quinta-feira, 25 de maio de 2023

O QUE É BIBLIOGRAFIA

  É tradicional que a seção bibliográfica de um projeto de pesquisa seja constituída por uma enumeração, às vezes cronológica, outras não, mas de qualquer maneira, que desenvolva uma lista das principais obras publicadas que já se referiram ao objeto em pesquisa em questão, pelo menos a partir da perspectiva que o novo pesquisador irá estudá-la. 

Impossível suprimir, também, que a bibliografia, neste sentido corrente, seja um gênero antes de mais nada relativo à demonstração de certa autoridade: não somente dos autores e obras enumeradas, mas também a autoridade do pesquisador, que demonstra, pela criteriosa seleção dos nomes e de sua articulação dentro de breve narrativa, ter conhecimento daquilo que a tradição ou comunidade disse à respeito do objeto que pretende poder dizer algo mais.

Nesta seção bibliográfica, naturalmente, o leitor irá encontrar traços do referido gênero. Encontrará, no entanto, certo deslocamento ou diferença, pelo menos no que refere a este sentido corrente que descrevi como parte do gênero bibliográfico. 

A bibliografia - cuja livre tradução etimológica remonta, de maneira simples e direta, a uma escrita sobre livros -, ao se tornar esse gênero de descrição da tradição letrada que, de certo modo, conduziu um campo de estudos até o momento presente, passa a referir-se também a um segundo sentido de escrita: não somente de livros, de tal história que lhes prescreve como parte de uma comunidade e que coloca cada livro dentro de uma sequência e de um espaço de valor. Estes, os livros que se acumulam em estantes, são a bibliografia de onde - presumimos - o pesquisador aprendeu e constituiu o saber que agora, de alguma forma, planeja inserir seu nome como parte; de qual planeja escrever uma continuação. 

Ao falarmos em bibliografia, no entanto, também nos referimos a uma segunda escrita; não esta, das histórias das obras dignas de memória, que costumam introduzir alguns gêneros acadêmicos, mas uma outra, que refere-se à escrita feita pelo saber no próprio corpo do pesquisador

A bibliografia se apresenta como um catálogo de escritos, a história de um saber ou ciência orientada para o acúmulo. Há, evidentemente, o espaço da crítica bibliográfica, em que o pesquisador, com instrumentos assépticos, a razão pura de qualquer germe, cuidadosamente separa o tumor canceroso do corpo apolíneo do saber. A bibliografia é espécie de travessia intelectual, um ritual de iniciação, talvez, que fazemos para  provar que estamos ciente das discussões correntes - aquilo que há de mais novo em matéria de saber! -. Verdadeiro ritual, a bibliografia, em que demonstramos respeito aqueles considerados pioneiros, que desbravaram a terra ignota do saber, e que hoje, por meio de seus escritos, nos movemos com extrema facilidade, já que os caminhos, afinal, já foram abertos. 

Às vezes, contudo, há pesquisadores mais ousados, daqueles que arriscam a heterodoxia de corrigir a mitologia ensinada, e se o simples crítico, munido de seu bisturi, arranca a doença que se nutria do corpo atlético do saber, há também os que inserem marca-passos, que transplantam órgãos ausentes, colocam próteses e executam milagres científicos dos mais variados, cujo resultado, se bem-sucedido, é dar ainda mais força ao cânone cultuado.

Na concepção corrente de bibliografia, afinal, os livros que nos legaram o passado são como veículos e aparelhos: pode ser necessário certo reparo vez ou outra, mas saibamos deles desfrutar, e mais ainda, que reconheçamos sua importância, que lhe façamos referência, e depois que, por meio da citação, se dê reconhecido nosso respeito, ou pelo menos, nosso conhecimento, se tudo correr bem, seremos aprovados pelos anciões que, do alto de seus elevadíssimos bancos, nos declaram enfim como iniciados, e em rápido sinal - querem somente terminar o drama, dar fim ao ritual e assinar o papel que fará a vida seguir seu curso - declarem que estamos aptos para continuar a construção do edifício do conhecimento: “vá lá, caro rapaz, coloque seu valioso tijolo, acrescente seu livro à nossa enorme biblioteca, e um dia, um outro pobre diabo, coloque um outro tijolo em cima do seu”.

