Sérgio Buarque, O homem cordial. Companhia das Letras, 2012.
O HOMEM CORDIAL.
Trecho extraído de Raízes do Brasil (ed. original 1936). São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
"Nas velhas corporações o mestre e seus aprendizes e jornaleiros formavam como uma só família, cujos membros se sujeitam a uma hierarquia natural, mas que partilham das mesmas privações e confortos. Foi o moderno sistema industrial que, separando os empregadores e empregados nos processos de manufatuta e diferenciando cada vez mais suas funções, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou os antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fácil, além disso, ao capitalista explorar o trabalho de seus empregados, a troco de salários ínfimos".
[estamos nos rastros da escritura freyreana: a intimidade da família patriarcal desterritorializada a partir da segunda escravidão, das necessidades do novo arranjo capitalista]
Para o empregador moderno — assinala um sociólogo
norte-americano — o empregado transforma-se em um
simples número: a relação humana desapareceu.
p. 46.
abolição da velha ordem
familiar por outra, em que as instituições e as relações
sociais, fundadas em princípios abstratos, tendem a
substituir-se aos laços de afeto e de sangue. [...] essas mesmas tendem a desaparecer ante as exigências
imperativas das novas condições de vida.
p. 47.
E se bem considerarmos as teorias modernas, veremos que elas tendem, cada vez mais, a separar o indivíduo da comunidade doméstica, a libertá-lo, por assim dizer, das “virtudes” familiares.
p. 47 - 48.
Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de família — e principalmente
onde predomina a família de tipo patriarcal — tende a
ser precária e a lutar contra fortes restrições à formação
e evolução da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é,
assim, especialmente sensível no nosso tempo devido ao
decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam
no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre
os cidadãos.
p. 48 - 49.
limitações que os vínculos familiares demasiado estreitos, e não raro opressivos, podem
impor à vida ulterior dos indivíduos.
meios de se corrigirem os inconvenientes que muitas vezes acarretam certos padrões de conduta impostos desde cedo pelo círculo doméstico.
E não haveria grande exagero em dizer-se que, se os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos, fundados desde 1827 em São Paulo e Olinda, contribuíram largamente para a formação de homens públicos capazes, devemo-lo às possibilidades que, com isso, adquiriam numerosos adolescentes arrancados aos seus meios provinciais e rurais de “viver por si”, libertando-se progressivamente dos velhos laços caseiros, quase tanto como aos conhecimentos que ministravam as faculdades.
[Ao ingressar nas universidades, os estudantes deveriam] ajustar-se, nesses casos, a novas situações e a novas relações sociais que importavam na necessidade de uma revisão, por vezes radical, dos interesses, atividades, valores, sentimentos, atitudes e crenças adquiridos no convívio da família.
“filhos aterrados”
p. 49
Nem sempre, é certo, as novas experiências bastavam para apagar neles o vinco doméstico, a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão oposto às exigências de uma sociedade de homens livres e de inclinação cada vez mais igualitária. Por isso mesmo Joaquim Nabuco pôde dizer que, “em nossa política e em nossa sociedade [...), são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam”.?
p. 49 - 50.
[filhos aterrados X órfãos, abandonados]
Aos que, com razão de seu ponto de vista, condenam por motivos parecidos os âmbitos familiares excessivamente estreitos e exigentes, isto é, aos que os condenam por circunscreverem demasiado os horizontes da criança . dentro da paisagem doméstica, pode ser respondido que, em rigor, só hoje tais ambientes chegam a constituir, muitas vezes, verdadeiras escolas de inadaptados e até de psicopatas. Em outras épocas, tudo contribuía para a maior harmonia e maior coincidência entre as virtudes que se formam e se exigem no recesso do lar e as que asseguram a prosperidade social e a ordem entre os cidadãos.
[fim da sociedade patriarcal e início da sociedade liberal - falo em sociedade liberal pois desconfio que em Raízes do Brasil, isto que se refere como "sociedade moderna", em contraste com o "patriarcalismo arcaico", não se trata de uma passagem para uma sociedade de classes, conforme a tradição marxista irá desenvolver, mas sim, pelo que parece, de uma sociedade de livre concorrência]
p, 50
Não está muito distante o tempo em que o dr. Johnson fazia ante o seu biógrafo a apologia crua dos castigos corporais para os educandos e recomendava a vara para “o terror geral de todos”. Parecia-lhe preferível esse recurso a que se dissesse, por exemplo, ao aluno: “Se fizeres isto ou aquilo, serás mais estimado do que teu irmão ou tua irmã”. Porque, segundo dizia a Boswell, a vara tem um efeito que termina em si, ao passo que se forem incentivadas as emulações e as comparações de superioridade, lançar-se-ão, com isso, as bases de um mal permanente, fazendo com que irmãos e irmãs se detestem uns aos outros.
