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sexta-feira, 18 de abril de 2025

sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1.

o que a teoria marxista-comunista deseja?

pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formulá-las em um nível superior. sohn-rethel trata o socialismo como o início de uma gestão racional da vida social, a superação de uma fase que, nos termos dele, seria ainda da natureza. desde uma perspectiva que considero a mais correta, o fim das classes e da propriedade privada seria menos o fim de uma fase natural pré-histórica do que o fim de uma época: a época da forma-mercadoria.

no nível teórico, o marxismo é uma ciência da história, no sentido de que somente pode compreender a estrutura atual como resultado de uma história das forças produtivas. mas, como li esses dias no giannotti, existe uma diferença entre a história necessária para a operação capitalista, e a operação em si mesma (por exemplo, o feudalismo é parte da história do capitalismo, mas o feudalismo não se refere à lógica de reprodução autônoma do capitalismo); por isso, me parece possível afirmar que o marxismo, enquanto uma disciplina nascida em uma sociedade capitalista, somente pode vir a ser a partir de suas condições materiais de acúmulo e expansão, que o capital trata como se fosse infinita.


2.
 
a questão das sociedades arcaicas ou primitivas nos coloca, e que tentarei responder desde o ponto de vista marxista: existia história em sociedades arcaicas e sem classes? creio que sim, muito embora o seu desenvolvimento não seja como nas sociedades de classe, que no caso do capitalismo, basea-se no progresso da divisão do trabalho e acúmulo do capital privado.

lévi-strauss coloca um pouco dessa ideia no seu pensamento selvagem: não é que as sociedades frias não tenham história, mas elas vivem em uma temporalidade diferente: o devir existe, mas de uma forma diversa. isso se relaciona com uma percepção culturalista e historicista (talvez essas ideias possa ser remetida a franz boas) em que o tempo não se dá como uma constante universal: as formas de vivenciar e processar os efeitos da temporalidade são sociais e, portanto, variam conforme cada sociedade.

sobre o conceito de "povos sem história", ou seja, povos que existiriam como que fora do tempo, em que o devir entra por um ouvido e sai pelo outro, lévi-straus procurará sair de tal negatividade entre sociedades originais, isto é, que estão em estado de natureza, e sociedades desenvolvidas, capazes de acumular na sua forma a passagem do tempo, na distinção entre sociedades frias e sociedades quentes: "umas procurando, graças às instituições que se dão, anular, de forma quase automática, o efeito que os fatores históricos poderiam ter sobre seu equilíbrio e sua continuidade; as outras, interiorizando resolutamente o movimento progressivo histórico, para dele fazer o motor de seu desenvolvimento" (p.268)

como eu leio essa distinção? de um lado, temos sociedades arquivísticas, que continuamente registram e acumulam bancos de dados; do outro, temos sociedades mitológicas, que continuamente rejeitam a necessidade tão imperiosa e civilizada de acúmulo: por meio do sistema mitológico, elas ao mesmo tempo (1) esquecem os acontecimentos ao revolvê-los a um significado mítico e (2) reescrevem, sob os mesmos signos, uma série de novas informações.

desde um ponto de vista marxista, e portanto, materialista, a distinção entre sociedades frias e quentes remete a procedimentos de estocagem de informações. lévi-strauss demonstra como o mito, ao contrário dos teóricos da a-historicidade das sociedades frias, pode sim guardar informação, mas que esse é um arquivamento barato, adequado a baixa produtividade de tais sociedades: elas não tem arquivos civilizados, eles não tem historiadores, ele não tem escritores; tudo que usam são signos, transmitidos oralmente, de uma geração para outra, pelo sistema parental. para registrar e ordenar os acontecimentos, não produzem caracteres sobre papéis: usam a natureza vegetal, animal e geológica; o que se rejeita, portanto, não é a temporalidade, mas sim os dispositivos materiais (as tecnologias) que as sociedades civilizadas incessantemente produzem para continuamente arquivar as novas informações.

perceba que os arquivos naturais (flores, animais, céus e montanhas) são também sistemas de significantes. neles, se escreve a história universal dos selvagens. essa matéria, que empregam para a escrita, é acumulada historicamente no tempo natural ou telúrico do desenvolvimento da terra, um ritmo que certamente se afeta desde as trocas metabólicas feitas entre natureza e homem (os selvagens, por exemplo, selecionam as espécies vegetais e animais que lhe são benéficas), mas que, mesmo para produzir culturas humanas, seguia esse tempo de reprodução da natureza, um tempo muito diverso das sociedades baseadas na troca de mercadoria e produção industrial. (lévi-straus demonstra, no entanto, que também empregam artefatos e engenhos humanos, mas para todos efeitos, esses objetos não descrevem o movimento acumulador das sociedades quentes: a produção de database, nas sociedades frias, é lenta e avessa a expansão).

o mito, erguido sobre uma base material muito limitada, terá, naturalmente, pouco espaço para a escrituração. o mito, portanto, é um banco de dados curto, que precisa ser reescrito continuamente. na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma: as sociedades frias "não tem história" porque, por conta dessa limitação material, não acumulam continuamente os resíduos e informações: o tempo para elas não é um inchaço progressivo, como é nas nossas, mas um contínuo apagar e criar, organizado desde um sistema geracionalmente transmitidos.

