segunda-feira, 22 de maio de 2023

lixo biográfico

 A dissertação que entreguei para obter o título de mestre - cujo tema, curiosamente, hoje percebo com muito maior clareza do que na época - foi dedicada à crítica literária de Jorge Luis Borges, à montagem de uma espécie de “micro-história da literatura” a partir dela - digamos, a história da literatura segundo Borges - e também, - esta é minha parte favorita - sobre os desdobramentos de sua atividade de crítico dentro de sua obra mais formalmente categorizada como ficção.

Quando me candidatei ao doutorado, aproveitei o conhecimento e bibliografia acumulada durante a experiência do mestrado e me dediquei a um projeto sobre um escritor que, por livre e espontânea vontade, naquela época estava lendo com afinco, o também argentino César Aira. De início, a simples troca de autor - de Borges para Aira - pareceu me satisfazer. Veja bem. Depois de quatro anos lendo e relendo Borges, me parecia necessário respirar novos ares. Era como uma relação amorosa desgastada: precisávamos dar um tempo, mesmo que soubéssemos que fosse do tipo de divórcio em que não se desfazem realmente os laços, e que o reencontro fosse questão de tempo. 


***


Preciso contar agora porque também terminei com Aira. 

A verdade é que, mesmo que tivesse cortado as relações com Borges e agora estivesse com um novo objeto de estudos, ocorreu aquilo que muitas vezes ocorre quando vamos muito rapidamente de um namoro para outro. Quando dei por mim, estava projetando as questões que tinha com Borges em Aira, ou seja, simplesmente dava continuidade às minhas pesquisas. Eestava traçando linhagens, observando continuidades e rupturas, continuava preso - senão ao mesmo objeto de estudo - pelo menos preso ao mesmo mundo que lhes circunscrevia… Percebi, portanto, que simplesmente não queria mais estudar a literatura argentina… 

Sempre houve em mim certa aversão ao especialismo acadêmico, e isto também pesou em minha escolha de abandonar a literatura argentina, muito embora saiba que, para o melhor futuro profissional possível, é recomendado ao pesquisador que vá cada vez mais fundo, se não em um mesmo objeto, pelo menos em um único campo de estudo. O ecletismo, no entanto, - creio que isto de imediato me atraiu em Gilberto - sempre me pareceu intelectualmente mais interessante (embora saiba que ser “eclético” nos tempos aristocráticos e ensaísticos de Gilberto, antes da profissionalização do historiador, era uma outra coisa…).

Houve também outro agravante, que menciono a pretexto de antecipar um ponto que planejo expandir nas demais seções deste projeto, especialmente nos itens “delimitação do objeto” e “teoria”, e que refere à importância que dou aos aspectos retóricos, poéticos e/ou literários da ciência histórica; assunto que gostaria de tratar a partir de meu objeto, isto é, Gilberto Freyre, porque também lhe foi importante, mas, ao mesmo tempo, por gosto pessoal, pelo desejo desenvolver tais reflexões teóricas na prática, ou seja, em minha própria historiografia.

Pois o verdadeiro motivo que me fez abandonar de vez o estudo literário foi o cultivo da escrita, que se for pensar em marcos ou origens, diria que remonta aos meus quinze anos, quando ouvia bandas de rock brasileiras - Ludovic, Dance of Days… - e as letras não só me comoviam, como me estimularam a me expressar em versos chorosos, dotados da sinceridade visceral e banal que apenas poetas adolescente ousam ou conseguem escrever. A literatura, contudo, para mim se limitava aos livros de Harry Potter que li quando garoto, os quadrinhos da Turma da Mônica, os gibis de heróis… O mundo da alta cultura conheci propriamente na universidade, e também não lembro porque, mas me atraíram certos cursos que alguns professores - em uma graduação de História!, isso na época me era estranho - ofereciam sobre literatura, e foi por meio destas disciplinas que passei a ler propriamente. 

Novamente, não sei o que me atraiu na literatura, nem o que me fez persistir ao ponto de transformá-la em objeto de estudo. Foi motivado de alguns amigos que passavam da condição de leitor para de escritor que resolvi começar a escrever. Meus amigos todos pararam, mas eu - por enquanto - continuo, mesmo sem obter resultados significativos. Quando terminei a dissertação, já tinha uns anos de estudo e experiência; me pareceu então prudente seguir o exemplo de Ricardo Piglia, que diz ter estudado história, e não letras, para que isso não atrapalhasse em sua formação de escritor. A afirmação era arbitrária, breve, sem qualquer justificativa, mas como considero Piglia um bom escritor, decidi seguir o exemplo, e se fez necessário abandonar o estudo da literatura para que então pudesse escrevê-la.


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