A palavra que me ocorre para descrever o sentimento que atravessa “A versão solar do patriarcalismo: Casa-grande & Senzala”, na verdade são duas: a ira e o desprezo. A ira se insinua quando o autor irá tratar do “mestre dos Apipucos”; o desprezo, contudo, está lá desde o início, sem embaraço algum, quando Costa Lima trata a intelectualidade brasileira a qual ele filia a obra de Gilberto Freyre.
Quer dizer, isso se pudermos chamar aquele teatro aqui representado de “intelectualidade”. Leram pouco, muito pouco de tudo que na Europa se escrevia, naquele século tão letrado que foi o XIX.
A verdade… Querem ouvir a verdade? A verdade é que talvez fosse melhor que não tivessem lido nada!, porque, do pouco que aqueles pobres diabos leram, só tocou-lhes os pontos mais superficiais do que era o racionalismo iluminista: Se por si só este racionalismo iluminista era limitado, aqui, entre aqueles intelectuais preocupados com o problema desta largar região a que se deu o nome de Brasil, o que já era pobre aqui empobreceu-se ainda mais! Se o iluminismo era pão dormido, o que se fazia aqui fez-se com suas migalhas, porque de todo o iluminismo, entre os intelectuais brasileiros foram aprendidas apenas as “ atitudes mais esquemáticas: o repúdio à metafísica, o desprezo pela religião [...] e pelo que fosse rebelde à estrita incidência da razão”.
Mas estes elementos não entravam propriamente no circuito da demonstrações; antes se contentavam em funcionar como seus porteiros, encarregados de barrar a entrada de qualquer que a priori já não estivesse convencido de sua evidência. Se a razão já tem a tendência de ser monológica, i.e., de não reconhecer senão o que traz sua marca manifesta, que então dizer deste racionalismo-por-etiqueta?
É surpreendente que estas palavras sejam escritas somente algumas páginas depois de que a “concepção radical do historicismo” de Herder fora por Costa Lima louvada como contrária à “razão monológica” dos iluministas; imagino que a tinta ainda estava fresca, que o autor havia acabado de pensar e redigir que “cada época deve ser encarada em termos de seu próprios valores [...] de que não há progresso ou declínio na história mas apenas a diversidade preenchida por valores”, quando em seguida descreveu a razão de toda uma série de intelectuais que aqui, no país de nome Brasil, escreviam, como um “racionalismo-de-etiqueta”...
Pensemos por alguns instantes… - ao leitor entediado, desculpe termos que gastar mais linhas em divagações que poderiam ser omitidas… - Pensemos no como é possível tão flagrante contradição, especialmente porque tratamos de autor que, na página 227, ainda neste mesmo ensaio, debocha daqueles que fazem elogio da escrita de Freyre por “suspender a desconfiança fundamental que o pensamento ocidental nos ensinou a manter quanto à contradição”... e na sequência, ao tratar da “maleabilidade do oral” a que tanto aludem os analistas dos escritos do Freyre, sobre tal “maleabilidade”, levantará hipóteses: “Seriam seus analistas especialmente desatentos ou a linguagem de Freyre desenvolveria uma melodia anestesiante do entendimento?”
Será que a monumentalização de Gilberto Freyre deve-se ao cantar de sereia, ao ir e vir de sua escrita que antes anestesia o entendimento, ao invés de fazer o seu contrário, reanimar, desentorpecer, despertar o entendimento do leitor?
A colocação de Costa Lima recoloca Gilberto Freyre na prateleira da razão-por-etiqueta, com o acréscimo ou destaque do quão poderoso retórico seria este escritor, capaz de anestesiar não somente um ou outro, mas algumas gerações de intelectuais. Estaria Casa-grande & Senzala, portanto, na linha sucessória de Os sertões, de Euclides da Cunha, obras científicas, historiográficas, que contudo habitam a fronteira do literário, e por isso seriam tão perigosas: por estetizar o que deveria se dar da forma mais simples e direta possível ao entendimento…
Do ponto de vista da lógica ocidental, a contradição impõe verdadeiros desafios à imaginação analítica... Pensemos portanto em hipóteses razoáveis, capazes de justificar a contradição de um escritor não somente avesso à contradição, mas que no ensaio analisado estava verdadeiramente atento a ela.
Hipótese número um: Costa Lima não é somente Costa Lima; o codinome, na verdade denomina uma dupla de escreventes: não é um único homem! Não Costa Lima, mas Costa & Lima! Um escreve uma coisa, e cansado por qualquer motivo, ou então por insistência do outro, que deseja digitar na máquina, trocam de lugares, e a sucessão lógica é assim interrompida.
Hipótese interessante do ponto de vista literário, mas inverossímil, infelizmente. Passemos para a hipótese número dois: o autor não possui exatamente ciência do que escreve; digamos, não é como seu argumento estivesse em sua cabeça como uma sucessão de A + B + C + D… Assim, são de qualidade os autores capazes de transformar a razão por eles arquitetadas em palavras; as palavras, portanto, deveriam repetir a arquitetura exata que construiu em sua mente…
Que são estes buracos que encontramos em tais catedrais erguidas por meio das palavras? Falhas que deveremos cobrar a seu projetista, criaturinha incapaz de pensar…
E por que estamos falando em pensamento, se na verdade estamos tratando de escritos? É tão fácil confundir sujeito e seus rastros, ainda mais quando conhecemos, quando estivemos frente à frente com o sujeito que assinou a autoria de tais escritos…
A razão que move os sujeitos é estranha; e ainda, tão estranha ou mais, é a razão com que lemos os escritos… É como se pudesse existir, dentro da mesma unidade, uma outra coisa que destrói a possibilidade de sua unidade, ou ainda, de nosso critério de unidade… É como se houvesse, dentro do escrito, forças em dispersão, e também forças centrípetas, as duas coisas ao mesmo tempo…
Se a possibilidade de dois Costa Lima é literatura fantástica, a existência de um único, mas de razão dupla, ou ainda, razões múltiplas, dependendo da velocidade, intensidade e gravidade com que se manifestam tais razões, Costa Lima poderia, meu deus, ser interditado por médicos e psicólogos, e declarado esquizofrênico…
Graças a Deus este não é o caso, e as oscilações parecem muito mais estáveis, muito mais simples, e pelo que imagino, nada impede a Costa Lima que seja capaz de viver em sociedade e desempenhar as funções que esperam que desempenhem, inclusive a de intelectual, e é dela que estamos tratando aqui…
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