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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

HUSSERL CONTRA A PSICOLOGIA NATURALISTA

A crítica de Husserl aos psicólogos naturalistas exorta o saber a trabalhar não sobre os "dados primeiros”, i.e., as coisas-em-si anteriores às experiências, aquelas exterioridades que certamente existiam, independente de qualquer sujeito que a experienciasse. 

Não me parece que Husserl queira negar a existência dessas empiricidades de onde provém os dados da experiência. A fenomenologia de Husserl somente deseja rebaixar a qualidade de seu conhecimento perante aquelas formulados pelas ciências da experiência, i.e., aquelas que conhecem não tais dados que seriam dados aos sentidos, existência independente do mundo humano, mas sim que atendesse às necessidades suscitadas pela existência nessa experiência. [nos inclinamos a pensar que já husserl já era um existencialista, pelo menos nos seus "textos de crise", que abandona a posição dogmática e se coloca na altura de um saber circunscrito por uma experiência concreta].

Diante da miséria humana, Husserl exorta aos acadêmicos que pensem não no mundo objetivo e físico, mas sim no mundo conforme experenciado pelos sujeitos. Os relatos sobre a crise da cultura europeia exigem uma sabedoria da vida, uma ciência moral capaz de responder sobre as necessidades dadas na e pela experiência, e para isso, aqueles discursos infindáveis sobre o que seria “dado aos sentidos” independente de qualquer experiência seriam fundamentalmente inúteis, pelo menos se não pressupusessem essa intencionalidade de toda consciência. Husserl impõe a necessidade de pensar-se o sentido do saber desde a experiência humana, dentro de seus valores e contingências temporais e espaciais: 

“Só quando o espirito deixar a ingênua orientação para o exterior e retornar a si mesmo e permanecer consigo mesmo e puramente consigo mesmo, poderá bastar-se a si. Como se chegou a um começo de uma tal reflexão sobre si? Tal começo era impossível enquanto dominava o sensualismo, ou melhor dito, o psicologismo dos dados, a psicologia da tabula rasa. Só quando Brentano postulou uma psicologia como ciência das vivencias intencionais deu-se um impulso que poderá levar adiante, embora o próprio Brentano ainda não tenha superado o objetivismo, nem o naturalismo psicológico. A elaboração de um método efetivo para compreender a essência fundamental do espirito em sua intencionalidade, e, a partir dai, construir uma teoria analitica do espirito que se desenvolve de modo coerente ao infinito, conduziu a fenomenologia transcendental. Esta supera o objetivismo naturalista e todo objetivismo em geral da única maneira possível: o sujeito filosofante parte do seu eu”. HUSSERL, p. 86. 

Compreende-se assim que a fenomenologia supera a psicologia naturalista por voltar-se às ciências do espírito, isso é, da existência como intencionalidade de um sujeito.

sábado, 15 de junho de 2024

gilberto freyre é um antropólogo naturalista, mas...

me enveredo em uma longa análise da obra de gilberto freyre a partir das ciências naturais-biológicas para chegar no ponto e dizer ao leitor que, no entanto, a obra de gilberto freyre não é uma ciência-natural-biológica. tanto gasto de tinta pareceria ocioso se fosse para confundir o modelo epistêmico de sua sociologia com o das ciências positivas. se me demoro construindo esse tal modelo, se perco tempo demonstrando suas afinidades com os grandes livros de gilberto freye é, em primeiro lugar, por "estilo argumentativo", viciado sempre nos modos adversativos, em que depois da preposição se introduz um "mas", um "porém", um "todavia", que introduz ao sentido previamente e às vezes longamente construído um desvio. 

sim, gilberto freyre possuí séries de semelhanças com as ciências da natureza, sem que, no entanto, deva ser confundido com. 

nascido na alvorada do século XX, a formação de gilberto freyre manteve laços estreitos com a antropologia modelada enquanto um ramo dos estudos evolutivos e de hereditariedade, sem, todavia, deixar de se debruçar naquele domínio que que dilthey iria tratar como o da lebenphilosophie, e que pode ser relacionado com aquilo que husserl trata por lebenswelt por se tratarem de um conhecimento incapaz de ser formulado pelas ciências positivas, e nos quais, historicamente, se desenvolveram aquilo que convém chamar de "ciências humanas" ou "humanidades". 

