sábado, 15 de junho de 2024

mais uma revisita ao brasil de gilberto freyre

depois de muito tempo voltei a ler gilberto freyre. "sobrados e mucambos". havia me esquecido como é estranha sua sociologia: no desarranjo que faz com a teoria social, nos cortes e ligações entre conceitos antigos, criação de outros, cria a impressão não só de uma individualidade de estilo ou teoria, mas também de uma individualidade de brasil. a impressão que me causou, depois de um bom tempo sem visitar seus livros, é de que a paisagem traçada produz um efeito etnográfico, de enviar o leitor a uma região estrangeira, diversa daquelas construídas pela sociologia corrente, europeia. a aproximação da sociologia com o gênero etnográfico me parece se relacionar com a liberdade ao mesmo tempo formal e teórica dos etnógrafos: submissos menos às convenções (formais e teóricas) do gabinete científico do que aos impulsos orientados pelas impressões do campo. é claro que, para uma história do brasil patriarcal, falar em "campo" é um pouco impróprio, mas, a partir da teoria proustiana, meditativa, que atravessa a história de gilberto freyre, o campo poderia ser entendido em sentido duplo: tanto aquele que prolonga romanticamente o passado no presente vivido, e o arcaico seria reencontrado, em seus restos e ruinas, no presente moderno, mas também no próprio corpo do pesquisador, gilberto freyre, que seria parte dessa história sentimental brasileira, dessa sucessão de afetos e desejos regionalmente contidos, fisicamente postos a circular, socialmente orientados, que constituem os sujeitos moventes pelos espaços do território-nação. o corpo seria então uma espécie de campo: o fato de servir-se de si como documento, dos sentimentos, memórias de menino, medos, traumas, desejos eróticos, enfim, as experiências brutas do sujeito, não seria impedimento de ciência, mas forma legítima de formulá-la dentro desse nível etnográfico, da particularidade cultural, que escapa às sociologias generalistas de matriz europeias. o resultado desse e outros procedimentos, como disse de início, será uma sociologia estranha por não ser estrangeira: estranheza que, não obstante, de alguma maneira serve ao reconhecimento do nacional, do subjetivo, das experiências vividas trans-historicamente por brasileiros. ou, pelo menos, diante da disseminação da obra gilbertiana no imaginário de tantas outras, poderiamos dizer que ela atingiu sua eficácia de criar um mundo potencialmente brasileiro, capaz de preencher as fantasias, ao menos, das classes relacionadas nostalgicamente com o patriarcado.

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