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quarta-feira, 22 de maio de 2024

CORREÇÃO INFINITA

 A teoria naturalista de Lamarck é precisamente a da abstração da natureza empírica em uma série abstrata constituída por meio da linguagem. Isso nos leva a uma série de problemas.

Por um lado, perde-se, em relação ao conhecimento feito pelo contato imediato com os seres, uma irrecuperável porção de verossimilhança, já que a língua elaborada, por melhor que seja, jamais será perfeitamente igual às ricas formas da natureza. Essa perda infeliz é contudo necessária, porque somente nela funda-se o conhecimento, já que este, para Lamarck, consiste na ordenação das propriedades infinitas da natureza. 

O infinito é in-ordenável: uma reta infinita pode ser cortada em infinitas porções. Somente pelo sacrifício dessa totalidade inapreensível será possível o fundamento de uma ordem verdadeiramente conhecível. Pela língua o homem ganha em comunicabilidade daquilo que, pela e na natureza mesma, infinita, é incomunicável. É necessário esse empobrecimento por meio da língua para que o mundo se torne matéria de conhecimento entre os homens.

Resta oculto, no sistema de nomes no qual se funda a história natural de Lamarck, um modelo matemático de conhecimento, que vai desde a extensão infinita da natureza até aterrissar no finito perfeito do ponto. A língua, intermediário entre a natureza e o número, por sua natureza e finalidade, infelizmente oscila entre a riqueza do real e a precisão do matemático. Primo pobre de ambos, é forma precária, que não tem nem a potência da comunicação perfeita do número, nem a realidade em si mesma do mundo. 

Se a língua ainda é instrumento necessário para o conhecimento, é porque o conhecimento é sobretudo questão de entendimento. Uma questão de comunicação; ou ainda, como colocará Foucault em As palavras e as coisas, de distribuição de analogias entre as partes da natureza, cujo modelo mais claro - como já se disse, mas não fará mal enfatizar - é a igualdade matemática. A gramática geral da época clássica, por meio do núcleo verbal responsável pela ligação entre o sujeito e predicado, buscaria estabelecer uma operação de definição do indefinido por meio da determinação precisa do nome, como se este fosse, para o gramático, o produto verbal daquilo que, para o matemático, consiste na resposta de uma equação (x = y). 

O nome, para o sistema de Lamarck, deve ser expressão tão exata quanto possível for. A sua filosofia zoológica se refere a um saber teórico capaz de compreender a extensão infinita do real, para assim melhor abstrair um sistema de nomes, cuja ordem taxionômica represente aquela infinidade indizível com maior verossimilhança.

Só que, por suas próprias limitações, por habitar o limbo entre o infinito e o finito, o nome estará sempre fadado a derrapar: se, em comparação com a natureza em si mesma, o nome sempre deixará um resto, ou ainda, sempre terá um algo de inverossímil, quando em comparação com a matemática, o nome igualmente falhará, pois é consideravelmente impreciso, incapaz de fundar analogias tão perfeitas e exatas quanto as expressas pela série abstrata da aritmética. 

A língua será fadada a ser ou deformação ou desmedida; sempre, incontestavelmente, uma entidade negativa: nem vida nem número. Se o objetivo da língua é o entendimento, a fundação de um sistema de diferenças passíveis de comunicação exata do mundo, sua contraparte, portanto, será sempre a correção infinita. Prima pobre da natureza e da matemática, de uma retira o poder de analogia, da outra, a extensão impercorrível. 

Todo sistema de conhecimento baseado na precisão da linguagem será, invariavelmente, um sistema de correções. Por conta disso que o naturalismo de Lamarck, sempre flutuante entre a artificialidade da classificação e o infinito do real, somente poderá ganhar solução pelo termo das academias de ciência, cujo objetivo será, por meio de sua soberania, controlar os desacordos inevitáveis da linguagem. Isso quer dizer que a ciência, enquanto fundamentado no nome como meio de ordenação das partes do real, está fadada a um problema gramatical que, na verdade, é de natureza política: o perpétuo inconveniente desacordo dos diferentes sistemas de línguas, os sucessivos reparos e suplementos da linguagem de um sobre o outro. Como o próprio saber jamais consegue determinar por si mesmo a ensejada língua perfeita, será necessário extinguir as diferenças indesejadas por meio da força, para assim, por meio de uma língua despótica, edificar essa utopia do conhecimento.



domingo, 11 de junho de 2023

sobre empregar a tripartição kantiana - entendimento, ética, estética - sobre autor, obra, escritura, limites...

