Mais por comodidade para nós, os escritores, que não desejamos perder muito tempo em tais pormenores, do que por inspirar qualquer adesão ou programa filosófico, aqui empregamos livremente a tripartição tipicamente kantiana entre entendimento, ética e estética. É muito prático para nossos intuitos de brevidade e legibilidade o emprego de categorias que às vezes parecem muito gastas, mas é justamente por serem tão gastas que se torna tão ligeira a troca que propomos entre o leitor e as palavras aqui escritas. Caberia, no entanto, uma observação: A estrutura de um livro, ou ainda, de um sujeito, soa melhor quando conjugadas no plural, “estruturas”. Nos parece que um único escrito, e/ou mesmo um único corpo, estão tão bem disfarçados pelas máscaras que vez ou outra esquecemos que foram nós mesmos que os vestimos para, sobre o palco do papel, encenarem os papéis de “identidade”, de “continuidade”, de “sistema” e enfim, quantas mais palavras que enfatizem a unidade do objeto ao invés de sua ansiosa dispersão puderem ser pensadas. O que chamamos vagamente de objeto, no entanto, possui limites muito frouxos, e se curta compreensão destinada aos seres humanos temos dificuldade de percebê-la, é talvez o exame de sua história a melhor forma de nos atentarmos como aquele que parece um mesmo é capaz de existir como se fosse um outro. Mudam-se as fantasias, trocam-se as máscaras, mas a metáfora alcança seu limite quando esperamos descobrir o corpo verdadeiro escondido por trás desses ornamentos que nos distraem da verdade. A filosofia seria assim o despojar o mundo das fantasias, mas assim que realiza seu fetiche, e o strip-tease chega ao seu fim, a criatura revelada é ou grotesca demais para ser desejada, ou então, pior ainda, é indiferente, não causa qualquer espanto. Levamos então esse corpo atrofiado e atávico para os laboratórios e arrancamos sua pele, catalogamos seus ossos, damos nomes para sua anatomia… Depois de algum tempo confuso e cabisbaixos, os filósofos voltaram a sorrir. Esse corpo não é o corpo. O nu é somente outra fantasia? Arranquem de uma vez a epiderme pálida e seca e encontrem os verdadeiros segredos! músculos, órgãos, células, hormônios, neurônios, genomas, bactérias, vírus, reações químicas, átomos, elétrons…
As obras e autores são entidades múltiplas e escorregadias; o quão fácil é passarmos de um livro para um outro que o seu autor jamais sonhou em ler! A língua é um fenômeno mais complexo e estranho do que a lógica da influência, da proximidade física e afetiva entre um livro e outro, entre um autor e outro… A língua se espalha de formas estranhas; a escritura habita uma geografia própria.
Quando falamos da “obra de um autor”, nos situamos dentro de uma geografia do estado-nação; cada autor é soberano de sua própria obra, e se a diplomacia é a forma liberal e legalista que os estudiosos encontraram para abrir a economia desse reino - a diplomacia equivale ao estudo das influências, das trocas intelectuais -, a guerra também é um meio legítimo para esburacar a autonomia do autor-obra - as tensões e disputas entre os diversos países -.
A flutuação estranha da escritura é similar à globalização e ao neoliberalismo. Porque as palavras atravessam fronteiras quase sem ser percebidas que são literalmente invasões, assim como mercadorias e empresas adentram países de terceiro mundo como se fosse somente fenômeno econômico, sem implicações políticas.
Enfim: as categorias também se desdobram; a transcendentalidade universal poderia se desdobrar e ramificar em muitas outras.
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