acordei tarde. a ansiedade com o horário - examino o relógio o tempo inteiro -, a insatisfação com a perda diária, infinitesimal, de produtividade - sou meu próprio chefe - certamente predispôs meus nervos a tristeza. não deu outra: abri o celular, o olho sujo de remela ainda, e uma coisa qualquer, banal e incapaz de perturbar ninguém, foi suficiente para me deixar melancólico. resolvi comer café da manhã na rua, é coisa que faço para tentar acrescentar alguma dignidade ao meu dia. lembro de que assim faziam os escritores no século XX, que imito por fantasia, já que há muito escrevi do sonho de escrever. enquanto caminho até a padaria, faço as contas: quatro e cinquenta o pão com ovo, mais quatro o café, e com certeza vou pedir outro, então doze e cinquenta. não sei porque animo essas contas fora a pretexto de me torturar, já que não controlo meu dinheiro para além de pagar minhas contas todo mês, mas faço mesmo assim. cumprimentei a garçonete, que me conhece pelo nome, pedi a comida, que estava até saborosa. conversei com um outro cliente, primeiro sobre os acontecimentos da política internacional, depois sobre os nacionais, e por fim ele me contou uma história de sua vida. era advogado, e certa vez foi preso. a história é boa, mas não quero escrever por preguiça. voltei então para casa (tudo isso durou menos de trinta minutos) e voltei aos meus afazeres de todos os dias, desde o primeiro minuto contando as quatro horas que demorariam para que pudesse fazer a pausa para almoçar os restos do jantar de ontem.
sábado, 15 de junho de 2024
quinta-feira, 25 de maio de 2023
uma contradição encontrada na obra de costa lima
A palavra que me ocorre para descrever o sentimento que atravessa “A versão solar do patriarcalismo: Casa-grande & Senzala”, na verdade são duas: a ira e o desprezo. A ira se insinua quando o autor irá tratar do “mestre dos Apipucos”; o desprezo, contudo, está lá desde o início, sem embaraço algum, quando Costa Lima trata a intelectualidade brasileira a qual ele filia a obra de Gilberto Freyre. Quer dizer, isso se pudermos chamar aquele teatro aqui representado de “intelectualidade”. Leram pouco, muito pouco de tudo que na Europa se escrevia, naquele século tão letrado que foi o XIX. A verdade… Querem ouvir a verdade? A verdade é que talvez fosse melhor que não tivessem lido nada!, porque, do pouco que aqueles pobres diabos leram, só tocou-lhes os pontos mais superficiais do que era o racionalismo iluminista: Se por si só este racionalismo iluminista era limitado, aqui, entre aqueles intelectuais preocupados com o problema desta largar região a que se deu o nome de Brasil, o que já era pobre aqui empobreceu-se ainda mais! Se o iluminismo era pão dormido, o que se fazia aqui fez-se com suas migalhas, porque de todo o iluminismo, entre os intelectuais brasileiros foram aprendidas apenas as “ atitudes mais esquemáticas: o repúdio à metafísica, o desprezo pela religião [...] e pelo que fosse rebelde à estrita incidência da razão”. Mas estes elementos não entravam propriamente no circuito da demonstrações; antes se contentavam em funcionar como seus porteiros, encarregados de barrar a entrada de qualquer que a priori já não estivesse convencido de sua evidência. Se a razão já tem a tendência de ser monológica, i.e., de não reconhecer senão o que traz sua marca manifesta, que então dizer deste racionalismo-por-etiqueta? É surpreendente que estas palavras sejam escritas somente algumas páginas depois de que a “concepção radical do historicismo” de Herder fora por Costa Lima louvada como contrária à “razão monológica” dos iluministas; imagino que a tinta ainda estava fresca, que o autor havia acabado de pensar e redigir que “cada época deve ser encarada em termos de seu próprios valores [...] de que não há progresso ou declínio na história mas apenas a diversidade preenchida por valores”, quando em seguida descreveu a razão de toda uma série de intelectuais que aqui, no país de nome Brasil, escreviam, como um “racionalismo-de-etiqueta”... Pensemos por alguns instantes… - ao leitor entediado, desculpe termos que gastar mais linhas em divagações que poderiam ser omitidas… - Pensemos no como é possível tão flagrante contradição, especialmente porque tratamos de autor que, na página 227, ainda neste mesmo ensaio, debocha daqueles que fazem elogio da escrita de Freyre por “suspender a desconfiança fundamental que o pensamento ocidental nos ensinou a manter quanto à contradição”... e na sequência, ao tratar da “maleabilidade do oral” a que tanto aludem os analistas dos escritos do Freyre, sobre tal “maleabilidade”, levantará hipóteses: “Seriam seus analistas especialmente desatentos ou a linguagem de Freyre desenvolveria uma melodia anestesiante do entendimento?” Será que a monumentalização de Gilberto Freyre deve-se ao cantar de sereia, ao ir e vir de sua escrita que antes anestesia o entendimento, ao invés de fazer o seu contrário, reanimar, desentorpecer, despertar o entendimento do leitor? A colocação de Costa Lima recoloca Gilberto Freyre na prateleira da razão-por-etiqueta, com o acréscimo ou destaque do quão poderoso retórico seria este escritor, capaz de anestesiar não somente um ou outro, mas algumas gerações de intelectuais. Estaria Casa-grande & Senzala, portanto, na linha sucessória de Os sertões, de Euclides da Cunha, obras científicas, historiográficas, que contudo habitam a fronteira do literário, e por isso seriam tão perigosas: por estetizar o que deveria se dar da forma mais simples e direta possível ao entendimento… Do ponto de vista da lógica ocidental, a contradição impõe verdadeiros desafios à imaginação analítica... Pensemos portanto em hipóteses razoáveis, capazes de justificar a contradição de um escritor não somente avesso à contradição, mas que no ensaio analisado estava verdadeiramente atento a ela.
