quinta-feira, 27 de abril de 2023

trechos mortos 2

 

e retiram um pouco do que ocorre em privado para fazer com que apareçam em público, em páginas de livros e jornais. Um afeto que, como já me referi por meio do texto, não se esgota na pessoa, mas em tudo que lhe cerca, que vista desde esta perspectiva personalista, parece fazer de tudo que lhe cerca forma de extensão de sua alma. É impressionante, neste artigo de Oliveira Lima, a sessão entra a página 75 e 80 em que Gilberto dedica-se, com muita atenção, à descrição da casa de Oliveira Lima. Meu desejo seria lê-la por inteiro, para indicar a monotonia própria destes gêneros de catálogos, mas me limitarei a me referir que enumera cada retrato e o respectivo retratado, cada paisagem e o respectivo lugar, os bustos e seus representados, os diferentes objetos e sua ressonância histórica, bandeiras, retalhos de tetos de igreja, mapas, autógrafos de grandes homens, lanças, e também - a rúbrica é do descritor - “as fotografias aqui são mais íntimas”, os retratos de amigos e familiares, 

O perfil que faz de Oliveira Lima - a quem trata com a reverência de um mestre, poderia ser melhor esmiuçada, já que Gilberto também parece dele ter herdado considerável capital simbólico, mas precisarei indicar por aqui, indicando somente que o perfil de Oliveira Lima, trata-se da monumentalização de um homem de letras, da produção letrada no Brasil, como já sugeriu Ângela de Castro Gomes em importante estudo, mas que além de ser uma consagração por meio do olhar subjetivo, da intimidade, é também consagração da amizade, da relação que estes dois homens de letras tiveram. E que não somente o texto torna-se extensão e memória da personalidade homenageada, mas todo o mundo ao seu redor, que Freyre submete a verdadeiro processo de museificação por meio da escritura.

Gostaria de terminar esta fala esboçando algumas conclusões, que mais que concluir, abrem alguns caminhos de continuidades para novas reflexões.

Se formos nos referir ao conceito de cordialidade, que remonta a obra de Sérgio Buarque, facilmente somos devolvidos à escritura freyreana. No tópico relativo à importância do ensino superior, por exemplo, ambas convergem em situar as faculdades como instâncias de desterritorialização das relações familiares típicas. 

Em Casa-Grande & Senzala, a seguinte passagem me parece exemplar, por colocar em choque os antigos valores patriarcais com os novos desejos adquiridos pelos rapazes, a partir do contato com as universidades:


Pobres “meninos travessos” do tempo dos filhos chamarem ao pai de “Senhor Pai”, era deles que o padre Gama sentia falta, escandalizado com os meninos e os rapazes da nova geração: desavergonhados que conheciam melhor as quadrilhas que o padre-nosso; viciados no charuto Havana e na cachucha; leitores de ”pestilenciaes Novelas” e de “Poesias eróticas”, em vez dos “Evangelhos”, das “Epistolas de São Paulo”, e para “para recreio, os Contos Moraes de Marmontel, o virtuoso Telemaco, a Moral em Acção, a Escola de Bons Costumes, a Mestra Bona”, que eram os livros indicados pelo padre para a leitura da mocidade. Rapazes falando alto e dando opiniões sobre todas as coisas na presença dos mais velhos, em vez de se comportarem com respeito de outrora, pelos Pais, pelos Avós, pelos Tios. Nas festas de família, sem que ninguém lhes perguntasse, já os mais salientes davam “o seu voto magistral a respeito da bondade, ou imperfeição do chá”, “applaudindo este pão de ló, reprovando aquele sequilho”; durante a Missa, namoravam o tempo inteiro, dando as costas ao Santíssimo Sacramento para olharem as meninas de frente, “rindo-se para esta, contemplando aquella, galanteando auquel’outra… torcendo o bigóde… penteando com os dedos o furibundo passa piolho”; e quase já não tomavam a benção aos pais!


E em Raízes do Brasil, como se trata-se de uma síntese, lemos o seguinte:


[Ao ingressar nas universidades, os estudantes deveriam] ajustar-se, nesses casos, a novas situações e a novas relações sociais que importavam na necessidade de uma revisão, por vezes radical, dos interesses, atividades, valores, sentimentos, atitudes e crenças adquiridos no convívio da família.  


