AZUL, este foi o nome nos dado pelo sujeito. Sua idade, endereço e ocupação também são indefinidas. Alegou não desejar revelar para a produção qualquer "detalhe biográfico por meio do qual vocês irão tentar me enquadrar dentro de um tipo".
Sobre o que fazia antes de ser abordado pela produção, respondeu que "estava dando uma volta, [...] tomando um ar": "gosto de sair de vez em quando e ver as coisas por aí".
Quando convidado pela produção para que falasse de sua relação com a psiquiatria e com sua saúde mental, AZUL, conforme contou a produtora responsável pela abordagem, pareceu relutar, "fez como se fosse recusar" o convite; a produtora faz a observação de que, apesar da resistência apresentada, foi muito rapidamente que AZUL passou da negação do pedido para um "falatório" que a produtora descreveu como "bélico"; suas feições se tornaram agressivas, e as palavras pareciam sair de sua boca como se fossem ofensas ditas contra a produtora. Nesse tom de voz que disse, sem que se fosse solicitado, ter recebido ainda quando criança o diagnóstico de déficit de atenção, "que lhe fizeram tomar por anos um monte de remédios", e que "quando passaram a falar de esquizofrenia", "graças a deus eu já era velho suficiente para mandar em mim mesmo", e que nunca mais retornou a qualquer psiquiatra.
Esta mesma produtora que abordou AZUL, contou que "percebeu rapidamente que AZUL iria sim dar o depoimento", e que o processo que empregou para convencê-lo era "mais teatro, uma cerimônia".
Importante esclarecer que a mesma produtora afirmou que tal comportamento não foi exclusivo de AZUL; que percebeu a mesma "característica em outros entrevistados", que quando "convidados cordialmente para que dessem depoimentos sobre sua relação com a psiquiatria e saúde mental para um documentário", pareciam "precisar fingir certa resistência" antes de aceitar participarem da gravação. (Nossos sociólogos e psicólogos, até o presente momento, ainda não encontraram qualquer padrão entre os entrevistados que apresentaram semelhante comportamento)
Houvesse ou não desejo imediato de falar sobre a questão psiquiátrica, enquanto esperava na antessala, não parou de falar e de se mexer por um segundo, isto quem informou foi a produtora responsável: "não parou de falar, daquela maneira desordenada", e se a forma com que falava era confusa, contudo, "não faltava razão ou pelo menos aparência de razão em tudo que dizia". A produtora também enfatizou que era difícil compreender para quem afinal AZUL falava: "Se às vezes olhava para mim, e parecia se dirigir a minha pessoa, na maior parte do tempo andava de um lado para o outro, olhava para qualquer canto do espaço com a mesma indiferença com que se olha pinturas em uma galeria de arte, e claro, falava sem parar. Concluo que não falava para ninguém, falava mesmo para si próprio, ou para um outro imaginário. Não lhe interessava minha reação às suas palavras. Não permitia qualquer silêncio para que pudesse nascer uma forma mínima de diálogo. E se ainda assim ameaçasse interrompê-lo, ele sequer parecia perceber que eu havia falado alguma coisa. Simplesmente continuava a falar, em voz alta, naquele tom de quem estava brigando com alguém".
Me pareceu prudente destacar que a produtora de quem ouvi essas coisas, além de formada em filosofia - o que talvez justifique a distinção por ela feita entre "razão" e "aparência de razão", fazia uma pós-graduação em cinema e que tinha entre suas leituras constantes a obra da estruturalista Julia Kristeva, que entre outras coisas, estudou profundamente à linguística. Menciono esses fatos porque são capazes de explicar sua aguda percepção de que AZUL, em vários momentos de sua fala, não tinha como destinatário a nenhum dos presentes, e sim, como a produtora descreveu, que falava sozinho, para si próprio, ou então a um outro que se para nós estava ausente, para AZUL era como um demônio que lhe perseguia o tempo todo.
