sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

50. RONDA NOTURNA

50.      RONDA NOTURNA

 

A parte mais noctâmbula da sociedade saía das óperas e comédias que enchiam os teatros do centro e se dirigia, pelas ruazinhas escuras, como grupelhos de formiga, até os espaços propriamente de boêmia. Vinha Nina Rodrigues e Azevedo Diniz em um desses bandos, de braços e a conversar sobre o espetáculo recém-assistido:

                - Eu não estou dizendo que ela mereceu o destino horrendo; é só muito conveniente que a tribuna sequer ouvisse o lado do pai.

                - Ouvir o lado do pai? Como você pode sequer sugerir coisa dessas? O lado do pai não ficou claro, depois de vermos com nossos próprios olhos o seu temperamento? A maneira rude com que foi criado, suscitando a formação não somente de paixões vis, mas de uma verdadeira personalidade criminosa?

                - Está exagerando. Criminoso é quem mata, quem estupra. O pai poderia estar errado, e nenhuma filha deveria ser tratada assim. Claro, é tão óbvio que todo o coro ficou do lado dela. Ninguém deseja defender um sujeito desses.

                - E no entanto, você está defendendo.

                - Não defendo o indefensável, mas demonstro de fato que exista alguma coisa de errada com a defesa.

                - Você me disse que havia já esquecido os anos da Escola da Direito. Que sempre ao encontrar os amigos daquela época, você em seguida se sentia imundo.

- Não é bem assim.

- Você todo final de semana terminava em seu quarto de pensão, bebendo sozinho, introduzindo comprimidos de ópio, até não mais sentir coisa alguma.

                - Eu nunca falaria com uma poesia estúpida dessas. Sentir coisa alguma? Quem deixa de sentir? Quando estou caindo de bêbado, claro que ainda estou sentindo. É só como se as impressões fossem infinitesimais, e por isso mil vezes mais refinadas e puras. A gente rude, acostumada com a sensualidade disso tudo – e apontou a cidade boêmia que se agitava ao seu redor – não consegue sequer cogitar as delícias possíveis somente sob esse gênero de sub-sensitividade, de sub-racionalidade, que eu me especializei em estudar.

                - Andou saindo com o Thomas?

                Desde que Thomas Plínio se juntou com Lola Baruch, havia se tornado um tipo diverso de homem. Antes era boêmio e estúpido, e na verdade, essa hoje era ainda sua fama, já que para muitos, que não viam mais Thomas Plínio a desfrutar da boemia, imaginavam que tivesse morrido. O que aconteceu, contudo, foi o perfeito contrário: Thomas Plínio chegou até sua mãe em um certo dia de terça-feira, depois de ter passado a madrugada vomitando, e começou um diálogo cheio de interrupções e reticências, que pelo meio dos mais variados assuntos, adiou o tema da conversação: Thomas Plínio havia sido expulso do seminário depois de um incidente envolvendo alguns coroinhas. Tudo aquilo era muito injusto, ele justificava para a mãe, tentando controlar as lágrimas que não obstante visivelmente escorriam pelos seus olhos. O pai assistia a tudo, silente, sem dizer um ai. A mãe em algum momento também não resistiu e foi às lagrimas. Depois, beijou o rosto do filho e disse que daria-se um jeito, papai conhecia um professor importante da faculdade e arranjaria uma vaga para ele, reaproveitando todos os créditos possíveis de sua antiga formação de padre. Thomas Plínio ficou hesitante, porque nunca havia se imaginado doutor. Na verdade, Thomas Plínio jamais havia imaginado nada: por toda sua infância ele foi conduzido, como uma vaca pelo pastoreio, a quem se mostra onde comer a grama e tomar sol. Admitiu-se certa vez para Lola Baruch: fui aceitando a ideia que mamãe fez de que eu fosse padre. Claro, por que não? Ora, não parecia mal assim. Eu não era particularmente um devoto quando menino, mas ia as missas, sobretudo para comer balas e brincar com as outras crianças. Fiz a primeira comunhão como se realiza uma tarefa aborrecida, mas a qual sequer se compreende a sua finalidade. Quando no seminário, cheguei mesmo a desfrutar das aulas de teologia. Eu pensei para mim mesmo, talvez é isso, eu deveria mesmo ser padre, e o destino é mesmo só uma banalidade: vive-se bem em qualquer dos mundos. Só que em muito pouco tempo me desviei, e trilhei todos os caminhos que não deveria. Hoje sinto vergonha.