Em Casa-Grande & Senzala, os meios de produção - o latifúndio, o engenho, a mão-de-obra escrava - possui estreita relação com a produção de uma moral, de uma cultura, ou ainda, para nos situarmos na linguagem freudiana à respeito do aspecto familiar, poderíamos nos referir à produção do desejo. Se as transformações associadas ao fim de um regime patriarcal e gradual inserção do Brasil em uma lógica capitalista global deve ser pensado não só economicamente, mas também a partir de uma série de transformações nesses diversos níveis - culturais, morais, desejantes, etc - esta transformação, além de gradual, deveria levar em conta, para empregarmos uma palavra-chave na obra de Gilberto, uma espécie de tentativa de acomodação dos antigos valores dentro dos novos meios a eles impostos.

Mesmo com a disseminação das práticas letras e o crescente projeto de escrituração do mundo a ela associado, parece-me prudente pensarmos nos usos que essas escrituras mantinham não apenas em nível ideológico - como expressão de uma aristocracia decadente, por exemplo - mas dentro de práticas concretas e sociais a que se destinam estas escrituras, em seu momento de fabricação e uso. A elaboração de textos como os de gênero retrato ou perfil, por exemplo, para além de tratar-se de um projeto de monumentalizar ideologicamente valores das classes dominantes - ou antigas classes dominantes, agora detentoras mais de poderio simbólico do que dos meios de produção propriamente ditos - associam-se também a um outro modo de vida, referem-se a uma outra cultura. 

No caso, pelo menos em relação à geração de Freyre e outros, me parece necessário manter em vista que a produção e circulação do saber passa de maneira estreita pelas relações interpessoais que compõem o restrito mundo de tais intelectuais - não apenas pela questão referida pela sociologia como “herança de capital simbólico e cultural” que as aproximações intelectuais implicam, mas também reconhecer que uma série de textos, primeiro, estão escritos com propósitos afetivos, como se fosse, no limite, extensão da relação de amizade - ou inimizade - que existe entre as partes, mas também, e isso também considero importante, não fazer disso - o afeto, a paixão - espécie de impeditivo para o estudo destes documentos desde a perspectiva de uma história do conhecimento.

Há muito o que se pensar à respeito do aspecto erótico do conhecimento. A história do saber, afinal, é tipicamente representada a partir de uma lógica fria, como se os conceitos, as formas, as idéias, as teorias, as palavras, pensem no nome que quiserem, como se tudo circulasse simplesmente a partir do branco celibatário do papel. 

A tagarelice ruidosa dos sentidos substituída pela gossip privada da consciência, eis o sentido da história?

Pensemos, talvez, em fazer o movimento contrário: se a cordialidade corresponde ao desejo pelo outro, pelnestas relações a-familiares, que encontrasse o desejo onde parece não haver nenhum: que acrescentasse ao idílico céu platônico a sujeira da lama, e fizesse a produção do conhecimento participar da produção dos excrementos: do corpo, do dinheiro, do amor: enfim, a materialidade.



de u - que consiste em desenvolver a escritura fundada na observação - da natureza, dos costumes, etc - na direção daquilo que se caracteriza como “menor”, “sem importância”: como a mobília, a indumentária, a jardinagem, os livros da moda, etc. É, portanto, uma espécie de fusão entre intimidade e a observação, entre o afeto e o objeto, que emprega-se - especialmente por meio de retratos, perfis e testemunhos, gêneros que Gilberto foi pródigo redator - para escriturar, a partir da visão íntima, pessoal, enfim, para empregarmos o termo caro à nossa historiografia, uma escrituração feita a partir do lugar da cordialidade



  1. O DIÁRIO DE VIAGENS E A OBJETIVIDADE


  Nos programas imaginados no intuito de produzir uma literatura autenticamente brasileira, muito importante foi, pelo menos de início, a atenção dada à produção daquilo que a retórica clássica se refere como enargeia, palavra que se referia à clareza produzidas por técnicas descritivas, que pudessem transpor em palavras aquilo que os sentidos percebia.

Poderíamos rastrear a origem desta escritura já nas primeiras cartas e relatos de viagens, que para descrever o novo mundo, desenvolveram tecnologias escriturárias capazes de dar conta da diversidade e estranheza que por aqui encontraram. Dentro do programa romântico, por exemplo, é notável o desenvolvimento e cultivo de uma tecnologia escritural destinada à pintura - emprego o termo pintura pelo claro privilégio da representação do olhar perante os demais sentidos  - da natureza tropical. 

