quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A SUTIL ARTE DE CUIDAR DE SEUS ESCRAVOS (Sêneca, carta 47)

Quais são os requisitos para poder ensinar corretamente sobre a administração de uma grande fortuna? Ora, se queremos nos tornar mais sábios, é melhor começarmos por aprendermos quais são as fontes da sapiência e quais são as fontes da estupidez. É melhor nos precavermos para não sermos enganados por farsantes e amadoras, que para roubar nosso patrimônio, fingem ter um saber que no entanto nunca deram provas de ter. 

Para se tornar mestre nas artes econômicas, tal qual acontece em toda arte, é então muito útil saber discriminar entre os farsantes, e gastar nosso curto tempo somente com as lições daqueles que tiveram sua sabedoria testada. A experiência de um sábio é uma questão importante para avaliarmos o valor de seus conhecimentos, e pode ser muito útil para prevenir a nós, reles estudantes, a não cairmos nesses golpes conceituais fundado exclusivamente sobre as fantasias de alguém.

Ora, se assim é com a ciência das riquezas, pensamos sobretudo enquanto gestão do tesouro, ou seja, do acúmulo de dinheiro ou mercadorias, e facilmente esquecemos de como é a força de trabalho que efetivamente cria tais riquezas. Assim, além desse saber do tesouro, a que tantos economistas e comerciantes se dedicam, é necessário aqueles jovens, especialmente aqueles destinados a se tornar líderes e empreendedores de sucesso, que tomem também conselhos de como melhor administrar seu capital humano, já que é deles que provém toda a totalidade de seus ganhos.

Não podemos, contudo, deixar qualquer sofista discursar sobre a arte patronal da administração de seus serviçais. Muito melhor emprego de nosso tempo encontraremos a ler a sabedoria provada pela experiência e pelos costumes de um Sêneca, ao invés de dar ouvido às técnicas que ainda carecem de prova empírica. As teorias precisam ser testadas pela prática; e que exemplo mais feliz de prática administrativa que a do afortunado Sêneca, cuja propriedade era reconhecidamente próspera? E como todo homem de fortunas romano, a riqueza de seu patrimônio não se acumulava somente em metais, mas também em carne viva. Como todo patriarca descendente das famílias da nobreza, Sêneca adquiriu um enorme contingente de riquezas, e sobretudo os vários escravos domésticos, cada um deles educados para uma função específica. Nesse tempo que conviveu tão próximo com essa gente baixa, pensou e refletiu tanto que escreveu um dos mais sábios tratados sobre a administração da propriedade escrava da história, a célebre Carta nº 47 que redigiu ao jovem e inexperiente Lucílio.

Desejava instruir seu amigo na arte patriarcal da administração econômica. Ali, ensina que é melhor cuidar do patrimônio escravo com parcimônia, e evitar os excessos sádicos que muitos patrões cometem contra sua criadagem. Isso, para a sociedade escravocrata da época, acostumada a tratar os escravos como burros de carga, deveria certamente soar como um risco aos costumes e à toda vida econômica da nação romana. Que Sêneca recomendava tratar bem a seus escravos é porque pensou contra o costume, e deu com uma melhor técnica administrativa dos cativos. Bem, dizem que o saber se aperfeiçoa pela experiência. Aprendemos a arte de amar somente ao custo de corações partidos. Quantos escravos teve de Sêneca machucar antes de perceber que esses métodos violentos eram antiquados, e que era muito mais sábio deixar que o escravo - especialmente os melhores e mais naturalmente dotados - recebessem algumas regalias, alguns confortos, alguns presentes e favores, como comer na mesa e até mesmo o direito de falar com o patrão?

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Encerro aqui minhas reflexões porque já é tarde e tenho sono depois de um longo dia escrevendo sobre o nascimento da vida e a morte de deus. Meu intuito com essa breve notícia foi somente dar ao leitor alguma oportunidade de travar contato com isso que afinal foi o estoicismo, em todas as suas as partes, e não apenas aquelas que os youtubers e influencers de filosofia procuram mostrar. Por isso, me dei ao trabalho de escrever esse breve ensaio sobre a tão pouco falada arte que os estoicos inventaram com o intuito de instruir os futuros patriarcas e prepará-los adequadamente às suas funções de mando e administração de patrimônio.