                Para Lola Baruch, que passava horas ouvindo as lamentações de Thomas Plínio e às vezes já se sentia até mesmo aborrecida, e perguntava-se, no meio dessas histórias intermináveis, se valeria mesmo a pena empregar o seu tempo assim. Pensava nas possibilidades: (1) Chutar esse escroto e voltar para casa de papai. E passou então a recordar da infância com muita doçura, como se fosse a época de ouro da sua vida. Lembrou das bondosas mãos de Branca, remendando a sua velha bonequinha, e contando histórias de sua vida:

— Você realmente já foi uma menina, Branca? — perguntou Lola, os olhos nas ágeis falanges a correr agulha pelo tecido puído da boneca. Dona Branca riu baixo, e disse que já havia sido menina sim. Lola no entanto replicou que não podia acreditar, porque havia algo impossível nisso. Dona Branca parecia eterna, com pano de prato, lenço na cabeça, desse sempre obedecendo as gerações dos Baruch.

Ela entregou a boneca para a menina, que lhe abraçou e respirou o cheiro do pano velho, que nem os dos lençóis, herdados de sua avó, que lhe cobria nas noites mais frias. Branca prosseguiu:

— Era bem diferente, isso eu posso dizer. Não havia, naquela época, nenhuma boneca para brincar. Só vi uma boneca depois de velha, e me repugnou que alguém pudesse entregar réplicas humanas para as crianças cometerem seus sadismos. Me enojava flagrar sua mãe e sua tia brincando de coisas erradas com aquelas bonecas de pano. E eu tinha que costurar depois os fios soltos, me sentindo uma faxineira de alcova. Praticamente sentia o cheiro, e concluía que somente podia ser transpiração das meninas. Nem dez anos na cara e já eram malignas: aquele cheiro somente podia ser transpiração de mulher presa ao pano.

Lola, brincando indiferente com a boneca:

- Mas o que fazia se não brincava de boneca?

- Tinha outras coisas. A gente corria de um lado para o outro, tomava banho de rio, conversava, ouvia os velhos contarem histórias, jogava um monte de brincadeira. Nhô Baruch não compreende quando digo-lhe com todas as letras que essa sociedade em que vivemos está uma decadência das mais imundas. Veja as ruas cheias de mendigos e vadios, a viver no limitar da fome e do vício. Que civilização poderia conter esses projetos de seres humanos e ainda se orgulhar da obra da própria raça? Que fosse aqui Paris, e eu diria: talvez exista alguma coisa de valor, mas aqui não é Paris. E os malditos, para fazer todo mundo de trouxa, destinaram uma série de leis para importar uma enorme população de pombos, com a desculpa de que a experiência parisiense mostrava como essas aves contribuíam para as condições higiênicas da cidade. E quando a cidade ficou infestada por essa praga infernal, e não se podia nem mais levar um tabuleiro de doces para trabalhar em paz que se ajuntava uma gangue desses pássaros importados não de Paris, mas das profundezas dos infernos. Conheci gente boa e honesta que perdeu fornadas inteiras de mercadorias por conta desses demônios parasitários. Roubam o produto do nosso trabalho suado, e o Senado ainda resolveu proibir os mata-ratos de caçá-los, com a desculpa de que as penas dos pombos estavam infectadas com um micróbio causador de doenças terríveis. Eles fabricam as notícias, e ainda acreditam que estão contribuindo para o esclarecimento! Uma sociedade assim jamais poderia se orgulhar de si mesma, jamais, a menos que esteja tão decadente que já não possua mais qualquer consciência dos bons e elevados valores, e por isso se entregue às práticas mais horrendas como se fossem simples trivialidades. Falta é vergonha.

Lola fechou os olhos e viu: uma menina de pés descalços, um rio correndo, pedras quentes de sol. Branca era uma criança, e isso era tão estranho que deu vontade de rir. Encostou a cabeça no braço da cadeira onde Branca se sentava, entregou de volta a boneca e disse que havia uma falha. A negra olhou meticulosamente a boneca e voltou a fazer a agulha entrar e sair. Lola disse:

— E sua escrava? Como ela era?