Hipótese número um: Costa Lima não é somente Costa Lima; o codinome, na verdade denomina uma dupla de escreventes: não é um único homem! Não Costa Lima, mas Costa & Lima! Um escreve uma coisa, e cansado por qualquer motivo, ou então por insistência do outro, que deseja digitar na máquina, trocam de lugares, e a sucessão lógica é assim interrompida.
Hipótese interessante do ponto de vista literário, mas inverossímil, infelizmente. Passemos para a hipótese número dois: o autor não possui exatamente ciência do que escreve; digamos, não é como seu argumento estivesse em sua cabeça como uma sucessão de A + B + C + D… Assim, são de qualidade os autores capazes de transformar a razão por eles arquitetadas em palavras; as palavras, portanto, deveriam repetir a arquitetura exata que construiu em sua mente…
Que são estes buracos que encontramos em tais catedrais erguidas por meio das palavras? Falhas que deveremos cobrar a seu projetista, criaturinha incapaz de pensar…
E por que estamos falando em pensamento, se na verdade estamos tratando de escritos? É tão fácil confundir sujeito e seus rastros, ainda mais quando conhecemos, quando estivemos frente à frente com o sujeito que assinou a autoria de tais escritos…
A razão que move os sujeitos é estranha; e ainda, tão estranha ou mais, é a razão com que lemos os escritos… É como se pudesse existir, dentro da mesma unidade, uma outra coisa que destrói a possibilidade de sua unidade, ou ainda, de nosso critério de unidade… É como se houvesse, dentro do escrito, forças em dispersão, e também forças centrípetas, as duas coisas ao mesmo tempo…
Se a possibilidade de dois Costa Lima é literatura fantástica, a existência de um único, mas de razão dupla, ou ainda, razões múltiplas, dependendo da velocidade, intensidade e gravidade com que se manifestam tais razões, Costa Lima poderia, meu deus, ser interditado por médicos e psicólogos, e declarado esquizofrênico…
Graças a Deus este não é o caso, e as oscilações parecem muito mais estáveis, muito mais simples, e pelo que imagino, nada impede a Costa Lima que seja capaz de viver em sociedade e desempenhar as funções que esperam que desempenhem, inclusive a de intelectual, e é dela que estamos tratando aqui…
segunda-feira, 22 de maio de 2023
O QUE É A BIBLIOGRAFIA: atomismo do espírito; ou porque acredito em mitos
Aproxima-se, diante do púlpito, uma mulher de nome indefinido, mas que declara ao microfone seu "ceticismo, e também, inevitável pelas constantes leituras que fiz de Machado durante um mestrado, não soar irônica em meu pessimismo".
Declara também que somente encontrou em tal ocasião "brecha para se expressar, mesmo que não saiba o motivo da expressão", e pediu ao público do congresso que desculpasse qualquer "salto argumentativo [...] porque estava bêbada [...] depois de dois copos de uísque" e que também havia o "rivotril" que disse beber como "passarinho que avoa até bebedouro posto em janela de apartamento miserável".
O que disse em sequência foi o seguinte:
Este enorme edifício que os senhores acadêmicos planejam, este largo empreendimento ficcional que fazem aqui, reunidos de modo tão teatral quanto deputados em câmeras de deputadas... Não, não falo contra os senhores, nem contra seus ofícios, nem mesmo contra a fictícia torre... Ela, afinal, que orienta não apenas os escritos que escrevem aqueles que em sua construção desejam se iniciar..."