[transcrevo este trecho pelo pitoresco, principalmente, mas também é sociologicamente sugestivo, se pensarmos que, dentro de uma sociedade em que os meios de produção estão diretamente relacionado à família, à descendência patriarcal, édipo deve ser preservado de todas as maneiras, isto é, os conflitos entre familiares são extremamente trágicos pois desarranjam todo um sistema social - ou, como o próprio S. B. refere-se no parágrafo seguinte: "ia acarretar um desequilíbrio social"]
p. 50 - 51
[funcionalismo patrimonial x funcionalismo burocrático - confiança/afeto - competência/razão]
A escolha dos homens que irão exercer funções públicas [no funcionalismo patrimonial] faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático quanto mais caracterizados estejam os dois tipos.
p. 51
[No Brasil] foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos dá supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar — a esfera, por excelência, dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração [a intimidade] — está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.
[estamos atravessando a escritura freyreana, mas tornando negativo aquilo que em freyre é positivo - recomendo (a mim mesmo) a leitura de ensaios que saíram em Tentativas de mitologia, "Cultura e Política", em que se refere a Oliveira Viana e sua justificativa do fascismo enquanto mais adequado à cultura brasileira; e também "Sociedade Patriarcal", em que irá caracterizar a nostalgia patriarcal de Freyre - que os marxistas atribuem a sua origem de classe - e questionar a cientificidade de seu trabalho]
p. 52
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” é a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal.
[as características que hoje são as mais valorizada em trabalhadores de serviço e atendimento ao público, diga-se de passagem]
p. 52
Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças.
[Sérgio Buarque: ANTI-BRASILEIRO!!!!!!! levem ele para a forca, contrariou o geist des volk, safado]
[polidez X cordialidade; aparência X espontaneidade; protocolo X paixão]
Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência — e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções.
padronização das formas exteriores da cordialidade
máscara
[separação entre espaço público e espaço privado, entre eu público e eu privado]
[a vida moderna, das grandes cidades, exige ao indivíduo essa defesa epidérmica, psíquica, da polidez?]
[a cordialidade brasileira já teria se convertido em polidez?]
No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência.
Ela é antes um viver nos outros.
[a necessidade do laço familiar; a necessidade de afeto, do viver no outro e pelo outro; a necessidade de comunidade X a vida independente e individual; a autonomia afetiva; a comunidade substituída pela burocracia, pela instituições]
p. 53
[cordialidade:] desejo de estabelecer intimidade
p. 54
ética de fundo emotivo
para conquistar um freguês tinha necessidade de fazer dele um amigo.!
p. 55
horror às distâncias que parece constituir, ao menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro.
p. 56
A uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade; transigente, por isso mesmo que pronta a acordos, ninguém pediria, certamente, que se elevasse a produzir qualquer moral social poderosa. Religiosidade que se perdia e se confundia num mundo sem forma e que, por isso mesmo, não tinha forças para lhe impor sua ordem. Assim, nenhuma elaboração política seria possível senão fora dela, fora de um culto que só apelava para os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade.
[dificuldade de "produzir qualquer moral social poderosa"; ver o histórico de edições de Raízes do Brasil; ver o já mencionado ensaio sobre Oliveira Viana]
pouca devoção dos brasileiros
p. 57
muito pouco se poderia esperar de uma devoção que, como essa, quer ser continuamente sazonada por condimentos fortes e que, para ferir as almas, há de ferir primeiramente os olhos e os ouvidos.
[razão X sentidos]
“Em meio do ruído e da mixórdia, da jovialidade e da ostentação que caracterizam todas essas celebrações gloriosas, pomposas, esplendorosas”, nota o pastor Kidder, “quem deseje encontrar, já não digo estímulo, mas ao menos lugar para um culto mais espiritual, precisará ser singularmente fervoroso.”
formas mais rigoristas de culto.
[influência do protestantismo; curiosamente, quando jovem, Freyre recebeu educação protestante, estudou em colégio inglês, mas segundo narra em seu diário de adolescência, quando nos Estados Unidos se desencantou com a fé protestante]
p. 58
Em particular a nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta “terra remissa e algo melancólica”, de que falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no fundo, o ritualismo não nos é necessário. Normalmente nossa reação ao meio em que vivemos não é uma reação de defesa. A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. Ele é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades
[conclusão absolutamente freyreana, em consonância com a "plasticidade do caráter português"]
Nenhum comentário:
Postar um comentário