- Eu não tive escravas. Escravos não possuem escravos, bobinha.

- E de quem você judiava quando ficava brava?, espantou-se Lola.

- De meus irmãos mais novos, mas às vezes nos juntávamos para pregar peças em nosso tio, que era um palerma, não fazia nada para ninguém, era um imprestável que dormia às três da manhã e acordava para almoçar a comida de minha mãe. Não entendia como meu pai e meu avô toleravam aquele mequetrefe. Teve uma vez que fomos até ele e dissemos que sua rede estava pegando fogo. O idiota amava a rede mais que tudo, e mesmo que não tivesse acreditado, ficou claramente receoso. Foi então para casa apressado, bem a tempo de ver a sua rede querida se apagar em cinzas.

- E quem contava histórias?

- Os velhos tinham prioridade na fala, e passava muito tempo ouvindo a voz de meus amigos. E agora, cuidando dessa casa, e agora cuidando dessa boneca velha que foi da sua mãe, me acostumei a ouvir a sua.

                (2) chutar Thomas Plínio e casar com Azevedo Diniz. Ele tivera problemas com a justiça, mas nada havia sido provado. Era, até onde podia-se dizer, um bom homem. Formado, e ganhava um salário justo desde que foi nomeado. Fez-se então séries de cálculos econômicos, e comparou a vida de filha com a vida de esposa, e constatou a extrema estupidez de toda a matemática. Passou dias sorumbáticas, querendo ser nada, quando depois da seguinte lembrança, decidiu casar-se com Azevedo Diniz:

               

                Era um dia como qualquer outro. Lola chegou, de braços dados com sua mãe e tia, e um rapaz tirou o chapéu para cumprimentar. A tia virou o rosto e ao entrarem lastimaram a juventude. Noutro dia, dessa vez com Branca, reviu Azevedo Diniz e, para sua surpresa, se dirigiu até as duas. Conhecia Branca, e lhe cobriu de galanteios, como se Branca fosse uma mocinha. Chegou em casa e viu no espelho o próprio corpo e não compreendeu o que se passava. Então, a porta sua abriu e era seu pai, que recuou depois de ver a filha nua. Desde então, passou a nutrir uma paixonite incestuosa pela filha. Uma vez que bebeu foi espiá-la no quarto. Viu a jovem repousar na cama. Fechou a porta e se matou. Tudo diante da mãe, que depois contou tudo secamente à filha.

                Só que quando Lola Baruch foi procurar Azevedo Diniz, soube que ele estava com Nina Rodrigues, e teve que resignar voltar à casa do pai. Todo o seu pensamento não serviu para nada, e Lola Baruch disse para si mesma que era a última vez que viria a pensar alguma coisa. Por isso compreendeu quando, ao enfim sentarem em uma mesa de bar, Azevedo Diniz concluiu sua argumentação dizendo que gostaria de ser um protozoário. Seus experimentos com alterações sensoriais fizeram-lhe concluir empiricamente que a consciência primitiva das amebas é muito mais avançada do que a humana. Era muito superior aquele mundo microorgânico das sensações mínimas, das intensidades infinitesimais, cujo cume da consciência era, quando mundo, o sonho, ou ao menos impressões de sonho, como aquelas que se experimenta depois de acordar no meio do sono, sentir roçar em nós algum pensamento, e imediatamente voltar a dormir.

                Ficaram então em silêncio para ouvir a música que tocava nos roufenhos fonógrafos do botequim. Ao lado, um fuzileiro naval, aos berros com turcos, acrescenta a sua voz aos dos cavaquinhos e violões que escapam da vitrola. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do ponta do pé, carregadores espapaçados, rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes, marinheiros, bombeiros, túnicas vermelhas e fuzileiros – uma confusão, uma mistura de cores, de tipo, de vozes, que fez Nina Rodrigues e Azevedo Diniz temporariamente esquecerem os problemas. No dia seguinte acordaram de ressaca, a cabeça doendo, e o corpo exausto de tanto se distrair.


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p. 34: conhecimento como produção  - pelo trabalho dar existência objetiva ao que existe em potência no objeto. p. 36: Sujeito e objeto dado...