portanto, lévi-strauss planeja sair do dualismo entre sociedade com história e sem história mostrando que (1) o devir do tempo existe para toda forma de vida; todos estamos submetidos a esse fluxo que destrói e renova; isso quer dizer que as sociedades frias, tal quais as quentes, de fato processam o tempo: eles só acumulam muito pouco, eles somente não expandem as bases arquivísticas: a mantém dentro de um limite material característico. na verdade, as sociedades frias ativamente rejeitam esse sentido imperativo da história universal, europeia e capitalista baseado no acúmulo e expansão infinito. são sociedades fundamentalmente da finitude; tal penúria de arquivos podemos explicar pela baixa produtividade das sociedades frias: quanto mais matéria existe no mundo, mais necessidade de trabalho para produzi-la. conclui-se ainda que, portanto, (2) o que chamamos de "história" é na verdade uma prática disciplinar, baseada na expansão e acúmulo de dados e arquivos, e somente possível em determinada fase histórica da produção material.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

O FIM DO MUNDO COMO FIM DO CAPITAL

hoje aqui em casa a sensação térmica anunciada é de 43º. o calor degradante em que vivemos no subúrbio do rio de janeiro me obriga a pensar nos indícios de que a natureza, pelo menos como conhecemos, irá acabar dentro dos próximos séculos.

a história se dirige a um último termo catastrófico, no estrito sentido de "catástrofe" que possuem os grandes acontecimentos naturais que, ao alterarem significativamente as condições de vida na terra, instalam o início e fim de eras geológicas. atentos a essas descontinuidades, os cientistas introduziram a clássica periodização da história da terra em pré-cambriana, paleozoica, mesozoica e cenozoica. hoje, no entanto, alguns cientistas já passaram a se referir a um antropoceno, tendo em vista essa aceleração entrópica da catástrofe natural, tão engenhosamente colocada em curso por meio da organização do trabalho humano.

alliez e lazaratto, no entanto, ironizam o conceito de antropoceno, e passam a falar de um capitaloceno, como forma de distinguir entre a atual cultura produtiva capitalista, e as demais formas de organização do trabalho ao longo da história. dizem os autores que a aceleração da catástrofe geológica é, exclusivamente, um projeto da moderna civilização, e que mais uma vez confunde-se a natureza sob a atual organização do trabalho e modo de vida com a natureza universal da humanidade:

O capital é um modo de produção na exata medida em que é um modo de destruição. A infinita acumulação que desloca continuamente seus limites para criá-los novamente promove uma destruição ampliada e irrestrita. Os ganhos de produtividade progridem em paralelo com os de destruição. Manifestam-se numa guerra generalizada, a que os cientistas preferem chamar de Antropoceno em lugar de Capitaloceno, por mais que as evidências mostrem que a destruição dos meios nos quais e pelos quais vivemos começa não com o “homem” e suas crescentes carências, mas com o Capital. A dita “crise ecológica” não é resultado de uma modernidade ou de uma humanidade cegas para os efeitos negativos do desenvolvimento tecnológico, mas o “fruto da vontade” de certos homens de exercer uma dominação absoluta sobre outros, a partir de uma estratégia geopolítica mundial de exploração ilimitada de todos os recursos, humanos e não humanos.

enquanto isso, os milionários da big-tech idealizam fantasias de fuga para outros planetas. o saber tecnicista e neoliberal ainda acredita miraculosamente em uma administração da crise por meio da tecnologia, quando na verdade a tecnologia é também fundamento para a dominação e exploração generalizada que mantém o atual modelo produtivo, cuja teleologia não é outra fora o fim do mundo.

sim, está calor pra um caralho. capitalistas malditos, espero que morram de forma dolorosa.


quarta-feira, 10 de julho de 2024

o utilitarista e o hedonista

do utilitarismo, pelo fato de, como toda construção ética, buscar a felicidade, facilmente se confunde com o que se chama, vagamente, de hedonismo, mas somente pela confusão que toda mente utilitária, fundada na ascese e na economia, faz entre felicidade e prazer. essa é a convergência fatal entre filosofia epicurista e utilitarista: o gesto ascético, o controle do desregramento como imperativo de felicidade. o hedonismo verdadeiro, contudo, possui sempre um quê de trágico, um quê de dionisíaco, e mesmo de sádico, em que toda economia somente pode ser justificada perante o acúmulo de um dispêndio ainda mais imperioso. é a moral de marques de sade: o gozo mais intenso somente é possível por meio do cálculo e disciplina preliminar. nisto, talvez, separa-se dois gêneros de hedonista: o vicioso, ou ainda, o viciado, preso na imediatez, na repetição frenética, que acaba por esvaziar todo o prazer lento da espera e da conquista, e aquele hedonista sádico, que faz da demora, da cerimônia e expectativa um meio não de adiar o orgasmo, mas de intensificá-lo. e se o hedonista sádico se assemelha ao utilitário pelo vício na economia, no controle sobre si, é preciso distingui-los pelos seus fins, pelas diferentes felicidades de cada um: se o sádico hedonista antevê e pratica, pela elasticidade e demora do meio, seu desejado gozo, o utilitário como que transforma o meio em fim: seu orgasmo é o acúmulo infinito, o gozo de jamais romper a economia em dispêndio: nesta retenção infinita que justifica toda sua vida. e quando seu corpo, em algum ponto, não tolera tamanha repressão, se ceder, será com dor. todo utilitarista, se vier a ser um hedonista, será para se arrepender, mesmo que para se arrepender mil vezes do prazer que nega outras mil desejar. daí a singular confusão do utilitarismo entre felicidade e prazer: sua felicidade está justamente em negar, pelo culto da utilidade, o dispêndio que tanto lhe daria prazer

sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

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