quando nos cagamos em público pela primeira vez aprendemos que o cocô é motivo para vergonha. somos reprimidos, às vezes gentilmente, outras de formas mais grosseiras, por gritos e insultos. tão logo ganhamos consciência de nosso cocô, aprendemos que ele não é coisa-pública. é o cocô que, antes do sexo, nos introduz na existência do segredo. e é o banheiro que, antes da alcova, se torna o primeiro cofre para o depósito desse segredo tão vil. não devemos nos surpreender, então, a relação profunda, sucessiva, que se cria entre o sexo e o banheiro. a criança, tão logo descubra que o sexo está proibido pelo público, irá realizá-lo consigo mesmo, às escondidas, no banheiro. o banheiro é o primeiro e mais persistente templo do amor de muitas crianças que, quando depois de casadas, redescobrem no chuveiro e no vaso esse espaço de gozo, tão sujo e secreto quanto o cocô. são duas coisas que todos sabemos que fazemos, mas que precisam ser feito às escondidas: o sexo e o cocô. e o banheiro une as duas: o único espaço inquestionável de solidão.
quarta-feira, 10 de julho de 2024
sábado, 15 de junho de 2024
um materialismo libidinal
pouco tempo vi cá no site discussões sobre o conceito de materialismo libidinal, que me pareceu indefinido, enquanto em gilberto freyre - sem que receba essa nome - surge de forma tão clara.
quando se fala no ímpeto de que as "caboclas recém-civilizadas" se penteavam "como as damas portuguesas", a figura termina de ser composta por seu par antitético, as "negras e mesmo mulatas de cabelo mais encarapinhado", que não podiam pentear cocós tais quais as senhoras elegantes. diz gilberto freyre que, no lugar dos penteados, disfarçavam "essa incapacidade" - essa vergonha - "usando vistosos turbantes que se tornaram insígnias ao mesmo tempo de raça e de classe servis ou ancilares". (p. 362)
relativizado os valores assumidos pelos penteados e turbantes ao longo da história - o próprio gilberto, creio que depois de suas viagens, irá rastrear o uso do turbante como forma ancestral, oriunda da áfrica e transmitida para o brasil por meio dos escravizados - o que importa demonstrar é a cadeia articulada pela série "negra de turbante - cabocla recém-civilizada - dama portuguesa": em sua estrutura de classe e raça não se define somente o sentido do acúmulo econômico (na direção da casa-grande), mas também esse indescritível acúmulo libidinal, em que o desejo se funda, desde suas formas mais baixas - a vergonha, a inveja - até as elevadas - o orgulho, o amor-próprio -. a escrava, envergonhada de si, dos cabelos, esconde-os com turbantes, que vem a ser insígnia de inferioridade social; a cabocla, recém-civilizada, ascendente, copia o penteado da casa-grande, importado dos cabelos europeus. essa lógica da inveja, que no sistema libidinal global tradicionalmente, pelo menos a partir do século XIX, terminará na frança, no típico complexo parisiense que assola as classes aristocráticas brasileiras, constitui de maneira clara o que pode ser chamada de economia libidinal: uma repartição do desejo dentro da repartição de classes/raças. marcado pelo "desejo de ser outrem", ou ainda, de imitação, essa espécie da ontologia da falta fundaria subjetividades negativamente definidas, ou ainda, subjetividades definidas enquanto signos de outra. fanon era bem claro quanto a isso: “o negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa”. (p. 33) podemos então tratar de uma metafórica mais-valia das paixões, em que para extrair-se o amor-próprio, a vaidade, o luxo, é preciso mitigar o alheio, em uma violência que transforma o outro em inferior; ou melhor: funda o outro, pela força do sistema libidinal em operação, como inferior.
deixo uma citação sobre a carnavalização resultante dos cruzamentos entre o baixo e o alto, como se existisse uma inércia no movimento, uma resistência que impedisse que a libido simplesmente corresse de baixo para cima, uma transformação inerente ao movimento:
"O referido príncipe Maximiliano notou, no Brasil serem os portugueses bons cavaleiros, amantes de um andar 'passeiro' de cavalo, para o que atavam às patas dos animais pedaços de madeira. Mais: usavam enormes esporas, no que os imitavam, quanto possível, caboclos e mulatos mais sacudidos como o que Maximiliano conheceu em São Bento: espada de lado e esporas atadas aos pés descalços. Ostentação de insígnias de classe dominante por homens agrestes demais em sua cultura para renunciarem ao gosto da gente de sua raça pelo hábito de andar descalça, mesmo quando revestida de adornos mais solenes". (p.363)
podemos dizer, sinteticamente, que a imitação, tal qual a teoria mimética do luiz costa lima, sempre comporta alguma diferença. socialmente, essa diferença funda a cultura autenticamente brasileira que gilberto freyre busca.
quinta-feira, 30 de maio de 2024
que me aconteceu quando me bem vesti para ir a uma festa de literatos da zona nobre
haviam me convidado para um evento de supostos artistas que ocorreria na zona nobre da cidade. fui até a cômoda onde guardo minhas roupas e retirei de lá a excêntrica casaca que guardo somente para tais ocasiões solenes. tirei minha camiseta preta e velha, de gola esgarçada de tanto vestir, e como a do banheiro estava quebrada, fui até a pia da cozinha lavar minhas axilas.
o tempo estava frio, mas o comboio que tomei, sem ar-condicionado, fez que sentisse o suor escorrendo por minhas costas. despi minha excêntrica casaca e também o chapéu de minha cabeça. ao meu lado, um rapaz de jeito simples, me observava com interesse. incomodado com o jeito que me observava, o interpolei com ríspida polidez:
- os olhos do senhor estão procurando alguma coisa?
- sinto muito, meu chapa. não era de forma alguma meu intuito importuná-lo. somente achei curiosa essa sua casaca.
envergonhado, ele não voltou a me olhar. em um movimento veloz, desceu algumas estações antes da minha.
o evento com os escritores foi insípido. como suspeitei, não havia lá nenhum artista. voltei para casa entediado, arrependido pelo dinheiro que gastei, mais do que pelo tempo. sozinho, tremendo de frio embaixo de minhas cobertas, só consegui pegar o olho depois de tomar meia garrafa de uísque de segunda.
sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história
1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...
-
Quais são os requisitos para poder ensinar corretamente sobre a administração de uma grande fortuna? Ora, se queremos nos tornar mais sábios...
-
50. RONDA NOTURNA A parte mais noctâmbula da sociedade saía das óperas e comédias que enchiam os teatros do centro e se dirigia,...
-
A intransitividade do amor parece sugerir o fulgor do desejo, que se conecta em detrimento das raças . Amar, verbo intransitivo , é um roman...