que as humanidades venham a ser constituídas enquanto uma "filosofia da vida", como uma ciência do "mundo da vida", demonstra a ambiguidade e imprecisão circundante a todo conceito de vida no século XIX e XX: por um lado, a vida se converte em biologia, em estudos experimentais realizados em laboratórios, por profissionais zelosos pelos métodos de mensuração e pela aplicação de modelos da física e química ao estudo dos seres vivos; por outro, uma compreensão da vida e natureza legada - provavelmente  - do romantismo, que se caracteriza pelo turbilhão da experiência incapaz de ser sintetizado fielmente pela técnica científica. 

gilberto freyre, embora fosse ou almejasse, durante as primeiras décadas de trabalho, ser um cientista, não deixou de compreender a vida enquanto esse fenômeno romântico, excessivo, cuja formulação mais clara em sua obra está relacionada com sua analogia entre o sociólogo e o romancista, a pretensão de representar a vida do curso de seu movimento, de expressar pela extensão da representação aquilo que a métrica e unidade conceitual eram incapazes de aludir. 

não preciso dizer que essa compreensão de gilberto freyre rapidamente se tornaria anacrônica: a primeira edição de casa-grande & senzala nos estados unidos foi recebida com críticas ásperas, direcionadas principalmente à "metodologia mística" - termo empregado pelo próprio gilberto freyre, e que remetia a dimensão auto-biográfica, proustiana, meditativa, com que escreveu o livro -, que ao crítico parecia inadequado ao trabalho verdadeiramente científico da antropologia. e o resto, como sabemos, é história, já que em nosso próprio país se desenvolveria, a partir de são paulo, quando profissionalizada nossa universidade, uma crítica análoga, e ainda mais vasta, contra a "anti-cienticifidade" de gilberto freyre. 

a questão se torna, então, não somente o que seria essa "libenphilosophie" de gilberto freyre, ou no que consistiria a porção de sua obra ainda indefinida, em espera, indicada apenas como um negativo - um "não é" - das ciências positivas, mas também como essas próprias ciências positivas em que gilberto freyre construiu seu modelo científico, ao longo do século XXX, se desatualizaram, se tornaram literalmente ultrapassadas, ao ponto de que, nos anos 70, quando gilberto freyre trata de "como e porque é e não é sociólogo", fará somente acenos discretos a elas, preferindo investir na outra direção de sua obra, caracterizada pelo intuicionismo, a relação entre sociologia, arte e vida, a influência dos sociólogos alemães a partir do seu modelo empático-compreensivo, a herança mística e  de reflexão auto-biográfica dos ibéricos, os relatos de viajantes, etc, tentando assim construir um modelo contra a ciência em voga.

no término da leitura de "as palavras e as coisas"

com as últimas notas, que crescem em retumbante operística, ainda a ressoar em meus ouvidos, termino enfim "as palavras as coisas". da densa história das ciências humanas, foucault conclui por sua brevidade: nascido velho, o homem encontrará desfecho tão logo aconteça o prometido desfecho. 

se por um lado sua obra é de análise meticulosa, de scholar, pesquisador profissional, por outro ela segue o caminho indicado por sua estrela-guia, nietzsche: confecção de saber que antes de tudo é mapa e bússola, forma de orientação no tempo e espaço do pensamento. estamos no limiar da humanidade, conclui foucault no apêndice profético feito à meticulosa história que escreveu: formado o homem na dispersão da linguagem, quando, no século XX, os indícios indicam seu re-congresso - a literatura, a linguística, o estruturalismo, a psicanálise - por que não concluir então por um desaparecimento desse mesmo homem cujo saber está delimitado por sua natureza finita, no reduplicar empírico-transcendental que lhe põe e lhe pensa no mundo o mundo (e vice-versa), que enxerga no seu pensamento a extensão do impensável a ser coberto pela razão, busca por uma origem ausente e prometida? desculpem se não falo em termos claros, somente tento formular a questão obscura do humano nas palavras que, pelo progresso lento, reiterativo e metódico do livro, foucault faz surgir de maneira clara em nosso espírito. é um livro, portanto, de paciência, cujo saber nasce por um progresso análogo a de uma viagem: não por expedientes conceituais que esclarecem de imediato um ao outro, em economia precisa de significação, mas em experiência em que a paisagem se desenha somente na extensão, nunca na brevidade do instante. por isso a lembrança tão francesa do ensaio cartesiano, que embora não recuse a ordem e o rigor da composição, seus termos estão em seu lugar em relação a uma extensão, uma escritura que ganha sentido na longa duração da espera, da leitura, da meditação, da paciência. um livro, portanto, para se demorar.

sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...