(Neste ponto apontou para mim, que defendia minha tese de doutorado)
"Este pobre rapaz, coitado, não falo assim por pena, somente para indicar que a operação que realizou durante alguns anos, e que lhe deve ter ocupado os nervos e as paixões, não importa para nada, não adiciona nenhum tijolo na imaginária torre que constroem por meio do conhecimento..."
(Me olhou e deu um sorrisinho, que me pareceu simpático, de empatia, mas que talvez também fosse de pena).
"O que o rapaz faz, ao escrever e defender uma tese, ao ser cumprimentado pelo senhor..."
(E indicou o Oswaldo Candido, professor emérito do Departamento de História).
"Quando o senhor cumprimenta o rapaz pelo acréscimo que agora se faz à bibliografia acerca de seu tema de pesquisa... Sinto prazer sádico em dizer, mas também tristeza...)
(Voltou a olhar para mim, e parecia genuinamente triste).
"Isto que se refere como contribuição à grande biblioteca do saber é evidentemente uma contribuição fictícia, mas reconheço, eu não sou estúpida, que é sim contribuição para operações maiores!, que este tijolinho que o rapaz acrescenta no enorme e inexistente edifício, se este tijolinho não representa nada, importa por um motivo diverso do imaginado por vocês, bando de positivistas!" (Fez um gesto amplo que abrangeu o auditório e a banca, e a partir deste momento passou a falar diretamente para aqueles que nela estavam sentados).
"A tese deste pobre diabo, o tijolinho que finge adicionar na torre imaginária que o senhor chamou de bibliografia, vou revelar sua qualidade verdadeira: é somente o produto, o objeto magnético e de capacidades mágicas que nos distrai daquilo que faz a máquina do saber girar... A cadeia de projetos, de bancas, de artigos, de bibliografias... as universidades, as editoras… O motivo do movimento jamais importa: é sempre falso, é sempre ilusório, é sempre fictício. Vivemos na mitologia ou no cruzamento de várias: se o mito é falso, então a verdade, o conhecimento, o saber - o grandioso mito que atravessa séculos sob a forma das mais variadas histórias - se o mito é falso, portanto, a verdade é falsa, e estaríamos em uma contradição que nem ao menos seria necessário o serviço de um lógico para solucionar. A verdade é que o mito é real: que o ilusório é real, que o fictício é real, que o falso é real, e que não importa a verdade do movimento, basta o estar-em-movimento".
POR UMA HISTORIOGRAFIA DE VANGUARDA
O argentino Ricardo Piglia, em ensaio muito breve e conciso - talvez por algum impulso brechtiano de dissolver a magia que anima as histórias e que ilude inúmeros leitores - revelou como o conto moderno opera de maneira bem simples.
Que o leitor - e muitas vezes o próprio escritor - não percebessem tão simplório mecanismo, talvez signifique que mesmo o truque mais gasto e ordinário, se for bem executado, ainda é capaz de produzir grandes feitos.
A surpresa manifestada pela aparição da segunda narrativa aqui contudo não precisa surgir no final; afinal, não estamos em um conto; este, digo ao improvável leitor desavisado, que por algum motivo tem diante dos olhos estas palavras, é somente um projeto de pesquisa, feito para circular e ser lido entre não mais que quatro ou cinco pessoas.
Trata-se de um gênero textual, digamos, burocrático, em que explico, primeiro, os antecedentes, ou ainda, como cheguei ao meu objeto de pesquisa; e como também este é um gênero judicativo, que precisa receber o crivo de algumas autoridades acadêmicas, o que estou a fazer - mesmo quando não pareça - é a explicação, defesa e exposição (parcial) de um trabalho de pesquisa já em andamento, e que a partir da orientação dos pares serão impostos alguns limites e também oferecidas novas possibilidades. Pobre leitor!, que desorientado chegaste até aqui, irei ainda lhe explicar que, por convenções do gênero, estou isento da necessidade de causar surpresas (embora certo aplauso, claro, seja recomendado).