Sobre sua aparência, AZUL parecia razoavelmente limpo, embora vestisse uma camiseta do clube de futebol Botafogo de aparência antiga (uma breve pesquisa revelou que a camiseta era de 95, ano do último título nacional do clube), que quando o responsável pelo som se aproximou para colocar o microfone na lapela, disse que sentiu "um cheiro ruim de suor" (talvez, portanto, estivesse correndo pouco antes de gravar, ou simplesmente vestisse por dias a mesma camiseta). A calça era de moletom cinza, o que combinava com o preto e branco da camiseta, e estava bem-conservada. Nos pés, as unhas estavam cortadas, e os chinelos eram havaianas ordinárias, de cor branca e gasta.
A pele de AZUL é escura, mas talvez seja indevido descrevê-lo como preto. O cabelo estava raspado, o que torna mais difícil identificar sua etnia ou origem. O nariz sinuoso sugere alguma ascendência mediterrânica, seja do sul europeu, seja semítica ou, ainda, oriundo do norte africano. O fluxo de migrações que historicamente caracterizou a vida social de tal região, contudo, torna difícil estabelecer com alguma precisão a sua ascendência geográfica, social, familiar e/ou genética por meio de estudos fisionômicos. Os lábios eram largos, o que junto de seu tom de pele, reforça seu aspecto mestiço, e portanto, de difícil determinação étnica. Juntos com os detalhes que AZUL concedeu sobre sua história familiar (logo abaixo transcrito) adotamos a conclusão de que sua família já estava no Brasil há pelo menos algumas gerações, muito embora seja impossível precisar qualquer origem anterior à migração, seja internacional, seja nacional (quando perguntado se ele ou seus pais eram naturais de São Paulo, AZUL simplesmente não respondeu).
Embora negasse constantemente nossas abordagens biográficas, enquanto falava sem parar na sala da pré-produção, contou ou deixou escapar alguns detalhes sobre sua história familiar. O pai morreu quando tinha quinze anos, "nunca gostei dele, estava sempre longe de casa, [...] tinha amantes, [...] eu só entendi depois de velho". "Meu pai", disse AZUL, "trabalhou com um monte de coisas, mas quase sempre dirigia, ônibus e caminhão", e destacou que "por muitos anos trabalhou de caminhoneiro". Um ofício tipicamente nômade que, pelo menos em parte, explica tanto a ausência do pai na vida de AZUL quanto as amantes que, nas palavras do filho, "no enterro descobrimos que tinha em todo canto". O psicanalista da equipe, em comentário que ele próprio descreveu como "simples exercício de imaginação executado a partir da mais rudimentar teoria psicanalítica", que "a raiva que [AZUL] manifesta tão facilmente diante de estranhos possa ter como uma das raízes a conturbada relação com o pai".
Sobre a mãe, AZUL, conforme contou para nossa produtora, foi "professora de escola, dava aula para crianças". Falou dela de maneira mais breve que do pai, mas disse que a mãe "sempre [lhe] amou muito", e que "fazia tudo que podia por [ele]". Disse também - e neste momento, como descreveu a produtora, "AZUL abaixou o tom de voz para dizer" - que a mãe "morreu nova, tragédia horrível", quando tinha "vinte e um anos"; "morta em acidente de automóvel".
Pareceu comovido quando entrou na sala da produção. Uma das câmeras já estava ligada, então pudemos observar várias vezes o jeito cabisbaixo com que entrou na sala, e como acatou pacificamente sentar na cadeira indicada.
Quando lhe foi introduzido ao diretor do documentário, feito um animal selvagem que subitamente se torna arisco ao detectar uma ameaça, sua postura voltou a ser de combate. O diretor saiu de imediato da sala, ao notar que provocara tamanha alteração de humor no entrevistado.
Mesmo depois que o diretor saiu, AZUL se manteve em posição estranha, bradando histericamente "ter concordado falar estritamente dos médicos [...] não sobre [sua] vida pessoal".
