um saber circunscrito por uma experiência concreta].

Diante da miséria humana, Husserl exorta aos acadêmicos que pensem não no mundo objetivo e físico, mas sim no mundo conforme experenciado pelos sujeitos. Os relatos sobre a crise da cultura europeia exigem uma sabedoria da vida, uma ciência moral capaz de responder sobre as necessidades dadas na e pela experiência, e para isso, aqueles discursos infindáveis sobre o que seria “dado aos sentidos” independente de qualquer experiência seriam fundamentalmente inúteis, pelo menos se não pressupusessem essa intencionalidade de toda consciência. Husserl impõe a necessidade de pensar-se o sentido do saber desde a experiência humana, dentro de seus valores e contingências temporais e espaciais: 

“Só quando o espirito deixar a ingênua orientação para o exterior e retornar a si mesmo e permanecer consigo mesmo e puramente consigo mesmo, poderá bastar-se a si. Como se chegou a um começo de uma tal reflexão sobre si? Tal começo era impossível enquanto dominava o sensualismo, ou melhor dito, o psicologismo dos dados, a psicologia da tabula rasa. Só quando Brentano postulou uma psicologia como ciência das vivencias intencionais deu-se um impulso que poderá levar adiante, embora o próprio Brentano ainda não tenha superado o objetivismo, nem o naturalismo psicológico. A elaboração de um método efetivo para compreender a essência fundamental do espirito em sua intencionalidade, e, a partir dai, construir uma teoria analitica do espirito que se desenvolve de modo coerente ao infinito, conduziu a fenomenologia transcendental. Esta supera o objetivismo naturalista e todo objetivismo em geral da única maneira possível: o sujeito filosofante parte do seu eu”. HUSSERL, p. 86. 

Compreende-se assim que a fenomenologia supera a psicologia naturalista por voltar-se às ciências do espírito, isso é, da existência como intencionalidade de um sujeito.

sábado, 15 de junho de 2024

gilberto freyre é um antropólogo naturalista, mas...

me enveredo em uma longa análise da obra de gilberto freyre a partir das ciências naturais-biológicas para chegar no ponto e dizer ao leitor que, no entanto, a obra de gilberto freyre não é uma ciência-natural-biológica. tanto gasto de tinta pareceria ocioso se fosse para confundir o modelo epistêmico de sua sociologia com o das ciências positivas. se me demoro construindo esse tal modelo, se perco tempo demonstrando suas afinidades com os grandes livros de gilberto freye é, em primeiro lugar, por "estilo argumentativo", viciado sempre nos modos adversativos, em que depois da preposição se introduz um "mas", um "porém", um "todavia", que introduz ao sentido previamente e às vezes longamente construído um desvio. 

sim, gilberto freyre possuí séries de semelhanças com as ciências da natureza, sem que, no entanto, deva ser confundido com. 

nascido na alvorada do século XX, a formação de gilberto freyre manteve laços estreitos com a antropologia modelada enquanto um ramo dos estudos evolutivos e de hereditariedade, sem, todavia, deixar de se debruçar naquele domínio que que dilthey iria tratar como o da lebenphilosophie, e que pode ser relacionado com aquilo que husserl trata por lebenswelt por se tratarem de um conhecimento incapaz de ser formulado pelas ciências positivas, e nos quais, historicamente, se desenvolveram aquilo que convém chamar de "ciências humanas" ou "humanidades". 

que as humanidades venham a ser constituídas enquanto uma "filosofia da vida", como uma ciência do "mundo da vida", demonstra a ambiguidade e imprecisão circundante a todo conceito de vida no século XIX e XX: por um lado, a vida se converte em biologia, em estudos experimentais realizados em laboratórios, por profissionais zelosos pelos métodos de mensuração e pela aplicação de modelos da física e química ao estudo dos seres vivos; por outro, uma compreensão da vida e natureza legada - provavelmente  - do romantismo, que se caracteriza pelo turbilhão da experiência incapaz de ser sintetizado fielmente pela técnica científica. 

gilberto freyre, embora fosse ou almejasse, durante as primeiras décadas de trabalho, ser um cientista, não deixou de compreender a vida enquanto esse fenômeno romântico, excessivo, cuja formulação mais clara em sua obra está relacionada com sua analogia entre o sociólogo e o romancista, a pretensão de representar a vida do curso de seu movimento, de expressar pela extensão da representação aquilo que a métrica e unidade conceitual eram incapazes de aludir. 