Especialmente, importa esclarecer qual seria a verdadeira finalidade do estoicismo. Essa transparece quando tomamos os tratados morais de Sêneca não somente na lógica do autocuidado com que geralmente se alardeia, mas como uma verdadeira arte do cuidado patronal. Nada disso é por acaso, é claro: quem melhor do que um senhor de escravos para escrever como os senhores devem administrar sua economia (ekos-nomia)?

Que essa "filosofia" da gestão dos escravos hoje entusiasme aos patrões, é muito compreensível. Mais estranho, no entanto, é porque produza tanto fascínio em gente que vai passar a vida ganhando mal e sofrendo da grande instabilidade econômica e existencial de nossa época.


PS: Sêneca apenas está explicando para a classe dominante da melhor maneira de tirar proveito do corpo de seus escravos domésticos. Ou ainda: Como ter escravos melhores 101.

Ele é um grande ideólogo da arte econômica (a palavra oikonomía se referia à arte de administração patrimonial, ou seja, do tesouro e dos escravos). era um saber destinado aos futuros patriarcas, e visava instruí-los a tratar um escravo da mesma maneira que parecia correto um governante superior e virtuoso tratar mesmo ao povo mais vil. Não que fosse bondade: era somente porque era do interesse da casa-grande. Perto dos senhores, é importante escravos lindos, bem-educados e cheirosos. Fabrica-se uma pequena aristocracia da servidão para melhor servir os patrões. E também para embelezar a casa, é claro. O resto, a massa de imundos e doentes, feio e mutilado pela exploração, fica bem longe, ou no eito, ou recolhido em sua senzala.

Não se deixe enganar pelas palavras belas dos patrões e de seus lacaios alienados que desejam envenenar-lhe com imagens grandiosas e heróicas de quem na verdade era uma grande canalha. Sêneca era um escravista e escrevia para ensinar escravistas. Esse era o fim de suas reflexões sobre a moral. Era esse o fim pedagógico último de sua filosofia estoica: formar filhos do patriarcado dirigente, tal qual aquele Lucílio para quem escrevia.

A arte econômica de Sêneca tem o seguinte fim: Perpetuar uma estirpe no poder. Manter os direitos de propriedade dos escravos e terras. Não tomem Sêneca como um filósofo liberal, que acreditava na igualdade humana. Escreve, esse ideólogo da escravidão o seguinte, com o intuito de contradizer qualquer um que viesse a entender suas lições como um gênero de abolicionismo; trata-se, na verdade, apenas de uma outra pedagogia da dominação: "eu proponho que escravos respeitem seus mestres em vez de temê-los", escreveu Sêneca no parágrafo 19 da Carta 47.

Se examinamos o documento, podemos verificar que o autor esclarecia sua proposta antes aprimorar a arte da escravidão, indicando que a educação da mão-de-obra escrava é importante sobretudo para a vida doméstica ordenada e bela. 

Era maneira de se antecipar a quem sustentasse, contra Sêneca, de que ele estava de alguma forma defendendo a" libertação dos escravos em geral e roubando senhores de sua propriedade", simplesmente porque propõe "que escravos respeitem seus mestres em vez de temê-los". (parágrafo 18)

Claro, é muito conveniente aos donos de patrimônio que estejam sendo disseminados esse gênero que naturaliza a escravidão como ordem natural. Existe muita gente ganhando dinheiro para disseminar esse saber da exploração da mão de obra. Mas não se deixem enganar pelo discurso adocicado do amor ao subalterno: ele é pura hipocrisia. No fim do dia, sabemos quem vai dormir na senzala, passando frio e fome, e quem quem vai dormir na casa-grande, cercado de ouro e luxo.

 Muitas filosofias constituem antes em um sistema de mentiras do que de verdades. Os ideólogos podem repetir mil vezes que Sêneca dava lições de fraternidade e amor universal; qualquer um que lê seus escritos, no entanto, sabe bem o que ele verdadeiramente fazia e pensava; ora, não é Sêneca justamente aquele a quem Barthes caracterizou pela hipocrisia dos ensinamentos? 

"O amor das riquezas, ao longo da história da Filosofia, se fez um tópos pejorativo, mas sempre à custa de uma hipocrisia constante: Sêneca, o homem dos oitenta milhões de sestércios, declarava ser necessário desfazer-se de imediato das riquezas".

(BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola, p. 96, acrescido de pequenas modificações) .

Escondida nessas lições de amor e fraternidade que hoje são verdadeiros sucessos editorial entre as editoras mais duvidosas, se enfia essa ideologia criada para a formação dos jovens senhores. O estoicismo é pouco mais do que isso: uma arte da escravidão suave.

ps 2: 

1. primeiro, evidente que existe mobilidade social em Roma. toda sociedade, mesmo as mais estamentárias, possuem uma flexibilidade na divisão do trabalho. escrevo isso pra me referir ao epiteto: que tenha ele se tornado filósofo é menos preciso do que a verdade: ele se tornou professor. isso era uma função exercida por escravos e ex-escravos. os romanos verdadeiramente livres se educavam para trabalhar com a coisa pública, e o ensino era considerado uma arte privada. repare que os professores de sêneca são todos estrangeiros: Átilo e Sótio eram estrangeiros vindo de Alexandria, e não cidadão romano. Ensinar filosofia era coisa de gente inferior, os verdadeiros aristocráticas aprendiam ela para depois ir às coisas públicas e sérias.

2. Assim Sêneca começa sua carta: "Fico feliz em saber, através daqueles que vêm de você, que vive em termos amigáveis com seus escravos. Isto convém a um homem sensato e bem-educado como você". Um homem bem-educado sabe como convém tratar a criadagem para conseguir ter sua fidelidade" Sêneca diz ficar feliz quando vê alguém tratando bem aos seus escravos, porque essa é a melhor maneira de um homem culto e erudito educar os seus servos. SÊNECA NUNCA QUESTIONA A HIERARQUIA ENTRE HOMENS SUPERIORES E INFERIORES. “Viva com seu inferior como você quer que seu superior viva com você", ele recomenda, e não viva com todos os homens como se fossem seus iguais. Sêneca defendia a escravidão.

3. Tudo que Sêneca escreve se refere à educação de escravos domésticos, e não aqueles que realizavam trabalhos pesados em oficinas e sobretudo eitos agrícolas. Reparem que, quando passa a denunciar o mal trato de escravos (emprega até mesmo imagens grotescas sobre vômito e secreções corporais), ele se refere exclusivamente dos ESCRAVOS DOMÉSTICOS, treinados para servir a família no lar, e que por isso, precisavam conviver com intimidade e proximidade. Sêneca ensina essa convivência aos senhores, para que não estraguem seus escravos com seus abusos.

Lembrará dos bons tempos da escravidão, quando escravo e senhor não eram inimigos, e até mesmo conversavam; diz Sêneca que essa educação criava escravos verdadeiramente fiéis, e que por isso deveria ser estimulada. O bom escravo é entendido por ele como um cão fiel bem adestrado pelo dono:

"Os escravos dos dias passados, que tinham permissão para conversar não só na presença de seu amo, mas na verdade com ele, cujas bocas não estavam caladas, estavam prontos a expor seu pescoço a seu senhor, a trazer à própria cabeça qualquer perigo que o ameaçasse; eles falavam na festa, mas ficavam em silêncio sob tortura". (parágrafo 4)

SÊNECA ESCREVEU UMA ARTE DA ESCRAVIDÃO, DE COMO ESCRAVIZAR MELHOR. COMO TER ESCRAVOS MAIS FIÉIS E SOLÍCITOS. É UM ENSINAMENTO AOS JOVENS HERDEIROS QUE TERÃO QUE ADMINISTRAR AS ECONOMIAS DOMÉSTICAS DOS PAPAIS PATRIARCAS.

4: sobre a palavra humanitas, que você se referiu, mas que fiz questão de verificar no original em latim para ter ser certeva que ela não é empregada. Na verdade, mais uma vez você demonstra não conhecer nada de história romana. Vou lhe explicar de graça mais uma vez:

Em Roma, humanitas não era empregada no sentido de uma humanidade universal e isonômica, como se faz na modernidade ao falar, por exemplo, em direitos humanos. O sentido que a palavra tinha em Roma o era justamente o oposto; se referia não à humanidade como dotada de um direito comum e universal, mas sim a um processo pedagógico e educativo restrito à nobreza, em sentido parecido com que se referiam a paideia em Atenas.

