sábado, 15 de junho de 2024

um materialismo libidinal

pouco tempo vi cá no site discussões sobre o conceito de materialismo libidinal, que me pareceu indefinido, enquanto em gilberto freyre - sem que receba essa nome - surge de forma tão clara. 

quando se fala no ímpeto de que as "caboclas recém-civilizadas" se penteavam "como as damas portuguesas", a figura termina de ser composta por seu par antitético, as "negras e mesmo mulatas de cabelo mais encarapinhado", que não podiam pentear cocós tais quais as senhoras elegantes. diz gilberto freyre que, no lugar dos penteados, disfarçavam "essa incapacidade" - essa vergonha - "usando vistosos turbantes que se tornaram insígnias ao mesmo tempo de raça e de classe servis ou ancilares". (p. 362) 

relativizado os valores assumidos pelos penteados e turbantes ao longo da história - o próprio gilberto, creio que depois de suas viagens, irá rastrear o uso do turbante como forma ancestral, oriunda da áfrica e transmitida para o brasil por meio dos escravizados - o que importa demonstrar é a cadeia articulada pela série "negra de turbante - cabocla recém-civilizada - dama portuguesa": em sua estrutura de classe e raça não se define somente o sentido do acúmulo econômico (na direção da casa-grande), mas também esse indescritível acúmulo libidinal, em que o desejo se funda, desde suas formas mais baixas - a vergonha, a inveja - até as elevadas - o orgulho, o amor-próprio -. a escrava, envergonhada de si, dos cabelos, esconde-os com turbantes, que vem a ser insígnia de inferioridade social; a cabocla, recém-civilizada, ascendente, copia o penteado da casa-grande, importado dos cabelos europeus. essa lógica da inveja, que no sistema libidinal global tradicionalmente, pelo menos a partir do século XIX, terminará na frança, no típico complexo parisiense que assola as classes aristocráticas brasileiras, constitui de maneira clara o que pode ser chamada de economia libidinal: uma repartição do desejo dentro da repartição de classes/raças. marcado pelo "desejo de ser outrem", ou ainda, de imitação, essa espécie da ontologia da falta fundaria subjetividades negativamente definidas, ou ainda, subjetividades definidas enquanto signos de outra. fanon era bem claro quanto a isso: “o negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa”. (p. 33) podemos então tratar de uma metafórica mais-valia das paixões, em que para extrair-se o amor-próprio, a vaidade, o luxo, é preciso mitigar o alheio, em uma violência que transforma o outro em inferior; ou melhor: funda o outro, pela força do sistema libidinal em operação, como inferior.

deixo uma citação sobre a carnavalização resultante dos cruzamentos entre o baixo e o alto, como se existisse uma inércia no movimento, uma resistência que impedisse que a libido simplesmente corresse de baixo para cima, uma transformação inerente ao movimento:

"O referido príncipe Maximiliano notou, no Brasil serem os portugueses bons cavaleiros, amantes de um andar 'passeiro' de cavalo, para o que atavam às patas dos animais pedaços de madeira. Mais: usavam enormes esporas, no que os imitavam, quanto possível, caboclos e mulatos mais sacudidos como o que Maximiliano conheceu em São Bento: espada de lado e esporas atadas aos pés descalços. Ostentação de insígnias de classe dominante por homens agrestes demais em sua cultura para renunciarem ao gosto da gente de sua raça pelo hábito de andar descalça, mesmo quando revestida de adornos mais solenes". (p.363) 

podemos dizer, sinteticamente, que a imitação, tal qual a teoria mimética do luiz costa lima, sempre comporta alguma diferença. socialmente, essa diferença funda a cultura autenticamente brasileira que gilberto freyre busca.

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