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quarta-feira, 22 de maio de 2024

LAMARCK e DARWIN

Para Lamarck, as modificações morfológicas cuja sucessão caracteriza a história natural são respostas ativas do organismo perante as pressões do meio. Para Darwin, o meio somente selecionará as modificações aleatoriamente produzidas: não existe, no darwinismo bruto, o movimento da intenção característico do uso e desuso de um órgão, já que as características adquiridas pelo organismo ao longo de sua vida não são transferidas para a prole. Para Darwin, o meio somente age no processo da evolução de forma negativa: pela alocação de obstáculos e recursos que afetam a competição inter e extra-espécie, fará a seleção, entre os caracteres surgidos aleatoriamente, espontaneamente, daqueles que estão aptos a sobreviverem. A natureza, por meio desse mecanismo de seleção que prejudica as formas de vida inferiores, selecionará somente as modificações dos mais aptos. Dessa competição sucessiva, resultará o processo de evolução. A seleção natural darwinista, assim, minimiza a ação ou intenção do organismo como parte da evolução, já que as modificações que imprimem aos seus caracteres biológicos não seriam transferidos às proles: a evolução é um fenômeno contingente. Lamarck, ao contrário, acredita em uma concepção de evolução em que a vida, por sua própria vontade, impõe contra a natureza seu destino evolutivo.

É oblíquo precisar a opinião de Darwin sobre a transmissão dos caracteres adquiridos, já que, não obstante não descarte a sua possibilidade, sugere que sua preponderância na evolução seria mínima quando comparada com a seleção feita pela própria natureza. Como ele explica: “Se as variações corretas ocorressem, e nenhuma outra, a seleção natural seria supérflua”. Ou seja, se a prole herdasse sempre os caracteres desenvolvidos a partir do estímulo do ambiente, não faria sentido falar em seleção natural, já que não existiria o que selecionar. A seleção da natureza, afinal, precisa partir da diferenciação entre melhores e piores, entre mais aptos e menos aptos. Deveria existir alguma forma de se limitar a transferência progressiva dos caracteres desenvolvidos pelo organismo em sua interação com o meio ambiente. Para Darwin, “a ocorrência das variações segue leis naturais que não estão vinculadas a nenhuma finalidade”: é um processo, como já foi escrito, contingente, que dispensa a participação ativa do organismo. A seleção natural somente existe quando as gerações se descontinuam: quando se estabelece perdas e ganhos entre elas.

CORREÇÃO INFINITA

 A teoria naturalista de Lamarck é precisamente a da abstração da natureza empírica em uma série abstrata constituída por meio da linguagem. Isso nos leva a uma série de problemas.

Por um lado, perde-se, em relação ao conhecimento feito pelo contato imediato com os seres, uma irrecuperável porção de verossimilhança, já que a língua elaborada, por melhor que seja, jamais será perfeitamente igual às ricas formas da natureza. Essa perda infeliz é contudo necessária, porque somente nela funda-se o conhecimento, já que este, para Lamarck, consiste na ordenação das propriedades infinitas da natureza. 

O infinito é in-ordenável: uma reta infinita pode ser cortada em infinitas porções. Somente pelo sacrifício dessa totalidade inapreensível será possível o fundamento de uma ordem verdadeiramente conhecível. Pela língua o homem ganha em comunicabilidade daquilo que, pela e na natureza mesma, infinita, é incomunicável. É necessário esse empobrecimento por meio da língua para que o mundo se torne matéria de conhecimento entre os homens.

Resta oculto, no sistema de nomes no qual se funda a história natural de Lamarck, um modelo matemático de conhecimento, que vai desde a extensão infinita da natureza até aterrissar no finito perfeito do ponto. A língua, intermediário entre a natureza e o número, por sua natureza e finalidade, infelizmente oscila entre a riqueza do real e a precisão do matemático. Primo pobre de ambos, é forma precária, que não tem nem a potência da comunicação perfeita do número, nem a realidade em si mesma do mundo. 

Se a língua ainda é instrumento necessário para o conhecimento, é porque o conhecimento é sobretudo questão de entendimento. Uma questão de comunicação; ou ainda, como colocará Foucault em As palavras e as coisas, de distribuição de analogias entre as partes da natureza, cujo modelo mais claro - como já se disse, mas não fará mal enfatizar - é a igualdade matemática. A gramática geral da época clássica, por meio do núcleo verbal responsável pela ligação entre o sujeito e predicado, buscaria estabelecer uma operação de definição do indefinido por meio da determinação precisa do nome, como se este fosse, para o gramático, o produto verbal daquilo que, para o matemático, consiste na resposta de uma equação (x = y). 