O que ocorre, contudo, é minimamente confuso, porque é com consciência que continuamente imponho marcas de gêneros ficcionais neste texto que deveria ser não-ficcional, coisa que, para a maioria dos pesquisadores, parecerá simplesmente encheção de linguiça, pois a linguagem clara e objetiva é parte do discurso historiográfico (quer dizer, tornou-se parte, a partir de dado momento, a partir de certa disseminação do que é o discurso historiográfico), e se no discurso historiográfico - cujo dever é narrar fidedignamente o ocorrido - tudo que pareça demasiado literário no historiográfico, infelizmente, por mais avançadas que estejam as discussões sobre as relações entre a história e a ficção, e que se escrevam longas teses e artigos sobre o assunto, a verdade é que o literário, quando surge dentro do historiográfico, é ainda assim lido como ornamento, excedente desnecessário, parafernalha que atrapalha a manifestação de alguma coisa que costumam ter dificuldade de definir, mas que pode ser o lógos, o discurso verdadeiro, mas como a maioria dos historiadores estão cultivados em certo positivismo tão difuso que já nem mais percebem atravessá-los, o literário vira empecilho para a objetividade que deveria caracterizar o discurso histórico, o que ainda irá se justificar pela necessidade das pesquisas terem uso dentro da comunidade acadêmica, porque o conhecimento deve ser capaz de circular dentro deste mercado do intelecto em que uma tese irá servir de tijolo para uma próxima tese!, e que assim será construída enfim esta torre de babel em que todas línguas estarão reunidas - a torre será provavelmente construída na dependência de alguma universidade norte-americana por meio dos papers de estudiosos do mundo inteiro, mas que contudo residem fora de seus países e escrevem em inglês (os tijolos propriamente ditos serão colocados por algum pedreiro imigrante ou qualquer trabalhador que aceite um salário miserável -...
Não me espanta que não compreendam o poder epistemológico e retórico de não somente bem-escrever - escrever bem é entregar um livro que fique entre os trinta mais vendidos de alguma Casa-grande das Letras ou qualquer editora que venda porcarias -; não me refiro ainda ao de “bem-conduzir” ao leitor pelas duras páginas científicas, e assim concorrer com os jornalistas e garantir ao historiador a participação no mercado editorial, ou ainda, nas novas mídias que a internet torna cada vez mais importante: youtube, podcasts, tik-tok, etc… Me refiro a uma coisa mais séria, que embora possa ser mais facilmente ignorada por alguém que faz pesquisas estatísticas, por biólogos que observam a divisão celular e simplesmente fazem seu registro, por estudiosos da teoria do caos ou do comportamento estranho que possuem as partículas minúsculas que hoje acreditamos explicar nossas vidas: átomos, elétrons, neurônios, serotonina, e os tantos outros que não sabemos sequer nomear…
Se tais ofícios possuem tão mais facilidade para compreender a importância daquilo que é referido corriqueiramente como “forma literária”, um historiador, cujo dever é relatar aquilo que se passou no passado - realizar, portanto, uma historiografia, uma escrita da história… - como afinal podemos não apenas ignorar os impactos de tudo que os estudos literários e o mais importante: a literatura, produziu ao longo dos últimos séculos? E não, não me refiro somente a tomá-las como objetos de estudo.
Se no século XIX e XX os escritores tiveram que defender a execução de uma literatura de vanguarda, penso que o mesmo deveria ser feito pelos historiadores: a defesa de uma historiografia de vanguarda. Que não abandone o rigor, que não abandone tudo aquilo que pretende fazer de nosso ofício um saber capaz de participar de uma comunidade acadêmica, e enfim, as características que - se não autorizam chamá-la de científica -, ainda nos fazem pensar em termos de uma ciência histórica… Mas não seria a literatura também um tipo específico de ciência? Não são os poetas afinal detentores de um gênero de saber? A história, cuja imprecisão de seu discurso fez muitas vezes que fosse igualada à retórica, foi poucos séculos colocada em um espaço próprio: mas lembremos não somente de nossas origens, e se o fim da retórica significou o nascimento da literatura, e que dela agora somos irmãos, que isto não seja lido pelo viés negativo.
Que compreendemos os poderes e os saberes do literário; melhor não negar esta proximidade, e querer correr de volta para os braços da ciência natural. Proponho um outro caminho, um tanto estranho, talvez, mas que a mim faz bastante sentido: que compreendemos a ficção não como falsidade ou ornamento; que compreendemos como a ficção também participa de alguma forma da verdade; e como a historiografia também partilha destes ainda estranhos poderes que pressentimos, mas que desconhecemos, e que chamamos por muitos nomes: poesia, literatura, ficção, retórica… e até mesmo, pelos mais astutos inimigos, de mentira…
sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história
1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...
-
Quais são os requisitos para poder ensinar corretamente sobre a administração de uma grande fortuna? Ora, se queremos nos tornar mais sábios...
-
50. RONDA NOTURNA A parte mais noctâmbula da sociedade saía das óperas e comédias que enchiam os teatros do centro e se dirigia,...
-
A intransitividade do amor parece sugerir o fulgor do desejo, que se conecta em detrimento das raças . Amar, verbo intransitivo , é um roman...