não preciso dizer que essa compreensão de gilberto freyre rapidamente se tornaria anacrônica: a primeira edição de casa-grande & senzala nos estados unidos foi recebida com críticas ásperas, direcionadas principalmente à "metodologia mística" - termo empregado pelo próprio gilberto freyre, e que remetia a dimensão auto-biográfica, proustiana, meditativa, com que escreveu o livro -, que ao crítico parecia inadequado ao trabalho verdadeiramente científico da antropologia. e o resto, como sabemos, é história, já que em nosso próprio país se desenvolveria, a partir de são paulo, quando profissionalizada nossa universidade, uma crítica análoga, e ainda mais vasta, contra a "anti-cienticifidade" de gilberto freyre. 

a questão se torna, então, não somente o que seria essa "libenphilosophie" de gilberto freyre, ou no que consistiria a porção de sua obra ainda indefinida, em espera, indicada apenas como um negativo - um "não é" - das ciências positivas, mas também como essas próprias ciências positivas em que gilberto freyre construiu seu modelo científico, ao longo do século XXX, se desatualizaram, se tornaram literalmente ultrapassadas, ao ponto de que, nos anos 70, quando gilberto freyre trata de "como e porque é e não é sociólogo", fará somente acenos discretos a elas, preferindo investir na outra direção de sua obra, caracterizada pelo intuicionismo, a relação entre sociologia, arte e vida, a influência dos sociólogos alemães a partir do seu modelo empático-compreensivo, a herança mística e  de reflexão auto-biográfica dos ibéricos, os relatos de viajantes, etc, tentando assim construir um modelo contra a ciência em voga.

no término da leitura de "as palavras e as coisas"

com as últimas notas, que crescem em retumbante operística, ainda a ressoar em meus ouvidos, termino enfim "as palavras as coisas". da densa história das ciências humanas, foucault conclui por sua brevidade: nascido velho, o homem encontrará desfecho tão logo aconteça o prometido desfecho. 

se por um lado sua obra é de análise meticulosa, de scholar, pesquisador profissional, por outro ela segue o caminho indicado por sua estrela-guia, nietzsche: confecção de saber que antes de tudo é mapa e bússola, forma de orientação no tempo e espaço do pensamento. estamos no limiar da humanidade, conclui foucault no apêndice profético feito à meticulosa história que escreveu: formado o homem na dispersão da linguagem, quando, no século XX, os indícios indicam seu re-congresso - a literatura, a linguística, o estruturalismo, a psicanálise - por que não concluir então por um desaparecimento desse mesmo homem cujo saber está delimitado por sua natureza finita, no reduplicar empírico-transcendental que lhe põe e lhe pensa no mundo o mundo (e vice-versa), que enxerga no seu pensamento a extensão do impensável a ser coberto pela razão, busca por uma origem ausente e prometida? desculpem se não falo em termos claros, somente tento formular a questão obscura do humano nas palavras que, pelo progresso lento, reiterativo e metódico do livro, foucault faz surgir de maneira clara em nosso espírito. é um livro, portanto, de paciência, cujo saber nasce por um progresso análogo a de uma viagem: não por expedientes conceituais que esclarecem de imediato um ao outro, em economia precisa de significação, mas em experiência em que a paisagem se desenha somente na extensão, nunca na brevidade do instante. por isso a lembrança tão francesa do ensaio cartesiano, que embora não recuse a ordem e o rigor da composição, seus termos estão em seu lugar em relação a uma extensão, uma escritura que ganha sentido na longa duração da espera, da leitura, da meditação, da paciência. um livro, portanto, para se demorar.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

antropologia e antropogenia: passagem do finito ao infinito

na antropogenia, a fundação do humano é inscrita numa genealogia da natureza: desde o ser mais ínfimo até o mais complexo existiria uma cadeia cuja duração culmina no aparecimento de nossa espécie.