O nome, para o sistema de Lamarck, deve ser expressão tão exata quanto possível for. A sua filosofia zoológica se refere a um saber teórico capaz de compreender a extensão infinita do real, para assim melhor abstrair um sistema de nomes, cuja ordem taxionômica represente aquela infinidade indizível com maior verossimilhança.

Só que, por suas próprias limitações, por habitar o limbo entre o infinito e o finito, o nome estará sempre fadado a derrapar: se, em comparação com a natureza em si mesma, o nome sempre deixará um resto, ou ainda, sempre terá um algo de inverossímil, quando em comparação com a matemática, o nome igualmente falhará, pois é consideravelmente impreciso, incapaz de fundar analogias tão perfeitas e exatas quanto as expressas pela série abstrata da aritmética. 

A língua será fadada a ser ou deformação ou desmedida; sempre, incontestavelmente, uma entidade negativa: nem vida nem número. Se o objetivo da língua é o entendimento, a fundação de um sistema de diferenças passíveis de comunicação exata do mundo, sua contraparte, portanto, será sempre a correção infinita. Prima pobre da natureza e da matemática, de uma retira o poder de analogia, da outra, a extensão impercorrível. 

Todo sistema de conhecimento baseado na precisão da linguagem será, invariavelmente, um sistema de correções. Por conta disso que o naturalismo de Lamarck, sempre flutuante entre a artificialidade da classificação e o infinito do real, somente poderá ganhar solução pelo termo das academias de ciência, cujo objetivo será, por meio de sua soberania, controlar os desacordos inevitáveis da linguagem. Isso quer dizer que a ciência, enquanto fundamentado no nome como meio de ordenação das partes do real, está fadada a um problema gramatical que, na verdade, é de natureza política: o perpétuo inconveniente desacordo dos diferentes sistemas de línguas, os sucessivos reparos e suplementos da linguagem de um sobre o outro. Como o próprio saber jamais consegue determinar por si mesmo a ensejada língua perfeita, será necessário extinguir as diferenças indesejadas por meio da força, para assim, por meio de uma língua despótica, edificar essa utopia do conhecimento.



