domingo, 11 de junho de 2023

sobre empregar a tripartição kantiana - entendimento, ética, estética - sobre autor, obra, escritura, limites...

Mais por comodidade para nós, os escritores, que não desejamos perder muito tempo em tais pormenores, do que por inspirar qualquer adesão ou programa filosófico, aqui empregamos livremente a tripartição tipicamente kantiana entre entendimento, ética e estética. É muito prático para nossos intuitos de brevidade e legibilidade o emprego de categorias que às vezes parecem muito gastas, mas é justamente por serem tão gastas que se torna tão ligeira a troca que propomos entre o leitor e as palavras aqui escritas. Caberia, no entanto, uma observação: A estrutura de um livro, ou ainda, de um sujeito, soa melhor quando conjugadas no plural, “estruturas”. Nos parece que um único escrito, e/ou mesmo um único corpo, estão tão bem disfarçados pelas máscaras que vez ou outra esquecemos que foram nós mesmos que os vestimos para, sobre o palco do papel, encenarem os papéis de “identidade”, de “continuidade”, de “sistema” e enfim, quantas mais palavras que enfatizem a unidade do objeto ao invés de sua ansiosa dispersão puderem ser pensadas. O que chamamos vagamente de objeto, no entanto, possui limites muito frouxos, e se curta compreensão destinada aos seres humanos temos dificuldade de percebê-la, é talvez o exame de sua história a melhor forma de nos atentarmos como aquele que parece um mesmo é capaz de existir como se fosse um outro. Mudam-se as fantasias, trocam-se as máscaras, mas a metáfora alcança seu limite quando esperamos descobrir o corpo verdadeiro escondido por trás desses ornamentos que nos distraem da verdade. A filosofia seria assim o despojar o mundo das fantasias, mas assim que realiza seu fetiche, e o strip-tease chega ao seu fim, a criatura revelada é ou grotesca demais para ser desejada, ou então, pior ainda, é indiferente, não causa qualquer espanto. Levamos então esse corpo atrofiado e atávico para os laboratórios e arrancamos sua pele, catalogamos seus ossos, damos nomes para sua anatomia… Depois de algum tempo confuso e cabisbaixos, os filósofos voltaram a sorrir. Esse corpo não é o corpo. O nu é somente outra fantasia? Arranquem de uma vez a epiderme pálida e seca e encontrem os verdadeiros segredos! músculos, órgãos, células, hormônios, neurônios, genomas, bactérias, vírus, reações químicas, átomos, elétrons…


As obras e autores são entidades múltiplas e escorregadias; o quão fácil é passarmos de um livro para um outro que o seu autor jamais sonhou em ler! A língua é um fenômeno mais complexo e estranho do que a lógica da influência, da proximidade física e afetiva entre um livro e outro, entre um autor e outro… A língua se espalha de formas estranhas; a escritura habita uma geografia própria. 


Quando falamos da “obra de um autor”, nos situamos dentro de uma geografia do estado-nação; cada autor é soberano de sua própria obra, e se a diplomacia é a forma liberal e legalista que os estudiosos encontraram para abrir a economia desse reino - a diplomacia equivale ao estudo das influências, das trocas intelectuais -, a guerra também é um meio legítimo para esburacar a autonomia do autor-obra -  as tensões e disputas entre os diversos países -. 


A flutuação estranha da escritura é similar à globalização e ao neoliberalismo. Porque as palavras atravessam fronteiras quase sem ser percebidas que são literalmente invasões, assim como mercadorias e empresas adentram países de terceiro mundo como se fosse somente fenômeno econômico, sem implicações políticas.


Enfim: as categorias também se desdobram; a transcendentalidade universal poderia se desdobrar e ramificar em muitas outras.


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