as relações entre origem e originado, contudo, são imprecisas: é o ser humano regido pelos seus princípios elementares da biologia, que remetem e repetem indefinidamente a origem - como no esquema de haeckel em que a ontogenia repete a filogenia - ou sua constituição excepcional de ser intelectual, dotado de linguagem, razão, ou qualquer outro atributo especial, super-animal, fundou, neste ramo da árvore da vida, uma dimensão que escapa às leis naturais, isto é, a antropologia?¹ 

vejamos a lei do positivismo conforme formulada por littré para pensarmos essa tensão entre antropogenia e antropologia, ou ainda, entre o retorno da origem no originado e a ultrapassagem daquela por este: a física, explica o ilustre discípulo de comte, determina a química que determina a biologia que determina a sociologia. a pergunta sobre a excepcionalidade humana é um questionamento a respeito do mecanicismo explicitado pela sequência em que a ciência positiva subordinaria o conhecimento da humanidade ao conhecimento natural; por outro lado, as ciências do espírito ou da vida, conforme a formulação de dilthey, questionaria como que o humano, se não obstante faz parte da e se constitui na natureza, escaparia a série de leis e estudos desenvolvidos nos últimos séculos para analisá-la (física, química, biologia...). 

é menos uma questão ontológica, talvez, do que epistemológica: se a natureza implica em uma definição da vida (humana) a partir dos princípios estabelecidos por tais campos do saber, a antropologia, especialmente a partir do fundamento do conceito de cultura, re-abreria o que estava definido desde seu princípio, desfazendo a subordinação do conhecimento do homem às ciências da natureza. 

é uma relação delicada, que os cientistas sociais do início do século XX tratam a partir das relações entre os princípios de raça - que seria a expressão do natural no social - e os de cultura - que representaria a infinidade e plasticidade humana diante dos limites postos pela lei da natureza -. do finito da natureza ao infinito da vida (humana), portanto.

a sugestão de lévi-strauss, ao desconsiderar as determinações raciais sobre as culturais, contudo, como que inverte os termos da equação: o ser humano, por sua natureza, seria infinitamente plástico: é a sua cultura que lhe faz vir a ser alguma coisa. a cultura então se torna o lugar de formação, em que o infinito potencial - seu "corpo sem órgãos" - é estrangulado, constrangido, dentro de uma extensão e temporalidade definida pela vida social. nessa dimensão de reflexão, nessa passagem afuniladora - "do cru ao cozido" -, que a antropologia irá se desenvolver menos como ciência da natureza do que uma ciência, não do anti-natural, mas do sobre-natural. enlace ambíguo, que trata de uma consciência de dominar e fazer-se exceção ao natural, ao mesmo tempo que, em um lugar incerto, saber-se regido por seu jogo.


NOTAS DE RODAPÉ

¹ No fim do século XIX e início do XX o conceito de "antropologia" era empregado para se referir ao estudo das origens antropogênicas e dos diferentes caracteres raciais engendrados por meio da hitória natural. Aqui, no entanto, proponho uma distinção entre antropologia e antropogenia para demarcar com clareza a distância que os estudos sociais e humanísticos - as ciências da vida e do espírito - produziram, ao longo do último século, das ciências naturais. Desta deriva conceitual, que re-mapeou a geografia do saber do humano, me parece ter se constituído a atual disciplina antropológica.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Um alienista criminalista, Maandon de Montyel, em 1892

A população das cadeias e dos presidios, para um analysta profundo da sociedade, não parece mais antisocial que uma boa parte da população livre. Um alienista criminalista, Maandon de Montyel, escreveu: << Cada um de nós trás no cerebro um criminoso que dormita e cujo despertar depende em parte da sua lethargia, em parte do grau do excitante, de sorte que o delinquente de amanhã, conforme as circumstancias, será talvez o leitor, serei talvez eu >> [Archives d'anthropologie criminelle, 1892.] Marandon dá ao termo criminoso a significação que, mais exactamente, se applica ao monstro do crime. Quanto mais verdadeiro é então o seu pensamento, dando-se á palavra criminoso a significação do autor de acto antisocial! Pode-se mesmo dizer nesse caso que o criminoso não dormita no cerebro, mas está muito bem acordado.

