terça-feira, 23 de maio de 2023

porque não prestava atenção nas aulas de costa lima

Esclareço que Gilberto Freyre e seus escritos só se tornaram meu objeto de pesquisa quando, no início de 2022, decidi de uma vez por todas que não iria mais estudar literatura. O curso de Costa Lima, ocorrido no primeiro semestre de 2021, se passou portanto em um tempo em que estava com minha cabeça concentrado em problemas diversos. Haviam aqueles relativos mais propriamente à minha pesquisa, e que diziam respeito à teoria e história da literatura, especialmente da literatura argentina (depois de terminada uma dissertação sobre a crítica e seus desdobramentos na ficção de Jorge Luis Borges, havia ingressado no doutorado com um projeto de estudar a obra de outro escritor argentino - no caso, a obra de César Aira -, desta vez não a partir da questão do crítico, mas sim da problemática da profissionalização do escritor (não havia dado conta, mas agora percebo como hoje uma pesquisa era continuação - e neste caso, continuação histórica! - da anterior). O interesse que nutria pelos estudos da historiografia brasileira, portanto, na melhor das hipóteses, eram daqueles que justificamos pela esperança de, por meio da diversidade de nossos estudos, realizar a fantasia de sermos dotados da fantástica e eclética erudição que certos intelectuais - Borges, certamente, era um deles - pareciam representar aos jovens e incautos estudantes. Admito que, no entanto, conhecer a historiografia brasileira, especialmente quando o professor que lhe apresentava fazia questão desqualificá-la por completo, e que, autor por autor, não deixava pedra sobre pedra, pouco deve ter me estimulado a acrescentar escritos tão irrelevantes à erudição que eu fantasiava um dia adquirir.

Melhor, provavelmente eu pensava, era manter os estudos que fazia à parte e que nada tinham a ver com nada do que eu estudava, mas que me interessavam por motivos diversos, e ao invés de ler o que era ordenado pela disciplina, lembro preferir gastar minha semana com outras leituras. Os amigos da internet não paravam - e ainda, pelo visto, não pararam - de falar do Anti-édipo, e junto do livro de Deleuze e Guattari também fiz algumas leituras de Freud, a mais marcante, sem nenhuma dúvida, foram trechos de Psicopatologia do cotidiano (talvez porque meu primeiro contato com a psicanálise partiu de um panfleto escrito contra ela, mas nunca senti necessidade de me aprofundar na psicanálise; ainda assim, sinto ter adquirido considerável conhecimento, digamos, vulgar sobre sua teoria, já que tantos amigos falavam - e ainda falam! - sobre ela). Houve também minha aproximação com o marxismo a partir de O capital, livro que de tempos em tempos leio excertos ao acaso. Houve a Gramatologia, que primeiro, como alguém educado por certa concepção social de linguagem aprendida de Bakhtin, me pareceu detestável, simplesmente a repetir o idealismo da linguística estrutural, mas que quando compreendi pelo menos uma fração do que Derrida tinha a dizer naquele livro (Uma pena que a melhor parte do livro seja a segunda, e que geralmente quase nunca se passa da primeira, talvez pelo cansativo de sua leitura). Estava já, desde antes da Gramatologia - creio desde que li as críticas que Bakhtin faz à linguística burguesa - bastante interessado em compreendê-la melhor, e também examinei livros anacrônicos, como a Linguística Geral de Saussure, li artigos de Jakobson que pouco entendi na hora, mas que hoje, melhor compreendido o que afinal foi o estruturalismo, poderia até mesmo falar com alguma propriedade do pouco que me lembro… O ponto mais importante do meu interesse pelo estruturalismo, contudo, foram dois: primeiro a leitura d’O pensamento selvagem, de Lévi-Strauss, que junto d’A arqueologia do saber, de Foucault, começaram a lentamente germinar em meu corpo uma espécie de teoria do discurso ou da linguagem que sinto cada dia mais madura. Houve também Sade, Fourier, Loyola, de Roland Barthes, junto de tantas leituras, fez nascer em mim essa espécie de teoria da escritura e das línguas que passei a empregar como método de estudo e de análise do discurso, e que hoje trato pelo nome, um pouco livremente, é verdade, enquanto filologia, embora o historicismo típico de tal disciplina esteja consideravelmente diluído, ou melhor, desacelerado, pela lentidão que o estruturalismo (seja qual for: o de Barthes, Foucault ou Lévi-Strauss) impõe à maneira com que estudo… Aderi à filologia para descrever meu trabalho, ainda que não pretenda exatamente reencontrar a origem da linguagem estudada, após ler uma conferência de Auerbach sobre Vico, em que se difere a filologia da filosofia, e descobri assim no termo a potência que procurava para se referir a potência que via na linguagem, e que a filosofia e as ciências, em geral, desprezavam, fazendo dela somente instrumento de conhecimento… Quanto tempo demorei para compreender o que sugere Derrida na Gramatologia! O livro de Lévi-Strauss fez com que concebesse a linguagem - em sua existência mutante, histórica, cultural, social… - como um a priori para o conhecimento, como fenômeno que, assim como o incesto e o casamento, eram simplesmente necessários para que se existisse sociedade… Não, era ainda mais profunda a situação da linguagem, isto pressenti com Foucault, em sua Arqueologia do saber, porque a linguagem não era simplesmente aprioristica, a linguagem era literalmente poder, e que se o enunciado válido - sapiente, racional, compreensível - estava limitado a algumas formas, se o pensar não era livre, mas regrado e fracionado, era porque tratavasse, dentro do campo do discurso, de verdadeira guerra, e a língua era apenas face visível de sua violência… A linguagem era sim este a priori conforme propôs Lévi-Strauss, e somente por meio dela poderia se pensar… Mas Foucault introduz diabolicamente a questão da moral, a questão da história… Como afinal se veio a pensar assim? Como se deram os limites deste pensar? A favor de que? Contra o que? O que este a priori autoriza, a quem dá poder, como a partir de tais palavras, verdadeiras tecnologias de sujeição corporal, capazes de produzir nas pessoas não somente efeitos como os estipulados pela retórica clássica, não, não se trata somente de convencer o outro, mas verdadeiramente de sujeitar alguém, de constituir um corpo, uma subjetividade, a partir deste traçado chamado linguagem, não resta muito além do que obedecer… Foucault demonstrou para mim que a linguagem era ao mesmo tempo ordem e moral; E novamente, então, Derrida, e novamente, então, que a língua é a remessa infinita dos seus significantes… A linguagem não era mais meio para conhecimento nenhum, ela era também o próprio conhecer… E se nasce uma língua, se nasce um conhecimento… Se ele se dissemina… Alguma língua, algum saber, algum conhecer, alguma coisa se perde.


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