quarta-feira, 10 de maio de 2023

O ÚTERO COMO TECNOLOGIA DE GUERRA (esboço)

a. PROLEGÔMENOS


Em certa altura d’As palavras e as coisas, em glosa àqueles que fazem “história das ideias ou das ciências”, Foucault afirma que desde antes de Darwin, e mesmo antes de Lamarck,



já se pressentem a grande potência criadora da vida, seu inesgotável poder de transformação, sua plasticidade e esse fluxo no qual ela envolve todas as suas produções, inclusive nós mesmos, num tempo de que ninguém é o senhor. Bem antes de Darwin e bem antes de Lamarck, o grande debate do evolucionismo eteria sido aberto pelo Telliamed, a Palingénesie e o Rêve de D’Alembert.



A citação de Foucault, confesso, está empregada de forma um pouco indevida, mas de forma alguma injustificada. Sentado no banco do réu, diante das testemunhas, justifico o delito cometido. Emprego a citação - que na verdade seria mais uma glosa à historiografia das ideias com que o filósofo não cansou de discordar - como uma espécie de quadro negro, em que esquematicamente sintetizo, ou melhor, ilustro gentilmente ao leitor, aquilo que por nós ficou conhecido como evolucionismo, ou ainda, história natural. O uso, contudo, é indevido, porque logo na sequência Foucault indicará seus limites: é sim uma síntese, mas antes uma síntese que prepara uma crítica, ao demonstrar que aquilo que os historiadores classificavam como sucessão de rupturas, guardavam ainda semelhança com as “ideias” que planejavam romper; e aquilo que os historiadores classificavam como manutenção de continuidades, guardavam diferenças com o que se esperava ser homogêneo.

Esta espécie de aporia, Foucault tentará resolver em obra vindoura, o hermético Arqueologia do saber, livro que, antes de tudo, é uma espécie de exercício de ceticismo: de negar e reduzir ao absurdo aquilo que por costume acreditavam tratar de saber. Ultrapassa, contudo, o ceticismo, e busca formular os fundamentos de seu método: trata-se da recusa de  “remeter o discurso à longínqua presença da origem”, e “tratá-lo no jogo da sua instância”. É o que tentará fazer na sequência da citação que transcrevi, não pensar a história das ideias como um jogo de superação/manutenção de uma origem remota (provavelmente, os gregos), mas inscrevê-lo dentro de uma episteme, esta espécie de linguagem que nos permite pensar, ou melhor, para nos mantermos minimamente fiéis às palavras empregadas pelo autor, traçar o chão em que permite o conhecimento de “aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua heterogeneidade”. Não perderemos mais tempo com Foucault, porém, permitamos ao historiador o doce gesto de uma despedida, que reverbere pela última vez sua voz, que faça um último monólogo, antes de desaparecer para sempre, ou antes de pairar sobre o restante do texto como incômodo fantasma:


Até Aldrovandi, a História  era o tecido inextricável e perfeitamente unitário daquilo que se vê das coisas e de todos os signos que foram elas descobertos ou nelas depositados: fazer a história de uma planta ou de um animal era tantodizer quais são seus elementos ou seus órgãos, quanto as semelhanças que se lhe podem encontrar, as virtudes que lhe atribuem, as lendas e as histórias com que se misturou, os brasões onde figura [...] A história de um ser vivo era esse ser mesmo, no interior de toda a rede semântica que o ligava ao mundo. [...] os signos faziam parte das coisas, ao passo que no século XVII eles se tornam modos de representação. [...] Toda a semântica animal ruiu como uma parte morta e inútil. As palavras que eram entrelaçadas ao animal foram desligadas e subtraídas: e o ser vivo, em sua anatomia, em sua forma, em seus costumes, em seu nascimento e em sua morte, aparece como que nu. A história natural encontra seu lugar nessa distância agora aberta entre as coisas e as palavras.


Curioso notar que, na história pessoal de Franz Boas, seja o homem que abandone a família. Na antropologia, centrada, naturalmente, em outras sociedades, costumam situar a mulher como o objeto de troca que sela a relação e aliança entre as famílias.

É também o padrão que Gilberto Freyre atribui para a formação da família brasileira. Não da família que se tornaria patriarcail, burgueses cuja riqueza possibilitou que encenassem aristocratismo português, inclusive no casamento com a branca; Gilberto refere-se principalmente ao aventureiro, os bandeirantes, os criadores de gados, os pequenos profissionais liberais, enfim, a sociedade que se construiu ao redor da expansão da economia açucareira (a ausência de mulheres europeias, aliadas ao gosto do lusitano, principalmente o menos nobre - estes que Gilberto aponta como o grosso da imigração lusitana: não a aristocracia, mas a precoce burguesia mercante - sentiam pela mulher "exótica", isto é, de fora. Para Gilberto, este gosto lusitano, construído pelo contato frequente pelo contato entre diferentes raças - contato geográfico, contato econômico, contato cultural, contato sexual - teria "predisposto" o português não só ao sexo e relação com as ameríndias, mas também facilitado em seu processo de aterramento, ou ainda, conversão aos costumes locais.

O etnógrafo, pelo menos se levarmos em conta a forma com que Tristes Tópicos deseja espelhar-se na viagem de Jean de Léry ao Brasil, parece sentir espécie de nostalgia deste homem aventureiro, que Jean de Léry talvez personifique com enorme dignidade, mas cuja massa deve ser antes lembrada enquanto desterrada por necessidades econômicas. É isto, pelo menos, que Gilberto sugere sobre o início da colonização do Brasil: os enormes lucros dos engenhos começou a atrair uma variedade de imigrantes, não apenas portugueses, mas foram estes que mantiveram controle e monopólio da região. Uma das vantagens que os portugueses tiveram contra os holandeses, sugere Gilberto, foi a melhor integração com os povos não-europeus (e isto, no caso, referia-se também aos africanos, já exportados como escravos para que atendessem a demanda açucareira).

É atribuído pioneirismo para a teoria antropológica de Lévy-Strauss, cujos ilustres estudos estabeleceram o casamento como fronteira entre natureza e cultura (ou ainda, entre animalidade e humanidade).

O casamento, pois, representaria o poder do ser humano de transformar um produto da história natural, um órgão, o útero, o aparelho reprodutor da espécie em uma tecnologia que ultrapassaria além de sua função natural de, segundo as leis da natureza, reproduzir a espécie.

Por meio de seus estudos sobre parentesco, sobre as variadas formas com que se trocavam filhas entre as mais variadas famílias.

A quantidade de árvores genealógicas que Lévi-Strauss empregou em sua pesquisa é impressionante. O antropólogo deve ter de fato gastado muito tempo - não para encontrar a lei, o princípio subjacente a todos os casos, o tabu do incesto, já que o incesto já era um tema de estudo entre os antropólogos - mas quando Lévi-Strauss compreendeu que a família não uma definição positiva - a filiação biológica pai - mãe - filho -.

O grande achado teórico de Lévi-Strauss foi transformar a família como laço biológico em um conceito negativo, não-biológico: explicado não pela descendência biológica simplesmente, mas por um princípio que parecia universal, embora funcionasse de maneiras um tanto variada, dependendo do lugar e espaço, e enfim, da cultura em questão: o tabu do incesto.

É da sua família não sua mãe e pai simplesmente por serem seus progenitores, mas sim aquele quem está marcado pela interdição do incesto, a quem você não pode se casar, talvez nem se relacionar sexualmente... A moral vitoriana de Freud, pelo menos, demonstrou pelo mito de Édipo que o incesto possui consequências desagradáveis...

Não sei quanto tempo Lévi-Strauss demorou-se para deparar com o princípio universal do incesto, e nem para compreender que assim se fundamentava a separação entre quem era e quem não era da família, e que o casamento representava a aliança entre duas partes distintas... O certo é que em seu estudo sobre as relações de parentesco, de 1949, dedica o livro à memória de Lewis W. Morgan, antropólogo americano importante, que já havia desenvolvido importantes estudos sobre as relações de parentesco e os arranjos familiares, muito embora, e isto talvez explique o desprestígio em que caiu sua obra, a lei que procurava era uma que explicasse a sucessão de diferentes arranjos familiares na história - enfim, um antropólogo evolucionista -.