<< D'esta exposição summaria resulta que as conclusões anthropologicas ou sociaes que os criminalistas tiraram dos seus estudos das estatisticas judiciarias e penitenciarias, das medições da população das prisões, véem feridas de impotencia. Assentam sobre excepções e não sobre a generalidade dos autores de actos antisociaes. Não quero dizer que todas essas conclusões sejjam falsas: podem conter uma parte de verdade, sobretudo no que é concernente ao estudo dos factores: meio social e meio cosmico. Com effeito o criminoso legal pode nesse caso ser justamente considerado como um specimen de antisocial, sobre que actuam os meio social e cosmico nas mesmas condições que sobre a generalidade dos antisociaes occultos. Ao contrario, no que é concernente ao factor individual, as conclusões deduzidas pelos criminalistas são viciadas por falta de termo de comparação segura: d'onde resulta que não se pode generalizar e estabelecer um typo criminoso; quando muito podem estabelecer-se alguns typos criminosos.

<< Na opinião de todos os criminalistas contemporaneos, o crime tem como causas geradoras tres factores: meio individual, meio social e meio cosmico. Por meio individual intendem a conformação craniana, cerebral, o temperamento, a conformação do corpo, numa palavra a maneira de ser de todo o organismo physico. Por meio social intendem a educação, a instrucção, os usos e costumes da collectividade ambiente, as condições da vida economica, intellectual e moral. Por meio cosmico intendem a temperatura, o estado hygrometrico, electrico, da atmosphera physica do solo onde vive o autor do acto antisocial. >>


HAMON, A. Determinismo e responsabilidade. tradução Bel-Adam. Lisboa: Antiga Casa Bertrand - José Bastos & Cia, 1910, p. 12 - 13.