Quando vista no vídeo, vemos a posição de AZUL sobre a cadeira, o quadril elevado, prestes a se levantar, mas sem nunca verdadeiramente realizar o ato, porque seus braços magrelos, apoiados na cadeira e tremendo pelo esforço de suportar o peso do corpo, faziam que parecesse uma estátua, ou ainda, demonstravam a indecisão entre levantar e ir embora de uma vez ou sentar e dizer o que tanto queria dizer.
Esta cena em que AZUL se suspende na cadeira fez que o diretor comentasse, durante a pós-produção, o seguinte: "O quanto falar custava a esse homem, ao seu corpo, e o quanto este homem desejava falar, mesmo contra o seu corpo..." Alguns quiseram inserir essa fala no corte final, mas o diretor recusou. Acrescento também as palavras que a produtora, a mesma que lhe convidou para gravar o depoimento, respondeu à fala do diretor: "O corpo talvez quisesse sim falar"...
Pareceu melhor ao diretor que a produtora conduzisse a entrevista. O diretor, segundo explicou depois, tinha esperança de que AZUL "demonstrasse melhor abertura para ela, a quem já havia falado algumas coisas", e também porque "os homens, isso aprendi pela experiência, a certo gênero de confidências que preferem fazer às mulheres".
A produtora perguntou de seus avós, e AZUL decidiu-se por ficar sentado. Como quem acabara de realizar um grande esforço físico, falou um pouco sobre a mãe de sua mãe, que "sempre foi dona de casa, e que cuidava de mim quando minha mãe trabalhava", mas que "morreu de doença", não especificou qual, quando AZUL tinha sete anos. Sobre os outros avós, disse vagamente que um avô "que morreu quando ainda [ele] ainda era um bebê [...] trabalhava com algum comércio de merda", que ele não sabia bem qual, mas se lembrava "de alguma história relacionada com sapatos".
Depois de dizer que o avô era "alcoólatra e que deixou dívidas para [sua] avó", começou e não parou mais de falar sobre aquilo que em algum momento chamou de "abusos da medicina".
Alegou que faria aquilo somente porque "era necessário que pelo menos alguém falasse alguma verdade no documentário". Se mexe bastante enquanto fala, principalmente as mãos, que não param quietas. O pé direito, que sacode involuntariamente, fez uma das pesquisadores sugerir que estava ansioso ou sob efeito de alguma droga. AZUL, quando perguntado, negou que tomasse qualquer medicamento, "mesmo os prescritos". Anoto a suspeita mesmo que não possa ser confirmada; mais prudente registrar a dúvida do que deixar o branco do papel silenciar a possibilidade dela ser uma verdade.
Quando foi solicitado que descrevesse a si mesmo, provavelmente por imaginar diante de uma plateia de psicólogos ou médicos, definiu-se como "sujeito simples, que talvez fosse sim relapso, porque se distrai com os pensamentos com grande facilidade, e que [tem] facilidade em esquecer das coisas", mas cujo "sintoma adequado ou convencional que médicos e psicólogos empregavam para classificar [seu] jeito de ser e de existir", a maneira com que "igualavam sua psicologia com a de meio milhão de pessoas" que contudo "poderiam se comportar de maneiras muito diferentes, mas que eram medicadas segundo os mesmos procedimentos ou instruções ensinados nas faculdades de medicina" era o de "portador de déficit de atenção". Enquanto a equipe enquadrava adequadamente a câmera e testava-se o microfone, falava sobre o "absurdo de acreditar que indicar em que um chinês sofresse de déficit de atenção", uma pessoa cuja "vivência, cultura e mentalidade era totalmente diferente da [dele]", de alguma forma pudesse transformá-lo em "um análogo psicológico" ao seu caso, e que a ciência psiquiátrica somente poderia se basear "ou na universalização do capitalismo como cultura", porque AZUL, disse isso de maneira tão insistente que levantou-se da cadeira, "porque a psicologia, a biologia, não é um dado natural!", e já sentado, explicou que "a cultura, a geografia, os costumes" e "muitos outros fatores deveriam participar das descrições daquilo que vocês médicos" e aqui apontou para toda a equipe, sem qualquer distinção "impõe aos seres humanos..."):
