segunda-feira, 29 de maio de 2023

as sínteses de gilberto freyre

há algo de peculiar quando, em ordem e progresso, o autor anuncia uma seção do livro em que se tentará fazer uma SÍNTESE do restante do livro, de suas mais de 500 páginas (estou provavelmente economizando na quantidade).

o livro se não me engano é de 57, e não sei se na data já se esperava que sínteses fizessem referência à estruturas, leis, elementos invariáveis... 

imagino que a escola de sociologia da USP já estava - se não estruturada -, estruturando-se... e que na frança (repetirei o léxico, o que talvez seja indício de sua penetração em nosso pensar) o estruturalismo já estava disseminado ao ponto de já estar a se preparar aquilo que no fim da década seguinte se chamaria de pós-estruralismo...

o que gostaria de assinalar é somente que o projeto de síntese de gilberto é verdadeiramente esquivo: embora seja anunciado, como nas obras anteriores, o anseio de se encontrar traços comuns ou gerais, aquilo que seria característico do caráter e ou formação da história do brasil, desde os tempos coloniais até - este é o recorte de ordem e progresso - o fim do império e a primeira república, a síntese oferecida por gilberto estranhamente repete o movimento característico do ensaísmo de toda sua carreira, e também dos sucessivos capítulos do livro: a descrição, e quase que ilustração, dos modos de vida, a transcrição de falas e opiniões, séries de observações sobre as mais variadas miscelânias que a erudição de gilberto teve acesso...

é evidente que a historiografia de gilberto alonga no século xx, e especialmente em sobrados e mucambos e ordem e progresso, eu diria, em que a documentação mais farta torna possível a recriação da vida cotidiana e íntima, que embora animasse desde casa-grande e senzala seu projeto historiográfico, a excasses das fontes do século xvi e xvii, principalmente, exigiam ainda mais "intuição" e "imaginação" do autor do que os livros subsequentes... 

daí que gilberto freyre se sinta um escritor, pois seu projeto historiográfico estica até meados do século - tempos de estruturalismos dos mais variados, de empregos de história econômicas e demográfica, de avaliação formalista de licros filosóficos e literários, criação dos mais diversos sistemas capazes de sintetizar e assim compreender as leis de determinado acontecimento ou modo de vida... - em tempos em que a frança exportaria para o mundo o modelo estruturalista de ciências sociais, gilberto freyre era um gênero de historiador anacrônico, pois sua escrita estava fundada, assim como a de malinowski e outros antropólogos, outros discípulos de franz boas, não custa anotar, no anseio, romântico, eu diria, de se representar a totalidade de uma vida social, e assim mostrar ao leitor, por ao seus olhos - um uso de equífrase, eu diria - esse mundo que já passou e não voltará a passar, mas que gilberto reconstrói por meio de seu trabalho de pesquisador erudito, por meio das mais variadas fontes, inclusive a história oral, por meio de sua mente sociológica também, é evidente, que é um meio de pensar e dar vida a esse mundo passado, e como tanto insiste, por aquilo que chama do aspecto literário de seu trabalho, de como precisa fazer uso da imaginação, pra transformar tudo aquilo em cenas, ou melhor, em palavras, para que possa o leitor ter diante dos olhos a história...

e o próprio gilberto entrega a chave para seu sistema, quando se refere logo de início à REPETIÇÃO que atormenta sua escrita de ensaísta... 

costa lima e benzaquem, cada um ao seu modo, pensam a escrita de gilberto como símile do discurso oral, o que é elegante construção dos dois, e adequada especialmente a Casa-grande & senzala, já que o aspecto "mestiço", de oralidade quente e mole das ruas, me parece desaparecer nos trabalhos seguintes...

mas tomemos o modelo da oralidade para trabalhar de maneira mais sistemática com seus ensaios: e fico espantado como nenhum dos dois se referiram à repetição como forma de sistematizar aquilo que parece ser somente comtinuidade, discurso corrido...

não é afinal a técnica que funda a psicanálise como uma ciência do discurso?, a percepção dos giros e retornos que se faz, apesar da aparente sensação de heterogeneidade que nos dá a tagarelice do paciente?

gilberto freyre estava contudo do aspecto repetitivo, porque é ali que podemos começar a pensar o seu ensaísmo enquanto um sistema... e isso, acredito, deve ter interessante usos acadêmicos, já que muitos estudiosos e pesquisadores fazem uso do princípio do retorno mesmo sem saber que fazem...

procuro no entanto não conceitos ou sistemas, ou pelo menos não do jeito que se pensam essas coisas de forma usual, como uma espécie de camisa-de-força semântica em que podemos colocar a obra de um escritor... afinal, como já disse, se procurar, imagino que iremos achar os referidos retornos, o aspecto geral, de lei sociológica, o que afinal diz respeito à continuidade na história do brasileiro, que gilberto freyre ele próprio quer encontrar, mesmo ele que se refira a uma historiografia cubista, de múltiplas perspectivas, repleta de comtradições... mesmo para freyre, estas contradições são passíveis de síntese, afinal.

não escrevo exatamente contra as sínteses, apenas desejo sintetizar de outro modo... 

este outro modo começa por abrir a obra, retirar primeiro os limites que fazem dela não só um livro individual - ordem e progresso - mas também que retire da geografia claustrofóbica do nome - gilberto freyre -...

é assim que procuro as repetições, que são menos relevantes como repetições de um autor - para mim o autor é somente um endereço - do que repetições cujo traçado é mais difícil de precisar, mas que irei, como é de hábito entre nós, brasileiros, empregar um conceito francês para me referir... 

as repetições que procuro estão na ordem do discurso, e no final das contas, embora faça do meu jeito, o que projeto sobre as obras de gilberto freyre é uma arqueologia, um estudo em que persigo o rastro daquilo que me refiro como línguas, e também daquilo que me refiro como topoi ou lugares...

caberia uma sistematização da coisa toda, de como esses lugares, repetidos em conjuntos, classificam uma língua...

e especialmente, de como tais línguas são históricas, de como elas nascem e morrem, mesmo que o discurso sobreviva, e se a arqueologia foucualtiana sugere o recorrentr problema estruturalista de formular o devir, a transformação da língua no interior de um mesmo discurso - por exemplo, morte da língua evolucionista e naturalista dentro do discurso amtropológico; ou melhor, sua continuação, maa enquanto outra língua; estruturalista, marxista, funcionalista... - nos leva a ter que pensar nos motivos que levam determinadas linguagens a morrer e a nascer.

é aqui que somos reconduzidos ao que se chama banalmente de história social, e onde meu projeto historiográfico, por meio da análise discursiva, gostaria de chegar. no final das contas, este meu estudo da vida das línguas no interior de certo discurso trata-se somente de uma metodologia - um tanto laboriosa e especializada, às vezes me parece - para se fazer história social, ou, ainda, história extra-linguistica: que narre não os dramas da língua, do discurso, da escritura (falo em escritura sempre que desejo tornar a precisão delimitada pelos registros fechados do autor e da obra em um campo aberto, em que multiplicidades se atravessam): fazer da análise da escritura de método para se escrever a história daqueles que, afinal de conta, escrevem.

aqui retorno a gilberto freyre. aos seus livros. aos seu aspecto literário. a possibilidade de dar vida ao que o historiador tão laboriosamente demorou a estudar nos documentos. ou, no meu caso, na escritura. sem a ingenuidade de representar o passado, sem o fingimento de que a linguagem do historiador abre uma janela para o ocorrido.

superemos os positivismos, não precisamos dele. temos o rigor do trabalho, o tempo que gastamos lendo e estudando, em que ppr meio de tantos documentos, dos mais variados métodos, laboramos em nosso corpo essa imagem que entregamos ao leitor, com todo o rigor que a escrita também exige do historiador.

é um trabalho mesquinho, como podemos ver. o escritor não precisa ser um mestre apenas na parte positiva da ciência, no que refere a sua capacidade de pesquisar e compreender, de tratar aquilo que se refere de forma corriqueira como "documentação". 

além do trabalho realizado sob a poeira do arquivo, há aquele momento em que irá se sentar no computador para por em palavra o que viu, pensou, e o principal: imaginou.

e gilberto freyre é anacrônico por conta disso. carrega até metade do século XX essa ciência - se eu quisesse ser preciso, eu diria essa língua - que possui tão distinto cheiro de século XIX. gilberto freyre, para ser historiador, fez uso da língua do romancista e do sociologo, tudo isso em um século em que a distinção entre ambas - ficção e ciência - naquela altura, no pós-guerra, já estava demarcada.

e ainda faz dentro de uma forma de ensaio, mas o que é a forma de ensaio..............

gilberto freyre é um historiador estranho, um sociólogo estranho, um amtropólogo estranho, e se admitido, um literato estranho também.

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