A imaginação sobre a produção do conhecimento costuma ser repleta de imagens fria e positivistas: É Descartes sentado diante de sua lareira pensando até enfim compreender; é Newton distraído quando despenca uma maçã em sua cabeça e assim desvenda a lei da gravidade; é uma enorme rede de pesquisadores cujos pares imparcialmente revisam papers e livros e a partir deste acúmulo acéfalo enriquecem o patrimônio universal do saber. Ao mesmo tempo, é um tanto óbvio sinalizar que a produção do conhecimento ocorre dentro de um mundo social em que, das maneiras mais diversas, seus produtores são atravessados por afetos e desejos que pouco, imagina-se geralmente, tem a ver com o conhecimento produzido. Porque mesmo que se reconheça que a produção do saber é um fenômeno social, geralmente sua representação ocorresse em um espaço separado, em que o pensamento, por algum milagre, livra-se da lógica do desejo e consegue desenvolver-se celibatário: livre de paixões e afetos. “Como contar uma história?” Vez ou outra nos esquecemos, mas esta é uma das perguntas importantes para o trabalho dos historiadores. Nós, que pesquisamos a chamada “história dos intelectuais”, que nos debruçamos sobre os escritos de historiadores, artistas, filósofos, e toda essa gama de ofícios que, depois de chamados de autores, tornam-se proprietários de uma obra, e dos conceitos, teorias, poéticas e demais aspectos a ela associados. Comecei meus estudos pela literatura, e desde sempre houve a advertência para não tomarmos o literário como simples reflexo do social ou da personalidade; que também era necessário pensá-la como objeto autônomo, dentro de uma história própria, e Valery, em certa passagem que guardo na memória, ambicionou uma história da literatura capaz de prescindir de nomes, que fosse apenas a anônima história do espírito, das transformações sucessivas e autônomas da linguagem. As ciências sociais, contudo, geralmente nos derrubam deste céu estrelado em que as ideias narram-se sozinhas, como se não precisassem de corpos para existir. E então, a nós, filólogos e estetas, impõe o desafio de pensar a história do pensamento como outra coisa fora essa metamorfose da ideia, de forma em forma, até atingir a configuração presente. Dar as ideias um corpo e origem, contudo, muitas vezes não resolve o problema: porque sabemos que trata-se de uma história ocorrida geralmente nos deparamos com o problema da representação quando, a partir do campo que se referem como “história social”, nos censuram por muitas vezes escrever uma história filológica, em que as ideias e formas parecem correr e transformar-se livremente; ou, então, talvez risco pior, recair nas malhas da velha histoire événementielle, e narrar a história da arte ou do pensamento como se fosse a dos grandes nomes. Meu ensaio deseja abranger três assuntos diferentes, ao tocar no conceito de cordialidade: Primeiro, gostaria de demonstrar como a vida privada, as relações inter-pessoais dos intelectuais, e, portanto, a produção do conhecimento, era objeto de representação, e que existiam diversos gêneros foram empregados para a monumentalização daquilo que - a princípio - referia-se ao espaço privado da produção do saber, como o perfil, as memórias, o diário, as correspondência, etc. Segundo, a partir do exame de certos escritos de Gilberto Freyre, Hoje a produção do saber - refiro-me especialmente às universidades - é consideravelmente orientada por sua objetividade e profissionalização. As relações inter-pessoais que atravessam essa produção, embora todos saibamos existir, parece que foram, de certa forma, eclipsadas para dentro de uma zona de intimidade, que poderíamos referir simplesmente como um espaço privado. Penso nos historiadores do futuro, interessados em estudar, a partir desta perspectiva libidinal, Neste ensaio gostaria de fazer algumas reflexões a partir do conceito de cordialidade, não por meio de qualquer tentativa de definição ou mesmo qualquer fidelidade aos modos de uso com que foi historicamente empregado ao longo de nossa historiografia. Meu exame sobre a cordialidade deseja abranger dois aspectos distintos: o primeiro, situado, digamos, dentro de um campo de estudos que me é mais confortável, pois oriundo de um exame da escritura, em que busco identificar ao longo da história uma espécie de escrituração das paixões dentro do espaço que destina-se à produção do saber. Falando de forma direta, gostaria de mapear com Para quem não sabe, meu primeiro objeto de estudos era um daqueles classificados como “literário”. Antes de ser historiador da historiografia, portanto, fui historiador da literatura. Talvez por ter me formado dentro de uma tradição da história social, meus professores sempre tiveram o cuidado