domingo, 11 de junho de 2023

naturalismo e antropologia: lévi-strauss como paradigma da separarão

  Em um mesmo parágrafo fizemos uso do termo naturalismo que sugere dois sentidos distintos para essa única palavra. O primeiro naturalismo por nós escrito seria aquele associado à literatura, à ficção, à língua, à forma, etc. A segunda aparição da palavra, ocasião para que abrisse essa nota de rodapé, se refere ao que hoje se chamaria de biologia; é um naturalismo científico, responsável pelo estudo da anatomia, fisiologia, etc, de vegetais e animais. Há também um terceiro naturalismo; terceiro porque sua existência é dupla, e seu estatuto discursivo elástico. Me refiro ao naturalismo dos viajantes, aos diários, relatos de viagens e demais gêneros por eles produzidos. Essa separação entre literário e científico, no entanto, embora pertinente em relação à organização, controle e estabilização dos enunciados, se dentro de uma perspectiva da escritura, da disseminação da língua, percebemos séries de vazamentos e contaminações entre um e outro. Os naturalistas e seus estudos fisiológicos e anatômicos de plantas e animais, colocados a partir de uma história natural e/ou da da evolução, faz com que o estudo seja somente um ramo específico dessa ancestral genealogia em que todos os seres vivos são desdobramento de uma mesma força ou lei; desde os primordiais moneras, até o fantástico desabrochar da inteligência humana, atuaria o mesmo princípio, cujo protótipo mais disseminado foi a seleção natural de Charles Darwin. A história natural, portanto, é o desdobramento de leis da natureza; da interação entre organismo e meio; de sua concorrência e associação com os demais; e se sobrevivem aqueles mais aptos, e se são herdadas as características mais vantajosas, é portanto destino provado cientificamente que a natureza impõe aos seres vivos a adaptação e/ou o aperfeiçoamento e/ou progresso. A antropologia do século XIX surge como um ramo dessa história natural cujo intuito seria buscar, a partir das coordenadas oferecidas por diversos a prioris extraídos das leis naturais, as particulares do desenvolvimento humano no tempo, especialmente a partir da perspectiva de que este desenvolvimento deveria se expressar na forma de aperfeiçoamento das faculdades humanas - a razão, a política e a beleza, para repetirmos a tríada kantiana, são dimensões em que separa-se os humanos dos demais animais e seres vivos. Muita dessa antropologia, em contraste com o que se caracterizou enquanto etnografias, não por acaso era de caráter especulativo; seu objeto de estudo, afinal, não eram grupos ou comunidades humanas específicas, mas acontecimentos enterrados e apagados pelos milhares anos de história: Como do macaco se desenvolveu o homem? Qual seria afinal a origem da razão? Como passaram de bandos desarticulados e sem leis para sociedades dotadas de moralidade e organizada por preceitos públicos? Em que circunstância passou o ser humano a falar, comunicar e representar o mundo e os acontecimentos nessa forma tão arrojada que a língua permite? Percebam que essas perguntas não se tratam exatamente de encontrar princípios explicativos ou teóricos, porque esses já estavam dados; embora hajam divergências aqui e acolá, o princípio de tudo repousa naquilo que é a lei da natureza: a escassez, a superação do mais apto e o falecimento dos fracos, a herança das aptidões e gradual desaparecimento dos defeitos, etc. O que se tratava para estes antropólogos não era desvendar as leis da natureza; essa afinal já estava dada. O que a antropologia especulativa fazia era antes uma tentativa de estender as leis da evolução e os estudos naturalistas ao seu limite, até o ponto em que sairíamos das leis naturais e teríamos que passar a pensar em leis humanas; ainda que essas leis humanas partissem da analogia entre a evolução humana e a evolução natural, ao colocarem essa linha divisória entre o macaco e o homem - razão, ética, língua - de maneira críptica se abria a brecha por onde os antropólogos do século seguinte fundaram um campo totalmente autônomo, separando a antropologia dos métodos e teorias naturalistas por meio da aproximação de outros saberes. Embora saibamos da artificialidade dos paradigmas e origens, é difícil não mencionar o livro Estruturas elementares do parentesco, publicado em 1949 sob o nome de Claude Lévi-Strauss, não somente por propor um gênero de antropologia que se disseminou não só por dentro da disciplina antropológica, mas para outros campos discursivos. Talvez a antropologia cultural de Franz Boas pudesse ser um mito de origem mais adequado para tratar da cisão entre os estudos antropológicos e as leis naturais, é verdade, já que estabelece a primazia da cultura sobre o meio e a raça. Sem negar a importância de Boas para os estudos antropológicos, mas parte considerável do poder cifrado em Estruturas elementares do parentesco foi ter estabelecido a distinção entre natureza e cultura com a mesma força sistemática que caracterizava as teorias e filosofias da natureza. Quando Lévi-Strauss demarca a fronteira entre natureza e cultura por meio da capacidade humana de controlar, operacionalizar, distorcer, artificializar, organizar, e enfim, dar sentido diverso para aquilo que é o fim último da lei da natureza, a reprodução, transforma o que era fundamento e intuito da história natural em instrumento para a realização de coisas alheias ao mundo animal; muito especialmente, no Estruturas elementares do parentesco, a reprodução, o controle socialmente disposto sobre ela, faz com que a natureza, a reprodução da espécie, fosse, primeiro, um instrumento de política, que desenha redes de alianças e inimigos, mas segundo, e esse é o grande salto proposto, a reprodução da espécie, por meio da troca matrimonial, passa a atender não à lei da seleção natural, à reprodução dos caracteres mais fortes, mas sim à reprodução da sociedade, reprodução de suas estruturas. Não se herda ou não se interessa mais com a herança genética, com as aptidões passadas de pai para filho; Lévi-Strauss leva as ciências sociais para pensar na reprodução e nascimento como herança de um nomos, uma comunidade e modo de viver anterior ao nascimento da criança, e tão logo esteja nascida, tão logo será posta para participar de tal nomos, de modo tão intenso e alienante que a sociedade passa a adquirir as feições de natureza; a cultura é naturalizada. Somente à guisa de conclusão, ainda sobre Franz Boas, importante destacar que muito embora tivesse proposto a cultura como esse espaço teórico capaz de separar a antropologia do naturalismo, sua postura diante dos conceitos que canalizavam a filosofia e história natural dentro da antropologia, com a raça, o meio, é quase sempre o de ceticismo: embora preconize o estudo da cultura como método mais adequado para se conhecer uma sociedade, e que rejeite a hipótese evolucionista da superioridade entre povos e/ou raças, o ponto de Boas não passa por abolir a importância dos estudos biológicos, a genética e fisionomia, como saberes da disciplina antropológica; Boas, antes de mais nada, pretende declarar cientificamente infundadas as teorias de que a psicologia de uma pessoa possa ser explicada por sua origem genética, preferindo pensar na questão das patologias sociais como oriundas de causas estritamente sociais. 


o principal modelo de Lévi-Strauss, pelo que parece 


se destaca por definir de forma positiva a separação e distinção 

transpor esse arsenal linguístico e conceitual para um gênero, se não de historiografia especulativa, que dema o desenvolvimento da raça e/ou culturas e/ou civilizações, surge como símile da história natura uma história progressiva e violenta cujo modelo mais proeminente foi a seleção natural de Darwin


sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

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