quinta-feira, 25 de maio de 2023

DEPOIMENTO DE LINS, OSWALDO.

 “Por que desejamos derrubar nossos ídolos?”, pergunta a criancinha, sentada no chão, os braços envolvem os joelhos, a cabecinha olhando os operários demoliram a enorme estátua de Gilberto Freyre, que ele não sabia quem era, mas que seu pai, homem morto de quem possui somente vaga lembrança. Lembra de que gastava muito tempo em uma sala apertada, que depois aprendeu a chamar de escritório, e que lá dentro, a sala cheia de livros (ele também somente o nome depois), seu pai ou lia um destes livros ou, também era comum, escrevia na máquina de escrever (como nos outros casos, este nome também aprendeu depois: os livros, o escritório, a máquina de escrever… primeiro reconheceu a coisa em seu mistério de coisa, e é difícil narrar o que se passa na mente ainda tão frágil e plástica quanto a de um garotinho naquela idade, mas arrisco que existisse alguma vontade de entender o que era afinal eram estas coisas que via e no entanto não compreendia: para que serviam, por que estavam ali, o que seu pai fazia com elas… 

Se vontade não for a palavra correta, o que ocorreu em seu cérebro, seja lá o nome mais adequado, foi suficiente para que gravasse a imagem de seu pai sentado, o tec tec tec da máquina junto de uma música ao fundo. 

Que música era a que tocava ao fundo, junto da máquina de escrever? Nunca descobriu, é evidente, embora vez ou outra, enquanto ouvia alguma música mais antiga, se era aquela que seu pai ouvia…

Como se gosta de algo que irá lhe acompanhar por toda a sua vida, nas mais variadas formas? Era ainda um garotinho, oito ou nove anos. A mãe varria a casa, naquele dia iriam receber visita dos avós (o garotinho, contudo, não lembra disso). Enquanto faxinava a sala, a mãe ouvia no rádio uma canção que fazia sucesso na época, “A horse with No Name”, de uma banda chamada America. Foi nesse dia, foi essa canção, que fez com que gostasse de música pela primeira vez. Passou a escutar os discos da mãe de vez em quando; começou a procurar no rádio alguma música que parecia legal…

- Naquele tempo, ele interrompe e diz, a gente não sabia o nome das músicas que escutava… Ela tocava no rádio: você poderia ficar encantado, e depois simplesmente nunca mais ouvi-la… Imagine, Leila, você se apaixonar por um rapaz e… Quer dizer, se apaixonar por uma moça, e vocês viveram juntas um amor lindo, foi um romance maravilhoso!, e você pensa quando ela já foi embora, quando ela já desapareceu para sempre… meu Deus, eu não sei nem o nome dela… Pois é, filha, era assim que acontecia. 

Às vezes escutava uma música por acaso e quando percebia era uma que tocou em sua infância, nesse tempo de rádio, em que algumas canções deveriam ser aproveitadas nos três ou quatro minutos que duravam, porque depois poderiam nunca mais voltar. Às vezes, claro, algumas voltavam, e assim ia descobrindo os artistas que gostava mais, os estilos e gêneros que lhe agradavam, outros que não eram muito sua praia. Sempre gostou de ouvir os discos da mãe. Um dia, quando ele fez dez anos de idade, a mãe lhe deu de presente os discos que eram de seu pai. Ouvir o que o pai ouvia, descobrir um pouco de sua intimidade, ou somente ter um pouquinho mais de informação para inventá-la, para imaginar melhor seu pai… 

A primeira vez que ouviu os discos do pai foi quando todos foram embora da festinha que a mãe havia organizado. Poucas pessoas, alguns amigos da escola, primos, crianças com quem brincava na rua, os parentes… 

As fotos que tiraram sugerem que foi uma festa alegre, e ao rever as fotos, ele sorri, como se lembrasse de tempos bons, mas me diz não lembrar nada desse dia, com exceção do momento em que todos já tinham ido embora, e a mãe apareceu com os discos que foram do pai.