Ou seja, a humanitas descrevia as virtudes não de todo o gênero humano, mas daqueles homens livres , donos de escravos e propriedades. Esse uso de humanitas remete a um outro conceito romano, que na modernidade também teve seu sentido desviado: quando em Roma se falava em artes liberais, se referia às artes próprias dos homens livres; trata-se de um conjunto de prescrições doutrinárias e técnicas que todo cidadão romano elevado deveria ter, como conhecimentos em retórica, dialética e eloquência, saberes administrativo relativos à economia da casa, conhecimento profundo na legislação e nas práticas do estado, etc. São VIRTUDES QUE DEVEM TER OS ADMINISTRADORES: a arte da fala para o tribunal e parlamento, a ciência da economia da casa e do estado, etc.

Portanto, humanitas sequer tem a ver com universalidade humana, no sentido isonômico moderno; e ao contrário, é um conceito fundado pela distinção entre homens educados para serem senhores e homens educados para serem escravos, entre quem tem a paideia aristocrática e quem se educa com as ars técnicas e operárias (desde o trabalho doméstico, até a produção agrícula e o exercício de artes menores como a medicina, a carpintaria, etc):

"Outro escravo fatia as preciosas aves de caça; com traços seguros e mão hábil ele corta fatias selecionadas ao longo do peito ou da coxa. Companheiro infeliz, que vive apenas com o propósito de cortar perus corretamente – a menos que, de fato, outro homem seja ainda mais infeliz do que ele, que ensina esta arte por prazer, ao invés de quem aprende isso por dever" (parágrafo 6)

O escravo se destina a aprender essas artes manuais, as artes dos servos, e não as artes do homem livre. isso se chama divisão do trabalho. A pedagogia que Sêneca propõe ao escravo é uma pedagogia da servidão: aprender a ter prazer e amor ao servir ao mestre. É uma fábrica de cordeirinhos. É educa-los para a servidão.

Se você verificar o texto em latim, verá que se escreve o seguinte:

"Alius pretiosas aves scindit; per pectus et clunes certis ductibus circumferens eruditam manum frusta excutit, infelix, qui huic uni rei vivit, ut altilia decenter secet, nisi quod miserior est qui hoc voluptatis causā docet quam qui necessitatis discit. 

ou, em português:

"Outro escravo fatia as preciosas aves de caça; com traços seguros e mão hábil ele corta fatias selecionadas ao longo do peito ou da coxa. Companheiro infeliz, que vive apenas com o propósito de cortar perus corretamente – a menos que, de fato, outro homem seja ainda mais infeliz do que ele, que ensina esta arte por prazer, ao invés de quem aprende isso por dever."

Destaquei em itálico a palavra docet, que alude ao verbo docere que costuma ser traduzido como ensinar. A tradução, no entanto, não esclarece uma coisa importante: havia uma arte docente adequada para formar aos servos, os estratos mais inferiores da plebe, e uma outra para formar os grandes homens Um cidadão romano superior era treinado tanto para lidar com seus iguais tanto com seus subalternos; ao falar com este, procurava docere, delectare, movere: ensinar e deleitar, como o fim de direcioná-los a um fim favorável. Sim, os romanos aprendiam a manipular seus escravos, e Sêneca era um dos seus inventores dessa arte da adulação. Como escreveu um historiador:

"No Iluminismo, porém, vige o Antigo Regime. Isto é, a classe comerciante não ascendeu ainda plenamente ao poder. Numa monarquia absoluta, toda reflexão acerca do poder gira em torno do governante, o que torna interessante observar portanto os discursos morais endereçados aos futuros monarcas quando de sua educação. Esse trabalho fica sempre a cargo de um membro do clero, o “preceptor”, que se valerá do melhor da tradição moral cristã para formar o futuro monarca. Trata-se de uma tradição que remonta, porém, a Roma antes da cristandade. Os “espelhos do príncipe”, gênero cujo pioneiro é, salvo engano, Sêneca escrevendo ao jovem Nero (que augúrio), se tornam o modelo mesmo de instrução moral para quem há de ocupar o poder de um reino."

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(SÊNECA, Carta 47https://www.estoico.com.br/934/carta-47-sobre-mestre-e-escravo/)

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