AZUL (este foi o depoimento oficialmente gravado): Bom... Isso que vocês chamam de prestar atenção, não sei, o viver no aqui-agora que esperam que eu viva, não é somente para mim uma coisa de difícil execução, mas também coisa com quê de indesejado. É estranho, mas gosto de viver em outros tempos, em outros lugares, em que minha memória e imaginação me convidam a ir, e a verdade é que aprecio a viagem, e me apetece muito poder aceitar seu convite sem receber reclamações da professora, ou ainda, que me receitem medicamentos... Sei que não posso viver perdido em mim mesmo, eu sei que o mundo exige de mim essa coisa de prestar atenção nos estudos, nos livros, no trabalho, que seja, e até acato a ordem, porque sei que não é somente ordem do médico, de meu pai, da psicóloga do colégio, mas de toda sociedade, e que se a ela não me adequar, bom, estarei perdido, então a ela quero me adequar, eu preciso me adequar, e portanto aceito o diagnóstico, tomo os remédios, me comporto conforme parece ser adequado, e espero que assim consiga viver bem e ser feliz...
"Há vezes, no entanto, que o prestar atenção de que tanto falam, me ocorre, independente das ordens, independente das necessidades, independente de tudo e qualquer pessoa, e eu presto atenção simplesmente por desejo prestar atenção, porque - não importa o porque - ocorre essa coisa que desde criança disseram que eu era incapaz de fazer...
"E simplesmente, sem grandes esforços, sem mesmo qualquer remédio, presto atenção porque desejo prestar atenção.
"E quando isto me acontece, difícil descrever a sensação, porque é de um erotismo tão profundo... mas não falo especificamente de sexo, de orgasmos, mas se quiser pode imaginar assim... É algo muito forte, nem alegre e nem triste, embora possa conter algum desses sentimentos - às vezes contém os dois de uma vez -...
"Quando presto atenção porque simplesmente desejo prestar atenção, não é somente meu intelecto, os químicos que os médicos nos impõe e que aceitamos de bom grado como explicação para o que sentimos e vivemos...
"Prestar atenção, quando ocorre, ocorre em todo o meu corpo, em toda sua extensão. E se existe espírito dentro ou fora de mim, sinto que eles estão por perto. Porque quando presto atenção tudo parece diferente. Tudo parece novo. As coisas mais simples ganham capacidades banais. O ordinário torna-se belo. Ou o contrário, às vezes percebo como na verdade é grotesco. Quando presto atenção, alguma coisa sempre acontece, e não vou falar muito mais, já que não saberei descrever. Desculpe, infelizmente não sou capaz de ultrapassar este ponto que costumam chamar de epifania, e terminarei meu discurso da maneira que um místico termina os seus: em silêncio.
"Wittgenstein diz que é melhor calarmos aquilo que não conseguimos dizer. Não cumpro seu mandamento, não só porque não li seus livros, e que portanto não sou nenhum seguidor, mas também porque me parece um conselho estranho, já que todo discurso, queira ou não queira, é seguido de silêncio".
(AZUL subitamente para de falar, e transcorrem exatos um minuto e trinta e oito segundos, AZUL indiferentemente olhando para os pés, até que a produtora diga alguma coisa).
ENTREVISTADORA: "e o silêncio, às vezes, também é um discurso..."
AZUL (como se não ouvisse): "Não que sejam ocasiões assim tão raras, mas geralmente estão reservados... ou melhor dizendo, encontram contextos mais propícios para o desabrochar quando estou com alguém que amo, ou quando estou sob efeito de alguma droga, ou quando estou escrevendo, ou quando estou lendo...
Olhou para a produtora e perguntou se podiam terminar o depoimento naquele ponto. Levantou e foi embora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário