sexta-feira, 5 de maio de 2023

prolegômenos a lugar nenhum: sobre foucault, descartes e a escrita como ensaio do pensar

 

  1. AINDA PROLEGÔMENOS


Me referi a este texto como “ensaio”, e o leitor de primeira viagem, se não foi avisado, faço-lhe a cortesia de explicar que é um gênero que atrasa seu objeto, que anda em zig-zag, e não em linha reta. Talvez as demasiadas curvas, ao leitor mais sensível, cause espécie de vertigem, e francamente lhe autorizo que vomite: em palavras, gritos, gestos, que cuspa de volta o alimento triturado pelo estômago, mas que aja de modo que lhe pareça mais adequado. O ensaio, afinal, em distinção do desapaixonado artigo científico, autoriza e até mesmo exige o gozo, a paixão, e por isto o seu autor corre algum perigo de que alguma sujeira nele respingue.

Agora, com os leitores incautos devidamente avisados, continuemos então o tortuoso caminho do ensaio.

Os leitores d’A Arqueologia do saber talvez lembrem da introdução do livro, em que Foucault, o autor tratará com desgosto de dois grandes campos do conhecimento, que no século XX pareciam estar em choque: a historiografia e o estruturalismo, a diacronia e a sincronia, o devir e permanência.

Para Foucault, contudo, seu intuito não era encontrar a síntese destas duas tendências, que feito alquimistas em busca da pedra filosofal, tantos intelectuais procuravam: dar história à estrutura ou dar estrutura à história. 

Como juntar sincronia à diacronia? Não era esta a pergunta que Foucault procurava responder em suas obras, mas como quem baixa os olhos, como quem se envergonha pelos pecados cometidos, confessa ao leitor: "entristece-me o fato de que eu não tenha sido capaz de evitar esses perigos”. 

Assim como os padres, não condenamos Foucault; era, afinal, a geografia em que estava posto a pensar. Os limites de seu pensar, os lugares em que seu discurso se nutriu e organizou.


***





 

Não pelo ceticismo, que ambos esgrima contra as escolas de pensamento que renavam em cada respectivo tempo; nem somente pelo aspecto ensaístico, que embora diverso, ambos compartilham. 

Evidente que surgem diferenças incontornáveis entre as duas obras. Cito uma única, na esperança dela ilustrar a presença de inúmeras: O biografismo do Discurso é justificado em seu princípio, não como exercício ocioso, de aristocrata a se divertir por sua vasta biblioteca, mas para que seu autobiografismo ganhe algum relevo, para que seja leitura séria, e não mero divertimento, espera que os episódios de sua vida, narrados com franqueza, servirão humildemente de exemplo, seja para ilustrar as virtudes, seja para demonstrar os vícios: 


não proponho êste escrito senão como uma história ou, se o preferires, como uma fábula na qual, entre outros exemplos que podem ser imitados, se encontrarão também vários outros que haverá razão em não seguir, espero que êle seja útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos apreciarão a minha franqueza.


Foucault, será óbvio dizer, mas tratarei de dizer, mesmo que seja óbvio, era habitante de um mundo muito diverso de Descartes, e muito mais próximo do nosso, em que a escrita antes de se referir à utilidade ou instrução, já se justifica simplesmente por sua autoria, e é lida como espelho de sua vida e formação, e no caso dos filósofos, como parte do espírito em que cuja obra foi arquitetada.

O filósofo e historiador Michel Foucault, contudo, escarneceu - pelo menos durante um bom tempo - de nossas objeções com a subjetividade e com a autoria, e em sua Arqueologia, livro que parecia ou fingia guardar a metodologia de seus pretéritos trabalhos, escreve o seguinte, em resposta a um crítico imaginário:



Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse - com as mãos um pouco febris - o labirinto de me aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhes subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu não terei mais que encontrar? Vários, como eu, sem dúvida escrevem para não ter mais um rosto.Vários, como eu, sem dúvida escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever. 


Em Respiração Artificial, o fictício filósofo Tardewski, em suas aulas de filosofia feitas em botequins, explica ao ouvinte Emilio Renzi que o Discurso do método não narra a história de uma paixão: trata-se de da história de uma ideia. Esta é a peculiaridade que desejo acentuar entre os escritos de Descartes e Foucault: a dramatização do pensamento. 

“Estava na Alemanha, [...] e não tendo [...] por felicidade, cuidados ou paixões que me preocupassem, ficava fechado durante todo o dia em um quarto bem aquecido, onde tinha todo o vagar para ocupar-me com os meus pensamentos”, descreve Descartes, antes de principiar seu Discurso do método. O mesmo


, ensaiar, encontrar, dar forma por meio de palavras, este misterioso saber - distinto do estruturalismo, distinto da história, e que chamará enigmaticamente de arqueologia - que ele parece esboçar desde História da loucura, mas que permanece incapaz não apenas de descrever, mas também de executar com perfeição, e assim desconjurar o fantasma do estruturalismo, da historiografia das ideias, que pairava não somente sobre ele, mas cuja episteme ditava os limites e possibilidades de toda uma época pensar. 


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