Não ambiciono fabricar mais um tijolo para quem sabe um dia erguer a torre do saber, não tenho a menor pretensão de adicionar um novo livro para a seção empoeirada desta biblioteca que foi chamada de bibliografia. Admito que o acúmulo de nomes eruditos, de datas e glosas aos mais diversos livros, seja atraente, e não nego a nenhum catálogo nem o privilégio de constituir memória ou conhecimento. 

Se faço tão demorada introdução ao que deveria ser tratado com banalidade - oras, é apenas a seção bibliográfica de um projeto de pesquisa! -, é porque não desejo que, pelo menos aqui, a bibliografia seja essa história de um conhecimento virtual, referente a uma biblioteca que certamente poderia ser reunida, se uma alma caridosa tivesse o tempo e o trabalho de anotar, um a um, os respectivos títulos. Seria, aliás, um empreendimento formidável. Para o bem ou para o mal, contudo não é essa a bibliografia aqui desenvolvida. 

Como disse, a bibliografia abre a possibilidade não somente de uma história escrita no branco do papel; este gênero de bibliografia, na verdade, possui um quê de trivial, e se eu não tivesse grande estima pelo conceito de retórica, diria mesmo que a bibliografia, assim imaginada, é às vezes pouco mais do que parte de uma língua oficial, ou poderíamos dizer, como se ficou acostumado dizer: a bibliografia, assim organizada, parece às vezes não ultrapassar a condição de ornamento.

A bibliografia que tratarei, portanto, não é somente uma história sobre o branco do papel, mas sim de como este papel é capaz de rasgar e cortar a carne. Não planejo nenhum catálogo sobre os tantos livros escritos sobre Gilberto Freyre; não planejo cotejá-los, fazer glosa sobre a interpretação ou recepção delas. Embora esta introdução longa sugira a prolixidade, em minha discussão bibliográfica, irei fazer apenas o necessário, um breve relato de como fui introduzido ao meu objeto. 

Com isto, tento refazer não exatamente uma história da recepção e comentário do que já se disse e escreveu sobre meu objeto de estudos,  mas sim buscar por certa genealogia, encontrar o lugar e perspectiva que, desde a primeira leitura que fiz de Casa-grande & Senzala, me foi imposto a seguir. ***

Estudamos animados pelo desejo de decifrar nosso objeto de estudos, de explicar seus fundamentos, de se apossar dos segredos que nele se escondem… 

O objeto, no entanto, nunca é inerte; pior: o objeto muitas vezes é cruel. 

O enigma possui olhos ferozes de esfinge. E quanto mais você pensa decifrá-lo, mais ele lhe devora… 

O objeto não só decifrá de volta ao sujeito, mas também fará dele, sem que sequer perceba, que repita sua cifra por… E aquilo que antes era somente coisa a ser descoberta, passa a constituir sua própria carne, sua própria psicologia, sua própria língua, seu próprio pensar.

Depois de gastar tantas páginas e empregar tantas palavras, enfim compreendi o que estou lhe dizendo. Não me importam os catálogos e listas oficiais; o que dizem elas afinal? Não quero os livros que escreveram a possível história de meu objeto, não apenas porque esta história não é a única possível, mas porque ela pouco dirá sobre como concebi meus estudos.

Nesta seção bibliográfica, planejo reencontrar os livros que literalmente me marcaram; e para dizer de uma vez, a bibliografia que aqui escrevo será verdadeira história proustiana:rememorações daquilo que li; de como sua leitura me afetou e orientou, para que chegasse enfim à forma que abordo ou desejo abordar aos escritos de Gilberto Freyre… 


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