domingo, 11 de junho de 2023

naturalismo e antropologia: lévi-strauss como paradigma da separarão

  Em um mesmo parágrafo fizemos uso do termo naturalismo que sugere dois sentidos distintos para essa única palavra. O primeiro naturalismo por nós escrito seria aquele associado à literatura, à ficção, à língua, à forma, etc. A segunda aparição da palavra, ocasião para que abrisse essa nota de rodapé, se refere ao que hoje se chamaria de biologia; é um naturalismo científico, responsável pelo estudo da anatomia, fisiologia, etc, de vegetais e animais. Há também um terceiro naturalismo; terceiro porque sua existência é dupla, e seu estatuto discursivo elástico. Me refiro ao naturalismo dos viajantes, aos diários, relatos de viagens e demais gêneros por eles produzidos. Essa separação entre literário e científico, no entanto, embora pertinente em relação à organização, controle e estabilização dos enunciados, se dentro de uma perspectiva da escritura, da disseminação da língua, percebemos séries de vazamentos e contaminações entre um e outro. Os naturalistas e seus estudos fisiológicos e anatômicos de plantas e animais, colocados a partir de uma história natural e/ou da da evolução, faz com que o estudo seja somente um ramo específico dessa ancestral genealogia em que todos os seres vivos são desdobramento de uma mesma força ou lei; desde os primordiais moneras, até o fantástico desabrochar da inteligência humana, atuaria o mesmo princípio, cujo protótipo mais disseminado foi a seleção natural de Charles Darwin. A história natural, portanto, é o desdobramento de leis da natureza; da interação entre organismo e meio; de sua concorrência e associação com os demais; e se sobrevivem aqueles mais aptos, e se são herdadas as características mais vantajosas, é portanto destino provado cientificamente que a natureza impõe aos seres vivos a adaptação e/ou o aperfeiçoamento e/ou progresso. A antropologia do século XIX surge como um ramo dessa história natural cujo intuito seria buscar, a partir das coordenadas oferecidas por diversos a prioris extraídos das leis naturais, as particulares do desenvolvimento humano no tempo, especialmente a partir da perspectiva de que este desenvolvimento deveria se expressar na forma de aperfeiçoamento das faculdades humanas - a razão, a política e a beleza, para repetirmos a tríada kantiana, são dimensões em que separa-se os humanos dos demais animais e seres vivos. Muita dessa antropologia, em contraste com o que se caracterizou enquanto etnografias, não por acaso era de caráter especulativo; seu objeto de estudo, afinal, não eram grupos ou comunidades humanas específicas, mas acontecimentos enterrados e apagados pelos milhares anos de história: Como do macaco se desenvolveu o homem? Qual seria afinal a origem da razão? Como passaram de bandos desarticulados e sem leis para sociedades dotadas de moralidade e organizada por preceitos públicos? Em que circunstância passou o ser humano a falar, comunicar e representar o mundo e os acontecimentos nessa forma tão arrojada que a língua permite? Percebam que essas perguntas não se tratam exatamente de encontrar princípios explicativos ou teóricos, porque esses já estavam dados; embora hajam divergências aqui e acolá, o princípio de tudo repousa naquilo que é a lei da natureza: a escassez, a superação do mais apto e o falecimento dos fracos, a herança das aptidões e gradual desaparecimento dos defeitos, etc. O que se tratava para estes antropólogos não era desvendar as leis da natureza; essa afinal já estava dada. O que a antropologia especulativa fazia era antes uma tentativa de estender as leis da evolução e os estudos naturalistas ao seu limite, até o ponto em que sairíamos das leis naturais e teríamos que passar a pensar em leis humanas; ainda que essas leis humanas partissem da analogia entre a evolução humana e a evolução natural, ao colocarem essa linha divisória entre o macaco e o homem - razão, ética, língua - de maneira críptica se abria a brecha por onde os antropólogos do século seguinte fundaram um campo totalmente autônomo, separando a antropologia dos métodos e teorias naturalistas por meio da aproximação de outros saberes. Embora saibamos da artificialidade dos paradigmas e origens, é difícil não mencionar o livro Estruturas elementares do parentesco, publicado em 1949 sob o nome de Claude Lévi-Strauss, não somente por propor um gênero de antropologia que se disseminou não só por dentro da disciplina antropológica, mas para outros campos discursivos. Talvez a antropologia cultural de Franz Boas pudesse ser um mito de origem mais adequado para tratar da cisão entre os estudos antropológicos e as leis naturais, é verdade, já que estabelece a primazia da cultura sobre o meio e a raça. Sem negar a importância de Boas para os estudos antropológicos, mas parte considerável do poder cifrado em Estruturas elementares do parentesco foi ter estabelecido a distinção entre natureza e cultura com a mesma força sistemática que caracterizava as teorias e filosofias da natureza. Quando Lévi-Strauss demarca a fronteira entre natureza e cultura por meio da capacidade humana de controlar, operacionalizar, distorcer, artificializar, organizar, e enfim, dar sentido diverso para aquilo que é o fim último da lei da natureza, a reprodução, transforma o que era fundamento e intuito da história natural em instrumento para a realização de coisas alheias ao mundo animal; muito especialmente, no Estruturas elementares do parentesco, a reprodução, o controle socialmente disposto sobre ela, faz com que a natureza, a reprodução da espécie, fosse, primeiro, um instrumento de política, que desenha redes de alianças e inimigos, mas segundo, e esse é o grande salto proposto, a reprodução da espécie, por meio da troca matrimonial, passa a atender não à lei da seleção natural, à reprodução dos caracteres mais fortes, mas sim à reprodução da sociedade, reprodução de suas estruturas. Não se herda ou não se interessa mais com a herança genética, com as aptidões passadas de pai para filho; Lévi-Strauss leva as ciências sociais para pensar na reprodução e nascimento como herança de um nomos, uma comunidade e modo de viver anterior ao nascimento da criança, e tão logo esteja nascida, tão logo será posta para participar de tal nomos, de modo tão intenso e alienante que a sociedade passa a adquirir as feições de natureza; a cultura é naturalizada. Somente à guisa de conclusão, ainda sobre Franz Boas, importante destacar que muito embora tivesse proposto a cultura como esse espaço teórico capaz de separar a antropologia do naturalismo, sua postura diante dos conceitos que canalizavam a filosofia e história natural dentro da antropologia, com a raça, o meio, é quase sempre o de ceticismo: embora preconize o estudo da cultura como método mais adequado para se conhecer uma sociedade, e que rejeite a hipótese evolucionista da superioridade entre povos e/ou raças, o ponto de Boas não passa por abolir a importância dos estudos biológicos, a genética e fisionomia, como saberes da disciplina antropológica; Boas, antes de mais nada, pretende declarar cientificamente infundadas as teorias de que a psicologia de uma pessoa possa ser explicada por sua origem genética, preferindo pensar na questão das patologias sociais como oriundas de causas estritamente sociais. 


o principal modelo de Lévi-Strauss, pelo que parece 


se destaca por definir de forma positiva a separação e distinção 

transpor esse arsenal linguístico e conceitual para um gênero, se não de historiografia especulativa, que dema o desenvolvimento da raça e/ou culturas e/ou civilizações, surge como símile da história natura uma história progressiva e violenta cujo modelo mais proeminente foi a seleção natural de Darwin


sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...