Os estudos de Lévy-Strauss tendem a ser sincrônicos - e com isto não desejo retomar a patética discussão com a diacronia, que simplesmente busca pensar a transformação da estrutura sincrônica em outra - mas sim que tomam seus objetos de estudos, as culturas primitivas, arcaicas, a partir de certo a priori quase a-histórico - ou, melhor dizendo, predica-lhes um desenvolvimento lento, ou pelo menos, mais devagar de transformação.

Não possuo grande desenvoltura para discutir um assunto tão amplo como o conceito de história em Lévy-Strauss e em sociedades primitivas, confosso. O que me parece certo é que poucas vezes seus trabalhos trabalharam com o problema do conflito. O próprio fundamento do casamento, afinal, é a aliança. Uma política como conciliação. Se pensarmos no aspecto funcionalista, que feito fantasma ronda a antropologia durkheimiana, de quem Lévy-Strauss era espécie de herdeiro, o casamento poderia mesmo ser fundamento da própria sociedade, de sua coesão e permanência; a aliança que separaria o ser humano do mítico estado de natureza: a de Hobbes, mas também a de Darwin: a guerra de contra todos.

Gilberto Freyre enxerga com bastante clareza a importância da família dentro da política - para uma política da guerra, seja a mais breve, como a contra os holandeses ou franceses, seja a guerra verdadeiramente longa travada nos tempos colônias, contra os indígenas.

Gilberto Freyre deixa muito claro que a principal arma empregada contra o indígena brasileiro - além da força-bruta, evidente - foi a reprodução biológica, que no caso não implicava na familiarização do pai à família da mãe: as relações de violência, que evidentemente se deram, também eram acompanhadas de outro fator: a fixação do homem à família das mulheres.

O aspecto aventureiro, nômade, a que se atribui a vida dos bandeirantes, e associado aos filhos sem pais, em Gilberto destaca-se como tais meninos eram "adotados" pela Igreja, e que cada padre jesuíta tinha verdadeiro filhinhos: curumins que apadrinhavam, ensinavam os preceitos do catolicismo, e claro, também lhe serviam como tradutores, meio de relação, com o restante da tribo.

O nomadismo das bandeiras em Gilberto Freyre costuma se colocar em oposição aos senhores de engenho: assentavam-se em um mesmo lugar, até porque seu sustento era a cana e o engenho - exige-se o sedentarismo - e junto do sedentarismo associado ao meio de produção, o reforço dos laços de família, aliança e, importante ressaltar, proteção: da natureza hostil, dos indígenas perigosos, e mesmo do rigor jesuíta: dentro da geografia que os engenhos começavam a desenhar a partir do latifúndio de açúcar e a exploração da força escrava, o poder não estava de fato no Del-Rey, nem na Igreja, mas centralizada da casa-grande, que além de detentores dos meios de produção, estavam a um continente de distância da burocracia estatal e episcopal (a local estava, explica Freyre, dentro do controle da casa-grande).

O sucesso da colonização brasileira da América, explica Gilberto em última instância, se deve à precoce burguesia portuguesa, por sua mistura racial, lusitana, semita e moura, já habituados ao contato com o outro seja pela proximidade geográfica seja pela necessidade mercantil. Acrescento um argumento ao de Gilberto: se não eram aristocratas, não precisavam casar-se por conta de sangue. Eram burgueses, mercadores: suas alianças eram feitas, imagino, tendo em vista os negócios.

Euclides da Cunha, em Os sertões, escreveu o seguinte sobre a "força motriz da história": "Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. e durante o curso desse processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem feições definidas, sem vigor, e as mais vezes inviáveis, nada mais são, em última análise, do que os mutilados inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades". (p. 86)

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