Mais por comodidade para nós, os escritores, que não desejamos perder muito tempo em tais pormenores, do que por inspirar qualquer adesão ou programa filosófico, aqui empregamos livremente a tripartição tipicamente kantiana entre entendimento, ética e estética. É muito prático para nossos intuitos de brevidade e legibilidade o emprego de categorias que às vezes parecem muito gastas, mas é justamente por serem tão gastas que se torna tão ligeira a troca que propomos entre o leitor e as palavras aqui escritas. Caberia, no entanto, uma observação: A estrutura de um livro, ou ainda, de um sujeito, soa melhor quando conjugadas no plural, “estruturas”. Nos parece que um único escrito, e/ou mesmo um único corpo, estão tão bem disfarçados pelas máscaras que vez ou outra esquecemos que foram nós mesmos que os vestimos para, sobre o palco do papel, encenarem os papéis de “identidade”, de “continuidade”, de “sistema” e enfim, quantas mais palavras que enfatizem a unidade do objeto ao invés de sua ansiosa dispersão puderem ser pensadas. O que chamamos vagamente de objeto, no entanto, possui limites muito frouxos, e se curta compreensão destinada aos seres humanos temos dificuldade de percebê-la, é talvez o exame de sua história a melhor forma de nos atentarmos como aquele que parece um mesmo é capaz de existir como se fosse um outro. Mudam-se as fantasias, trocam-se as máscaras, mas a metáfora alcança seu limite quando esperamos descobrir o corpo verdadeiro escondido por trás desses ornamentos que nos distraem da verdade. A filosofia seria assim o despojar o mundo das fantasias, mas assim que realiza seu fetiche, e o strip-tease chega ao seu fim, a criatura revelada é ou grotesca demais para ser desejada, ou então, pior ainda, é indiferente, não causa qualquer espanto. Levamos então esse corpo atrofiado e atávico para os laboratórios e arrancamos sua pele, catalogamos seus ossos, damos nomes para sua anatomia… Depois de algum tempo confuso e cabisbaixos, os filósofos voltaram a sorrir. Esse corpo não é o corpo. O nu é somente outra fantasia? Arranquem de uma vez a epiderme pálida e seca e encontrem os verdadeiros segredos! músculos, órgãos, células, hormônios, neurônios, genomas, bactérias, vírus, reações químicas, átomos, elétrons…


As obras e autores são entidades múltiplas e escorregadias; o quão fácil é passarmos de um livro para um outro que o seu autor jamais sonhou em ler! A língua é um fenômeno mais complexo e estranho do que a lógica da influência, da proximidade física e afetiva entre um livro e outro, entre um autor e outro… A língua se espalha de formas estranhas; a escritura habita uma geografia própria. 


Quando falamos da “obra de um autor”, nos situamos dentro de uma geografia do estado-nação; cada autor é soberano de sua própria obra, e se a diplomacia é a forma liberal e legalista que os estudiosos encontraram para abrir a economia desse reino - a diplomacia equivale ao estudo das influências, das trocas intelectuais -, a guerra também é um meio legítimo para esburacar a autonomia do autor-obra -  as tensões e disputas entre os diversos países -. 


A flutuação estranha da escritura é similar à globalização e ao neoliberalismo. Porque as palavras atravessam fronteiras quase sem ser percebidas que são literalmente invasões, assim como mercadorias e empresas adentram países de terceiro mundo como se fosse somente fenômeno econômico, sem implicações políticas.


Enfim: as categorias também se desdobram; a transcendentalidade universal poderia se desdobrar e ramificar em muitas outras.


sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...