Me refiro ao cultivo de uma tecnologia escritural pictórica pois, embora a partir desta matriz construam-se diferenças línguas, diferentes sistemas de significantes, mantêm-se em nossa literatura em prosa, pelo menos até o século XX, verdadeira tradição pictórica. O que se chama de realismo ou naturalismo, por mais que se nomeie a partir da diferença em relação à literatura romântica, continuou a desenvolver esta escritura pictórica, muito embora trata-se de fazê-la em outra língua. Não é possível outra coisa senão somente executar um esboço do que me refiro, mas se o desenvolvimento do realismo e naturalismo se caracteriza especialmente pela representação do feio ou grotesco - e para falar como Auerbach, pelo fim da adequação clássica entre tema e estilo - mesmo que pelo desenvolvimento de novas línguas, irá se manter o interesse descritivo, que por nós até hoje é reconhecido pelo nome de cor local.

A cor local, muitas vezes referida pejorativamente, como espécie de ideologia literária, contudo pode ser pensada como parte de uma tecnologia escritural, cultivada secularmente dentro de nossa tradição de escritores, e que em sua variedade, implica no desenvolvimento de línguas que se constituem a partir de classificações de entidades concretas - isto é, que existem no espaço -. 

Me refiro a entidades concretas pois é meu intuito distinguir, pelo menos por agora, em caráter experimental, uma escritura da alma, isto é, línguas capazes de tratar os movimentos do pensamento, das paixões, realidades imperceptíveis para os sentidos, uma escritura psicológica, de uma outra, que desenvolve-se a partir da produção da espacialidade, e mais do que espaço, que produzem uma espécie de efeito de presença física. 

Ao fim e ao cabo, não faço outra distinção que não a esboçada no princípio do ensaio entre o diário íntimo e o diário de viagens. E como disse, ambos são importantes dentro da obra de Freyre, que se estava na “vida” pulsante das escrituras da alma, era também - isso é incontestável - um mestre na arte do olhar. 

Se afirmei existirem diferentes línguas, diferentes sistemas de significantes que buscam grafar a observação, é porque poderíamos começar a pensar em uma espécie de história da escritura do olhar. Mas o que me interessa perguntar agora é o seguinte: Como afinal olhou Gilberto Freyre?



Se nomeado assim, no singular, é para em seguida querer decompô-la em pelo menos duas matrizes distintas: uma que consigo rastrear a partir do diário íntimo, e que o próprio autor associa a uma matriz de língua inglesa e a uma cultura protestante. A outra, escritura, disseminada desde uma matriz lusófona, estaria associada ao diário de viagens. 

Assim, estaria construindo, a partir da escritura autobiográfica do diário, dois registros distintos, duas linguagens que buscam dar conta de diferentes objetos: o diário íntimo, cujos objetos de representação básicos poderíamos resumir como (1) a vida cotidiana, (2) a subjetividade do autor e (3) portanto escritura das ideias e paixões que atravessem essa subjetividade.

Em contraste, estipulo uma própria do diário de viagens, interessada sobretudo narepresentação do (1) pitoresco, e com isto me refiro ao extraordinário, o exótico, aquilo que destoa da vida doméstica, (2) do mundo exterior, daquilo que se percebe como merecedor de atenção dos sentidos e (3) se o diário íntimo repousa sobre os movimentos subjetivos, de uma consciência ou inconsciência, o diário de viagens, ao contrário, funda-se na produção da objetividade, de línguas capazes de distingui-los com clareza.

Evidente que trato de tipos ideais ou algo semelhante, e que, na realidade do texto - inclusive no do próprio Gilberto - o registro se torna muito mais polifônico. Os dois diários que Gilberto escreveu - Aventura e Rotina, de 1953, e Tempo morto e outros tempos, de 1975 -, ocorre evidente mistura destes dois “gêneros”, mas me parece razoável, especialmente para propósitos metodológicos, esboçar esta distinção entre diário de viagem, calcado na observação e na escrituração dos sentidos, e do diário íntimo, em que se escritura a subjetividade do autor.

Tratarei de cada um deles com alguma atenção, sem esquecer que o propósito final deste ensaio não é examinar esta dupla escritura que atravessa a obra de Freyre, mas sim esboçar uma espécie de sociologia, em que tentarei demonstrar como estas duas escrituras, embora concorrentes,


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