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sábado, 15 de junho de 2024

gilberto freyre é um antropólogo naturalista, mas...

me enveredo em uma longa análise da obra de gilberto freyre a partir das ciências naturais-biológicas para chegar no ponto e dizer ao leitor que, no entanto, a obra de gilberto freyre não é uma ciência-natural-biológica. tanto gasto de tinta pareceria ocioso se fosse para confundir o modelo epistêmico de sua sociologia com o das ciências positivas. se me demoro construindo esse tal modelo, se perco tempo demonstrando suas afinidades com os grandes livros de gilberto freye é, em primeiro lugar, por "estilo argumentativo", viciado sempre nos modos adversativos, em que depois da preposição se introduz um "mas", um "porém", um "todavia", que introduz ao sentido previamente e às vezes longamente construído um desvio. 

sim, gilberto freyre possuí séries de semelhanças com as ciências da natureza, sem que, no entanto, deva ser confundido com. 

nascido na alvorada do século XX, a formação de gilberto freyre manteve laços estreitos com a antropologia modelada enquanto um ramo dos estudos evolutivos e de hereditariedade, sem, todavia, deixar de se debruçar naquele domínio que que dilthey iria tratar como o da lebenphilosophie, e que pode ser relacionado com aquilo que husserl trata por lebenswelt por se tratarem de um conhecimento incapaz de ser formulado pelas ciências positivas, e nos quais, historicamente, se desenvolveram aquilo que convém chamar de "ciências humanas" ou "humanidades". 

que as humanidades venham a ser constituídas enquanto uma "filosofia da vida", como uma ciência do "mundo da vida", demonstra a ambiguidade e imprecisão circundante a todo conceito de vida no século XIX e XX: por um lado, a vida se converte em biologia, em estudos experimentais realizados em laboratórios, por profissionais zelosos pelos métodos de mensuração e pela aplicação de modelos da física e química ao estudo dos seres vivos; por outro, uma compreensão da vida e natureza legada - provavelmente  - do romantismo, que se caracteriza pelo turbilhão da experiência incapaz de ser sintetizado fielmente pela técnica científica. 

gilberto freyre, embora fosse ou almejasse, durante as primeiras décadas de trabalho, ser um cientista, não deixou de compreender a vida enquanto esse fenômeno romântico, excessivo, cuja formulação mais clara em sua obra está relacionada com sua analogia entre o sociólogo e o romancista, a pretensão de representar a vida do curso de seu movimento, de expressar pela extensão da representação aquilo que a métrica e unidade conceitual eram incapazes de aludir. 

não preciso dizer que essa compreensão de gilberto freyre rapidamente se tornaria anacrônica: a primeira edição de casa-grande & senzala nos estados unidos foi recebida com críticas ásperas, direcionadas principalmente à "metodologia mística" - termo empregado pelo próprio gilberto freyre, e que remetia a dimensão auto-biográfica, proustiana, meditativa, com que escreveu o livro -, que ao crítico parecia inadequado ao trabalho verdadeiramente científico da antropologia. e o resto, como sabemos, é história, já que em nosso próprio país se desenvolveria, a partir de são paulo, quando profissionalizada nossa universidade, uma crítica análoga, e ainda mais vasta, contra a "anti-cienticifidade" de gilberto freyre. 

a questão se torna, então, não somente o que seria essa "libenphilosophie" de gilberto freyre, ou no que consistiria a porção de sua obra ainda indefinida, em espera, indicada apenas como um negativo - um "não é" - das ciências positivas, mas também como essas próprias ciências positivas em que gilberto freyre construiu seu modelo científico, ao longo do século XXX, se desatualizaram, se tornaram literalmente ultrapassadas, ao ponto de que, nos anos 70, quando gilberto freyre trata de "como e porque é e não é sociólogo", fará somente acenos discretos a elas, preferindo investir na outra direção de sua obra, caracterizada pelo intuicionismo, a relação entre sociologia, arte e vida, a influência dos sociólogos alemães a partir do seu modelo empático-compreensivo, a herança mística e  de reflexão auto-biográfica dos ibéricos, os relatos de viajantes, etc, tentando assim construir um modelo contra a ciência em voga.

mais uma revisita ao brasil de gilberto freyre

depois de muito tempo voltei a ler gilberto freyre. "sobrados e mucambos". havia me esquecido como é estranha sua sociologia: no desarranjo que faz com a teoria social, nos cortes e ligações entre conceitos antigos, criação de outros, cria a impressão não só de uma individualidade de estilo ou teoria, mas também de uma individualidade de brasil. a impressão que me causou, depois de um bom tempo sem visitar seus livros, é de que a paisagem traçada produz um efeito etnográfico, de enviar o leitor a uma região estrangeira, diversa daquelas construídas pela sociologia corrente, europeia. a aproximação da sociologia com o gênero etnográfico me parece se relacionar com a liberdade ao mesmo tempo formal e teórica dos etnógrafos: submissos menos às convenções (formais e teóricas) do gabinete científico do que aos impulsos orientados pelas impressões do campo. é claro que, para uma história do brasil patriarcal, falar em "campo" é um pouco impróprio, mas, a partir da teoria proustiana, meditativa, que atravessa a história de gilberto freyre, o campo poderia ser entendido em sentido duplo: tanto aquele que prolonga romanticamente o passado no presente vivido, e o arcaico seria reencontrado, em seus restos e ruinas, no presente moderno, mas também no próprio corpo do pesquisador, gilberto freyre, que seria parte dessa história sentimental brasileira, dessa sucessão de afetos e desejos regionalmente contidos, fisicamente postos a circular, socialmente orientados, que constituem os sujeitos moventes pelos espaços do território-nação. o corpo seria então uma espécie de campo: o fato de servir-se de si como documento, dos sentimentos, memórias de menino, medos, traumas, desejos eróticos, enfim, as experiências brutas do sujeito, não seria impedimento de ciência, mas forma legítima de formulá-la dentro desse nível etnográfico, da particularidade cultural, que escapa às sociologias generalistas de matriz europeias. o resultado desse e outros procedimentos, como disse de início, será uma sociologia estranha por não ser estrangeira: estranheza que, não obstante, de alguma maneira serve ao reconhecimento do nacional, do subjetivo, das experiências vividas trans-historicamente por brasileiros. ou, pelo menos, diante da disseminação da obra gilbertiana no imaginário de tantas outras, poderiamos dizer que ela atingiu sua eficácia de criar um mundo potencialmente brasileiro, capaz de preencher as fantasias, ao menos, das classes relacionadas nostalgicamente com o patriarcado.

sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...