- A primeira vez que ouvi foi junto de minha mãe… Eu não vou saber dizer o que se passou, mas é uma das memórias, olhe, é uma das memórias daquelas que todo filho deveria ter com a mãe, entende? Eu não sei o que senti, mas estava divertido, meu pai tinha um gosto diferente de mamãe, era mais esquisitão, e eu não consigo lembrar muita coisa fora que foi divertido, e também emocionante, escutar o que papai escutava, e que em certo momento… isso me lembro, e acho que irei lembrar até o momento que eu morrer, Leila… “Um disco tão bobo”, mamãe não parava de repetir, enquanto limpava as lágrimas com as costas da mão… Sim, a canção, claro que me lembro… “Vamos fazer um filme”, do Legião Urbana… Mamãe teve vergonha de chorar na minha frente. Eu devia ter abraçado ela, mas era também só um garoto, o que entendia de sentimentos, de amor…? Às vezes acho que ainda hoje não aprendi direito, e que continuo fazendo tudo errado… Mas ela amava o papai, amava de verdade, e eu acho que sempre tentei encontrar um amor bonito como aquele… 

Não sei dizer o que sentia naquele momento, em que ficou em silêncio. Sua expressão dizia alguma coisa, mas era eu que não sabia ler. 

- Por quanto tempo mesmo você disse que conviveu com seu pai?, disse, para tentar fazer a entrevista continuar.

- Ele morreu quando eu tinha uns três anos, respondeu, sem que precisasse alterar a expressão de seu rosto.

Quase sempre, e isto notam os psicólogos, nesta idade, o bebê percebe o mundo externo com certa indiferença, e mesmo com algum desinteresse. “Primeiro a coisa, depois o nome”. Esta não era, de forma alguma, uma regra sobre a epistemologia infantil. Muitas coisas, como todas as crianças, ele afinal aprendeu primeiro o nome, para que só depois descobrisse a coisa. Os livros, os escritórios, a máquina de escrever, e até mesmo a música: com estas coisas, no entanto, se passou assim, primeiro a impressão da coisa, depois seu nome. 

A mãe tomou a criança no colo e levou-a para a sala. “Encosta a porta, por favor”, pediu o pai, sem tirar o rosto de entre as páginas de um livro. “Papai agora está ocupado”, tentou explicar para o filho, e creio que nessa idade, ainda não compreendia exatamente o que a mãe queria dizer com “ocupado”. Se a simples noção de “estar ocupado” talvez fosse estranha para o bebê, enquanto lhe carregava de volta para a sala, ela lhe explicava - talvez falasse mais para si do que para a criança - que “o papai precisa de concentração para que pudesse trabalhar”, “que o papai está preparando uma importante tese sobre um homem importante, um historiador chamado Gilberto Freyre”.

Este é um caso de quando o nome veio muito antes de qualquer compreensão. Em algum momento, ele não lembra quando ouviu pela segunda vez aquele nome, “Gilberto Freyre”, mas segundo o que me conta, nesta segunda vez não associou o nome ao trabalho que seu pai fazia quando trancado no escritório. 

Quanto tempo demorou para compreender o que seu pai fazia no escritório, quando a mãe dizia que estava “ocupado”? Desde menino que lembra desta cena, o pai entre livros, no escritório, a máquina de escrever, alguma música tocando baixinho. As análises que o material gravado ao longo dos anos nos possibilita sugerem um fenômeno estranho: esta cena, para o paciente tão fundamental, com o pai sentado no escritório, os livros, a máquina de escrever, a música suave, ou deve ter visto uma ou algumas poucas vezes, e por algum motivo que analistas anteriores buscaram explicar, para sempre ficou gravada em sua memória; não deveríamos descartar, contudo, que este cena seja na verdade fabricada pelo paciente. 

O escritório, a máquina de escrever, os livros, mesmo a música. Quando, afinal, o paciente compreendeu a ocupação de seu pai, para que, depois de compreendido a natureza erudita de seu trabalho, que era seu pai um historiador, pudesse seu inconsciente armar uma cena tão banal como essa? 

“Por que desejamos derrubar nossos ídolos?”, pergunta a criancinha, sentada no chão, os braços envolvem os joelhos, a cabecinha olhando os operários demoliram a enorme estátua de Gilberto Freyre; essa história repetiu várias vezes. Verossímil que estivesse entre a multidão que assistiu a queda deste historiador que, no tempo de sua infância, ainda era célebre.


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