sexta-feira, 26 de maio de 2023

nova biografia intelectual (mais uma)

 No início de qualquer pesquisa, quando tomamos a decisão de entrar em um novo campo do saber, de que nada conhecemos, é necessário encontrar alguma maneira de se orientar. Alguns objetos sofrem de escassez bibliográfica, e neste caso o pesquisador é sempre de alguma forma um inventor e pioneiro, alguém que talvez abra os primeiros caminhos para o que depois virá. 

Já me ocorreu algumas vezes o desejo de estudar um autor menor, não-canônico, e durante algum tempo pensei em José Agrippino de Paula, que apesar de razoavelmente conhecido e associado com o tropicalismo, me parecia propício para um estudo desses, que me exigiria ao mesmo tempo mergulhar de cabeça nos seus (poucos) livros; nos escritos e escritores dos arredores; estudar a história e a sociologia que animavam aquela vida; aprender os incidentes de sua tumultuada biografia; mobilizar teorias e obras diversas para pensar e repensar meu objeto; mas o principal: não ter que ler - ou ler muito pouco - o que dele se escreveu.

A fantasia que descrevo, no entanto, é dessas que vivem somente de pura alteridade, de quem assiste de longe a grama do vizinho, e ela é sempre mais verde do jardim miserável que dia-a-dia trato de cuidar (mas as petúnias sempre morrem, e minha esposa quer malditas petúnias).

Meu mestrado seguiu a esteira do pouco que conheci para escrever o trabalho de conclusão de curso que entregamos para nos graduar. E não que na época reclamasse, porque eu realmente gostava de ler a Jorge Luis Borges, e ainda lhe considero um dos grandes escritores do século, quer dizer, não somente eu que faço julgamento tão bondoso de seus escritos, e por isso que universidades de todo o mundo produzem papers e mais papers associados a esse nome, e confesso, eu, que como todo mestrando estava somente aprendendo a pesquisar, quando comecei esperava fazer uma dissertação original, originalíssima, que tivesse ao menos repercussão nos estudos brasileiros de literatura argentina, e não riam agora de seu escritor, por favor, porque ele era somente um garoto como você também já foi, eu presumo, e foi somente quando dei conta da verdadeira massa de escritos que havia sobre sua obra, na quantidade de páginas que ano a ano se redigia sobre ela, na quantidade de pessoas que assiduamente pensavam e repensavam cada palavra escrita por um único homem… 

O mestrado chegou ao fim quando a banca, em demonstração de bondade e boa disposição que ainda agradeço, aprovou um caótico trabalho sobre a crítica literária de Jorge Luis Borges, e também sobre algumas de suas repercussões dentro de certos contos. Ao fim dessa turbulenta experiência que foi, pela primeira vez, pesquisar, e também, claro, fazer a redação de uma dissertação inteira, mais do a satisfação de entregar um produto de qualidade, me ficou a satisfação de ter passado por um violento processo de iniciação acadêmica, e que como toda iniciação, ser mutilado era somente parte do rito.

Confesso um erro: não dei nem um semestre sequer para respirar. Juntei meus conhecimentos em literatura argentina - que naquela altura, para um rapaz brasileiro de 25 anos eram razoáveis - e fiz um novo projeto de doutorado que, me perdoe o leitor, se seguisse à risca, era muito promissor. Na época, depois de estudar a figura do crítico literário a partir da obra de Borges, me interessavam problemas mais contemporâneos, relativos à situação do escritor e da literatura no mundo de agora. Na época não percebi, mas quando montei meu projeto de, a partir dos escritos de César Aira, escritor argentino ainda vivo, pensar a situação do escritor profissional nas últimas décadas, eu dava continuidade a meus estudos sobre a crítica literária de Borges (que é a crítica fora um episódio da história profissional da literatura?), mas avançando um pouco no tempo, em que o escritor - e o artista em geral - assumem outra posição dentro do mercado e do capitalismo. Não duvido que, se seguisse esse projeto, iria cada vez mais na direção de uma sociologia da literatura em articulação com uma história da arte (especialmente a escrita) como mercadoria.  


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