de acentuar a especificidade formal do objeto literário, sua autonomia em relação à sociedade ou psicologia a que tão vulgarmente muitos historiadores atribuíram origem. Ao mesmo tempo, contudo, sinalizaram que não poderíamos jamais perder de vista que a literatura era um fenômeno social e histórico, e cuja forma, embora pudesse ser autonomamente pensada, também deveria ser sócio-historicamente localizada. Era confuso dividir-se entre a autonomia da forma e sua determinação sócio-historica. A saída mais elegante para este problema encontrei em Bourdieu, que além de fazer da história literária uma disputa de diferentes antagonistas Confesso que, embora Bourdieu muitas vezes me satisfaça, nunca me satisfaz a solução apresentada, pelo menos no que tange à sua representação. E sem saber exatamente como, assim escrevi minha dissertação, cuja imprecisão formal só me permitiria tratá-la como um “ensaio”. Em certa altura, desisti de estudar literatura com o pretexto de escrevê-la. Seguia o exemplo de Ricardo Piglia, que recusou-se a cursar letras - cursou história - com o mesmo pretexto. Nos últimos anos, talvez por agora estar diretamente interessado não mais somente em compreender, mas em executar, muito tem me preocupado a dimensão da representação no trabalho historiográfico: como afinal contar uma história? Pois como historiador, sou antes de mais nada um gênero estranho de filólogo, cuja atenção se dirige à miudeza das palavras, e que por meio do convívio e leitura sistemática com o texto, busca nele descobrir línguas, padrões que me servem de indício e metodologia para pensar e trabalhar. A essa altura, contudo, a filologia, a história autônoma da escritura, me desinteressava, porque cada vez mais queria ver a língua produzida no mundo: eu precisava de espaços, de corpos, de movimento, de ação. E foi assim que voltei minha atenção ao tema deste ensaio, a cordialidade. Desconfio que são os nossos críticos que melhor nos entendem, mesmo que entendam tudo errado. Em meio ao labirinto de citações de José Guilherme Merquior, existe uma que sempre me impressinou pela mistura de acuidade e ingenuidade em que criticou um de meus críticos literários prediletos, Roland Barthes. O crítico brasileiro, sobre o francês, escreveu o seguinte: Barthes, pretextando que toda significação requer, para ser compreendida, a mediação da língua, sugere que a linguística atue como chave universal da semiologia - legitimando, com isso, a aplicação de conceitos elaborados para a análise dos signos linguísticos aos sintomas de outros complexos simbólicos, do tipo literatura (ou moda, etc). Merquior prescreve para Barthes um sintoma: “hipnotizado pelo pseudocódigo do texto”, e imagino que, em um dia que tivesse acordado de bom humor, Barthes até acolheria a doença, porque sabia bem que para ele, a linguística, a semiologia, o estruturalismo que lhe impunha a observar a moda, as paixões, enfim, o mundo, desde o grafismo da língua, era antes de mais nada um modo de existir: “a linguagem não serve apenas para comunicar; serve para existir, simplesmente”, disse em entrevista de 1979. Início por este caminho meu ensaio sobre o que chamarei de regime de cordialidade entre certos intelectuais brasileiros para descrever meu método de pesquisa, que antes de mais nada, consiste na análise e, principalmente, do convívio íntimo com os escritos. Close reading, eu poderia dizer, mas assim me aproximaria da tradição do New Criticism americano, que pouco li e pouco simpatizo. Encontro análogos em meu método de trabalho antes em escritores heterodoxos como Barthes, cujo interesse pelos escritos lhe fez reunir em um mesmo livro as análises do marquês libertino, Sade, o jesuíta Ignácio de Loyola e o revolucionário socialista Fourier. Meu trabalho é marcado por essa condição de não somente pensar, mas de existir pela língua: e meu sintoma, eu acato as palavras do doutor Merquior, é de um hipnotizado pelos limites que a posição de profissional da escritura me impôs à imaginação. Por isso, meu ensaio precisará começar deste lugar, pela palavra, pela escritura, pela língua. A questão da cordialidade, afinal, para mim, chegou por meio delas, não a partir de Gilberto Freyre - meu suposto objeto e tema desta conferência - mas um texto mais distante e diverso, que li durante viajava de ônibus para a Bahia - um escrito publicado em 1516, originalmente em latim, mas que evidentemente lia em português, em tradução pela primeira vez publicada em 1937, pelo misterioso Luíz de Andrade, cuja escassez e imprecisão de informações a seu respeito levanta a suspeita de ser na verdade - reproduzo a seguir informação retirada de um artigo de A. C. R. Ribeiro - “um pseudônimo de algum militante trotskista, como era o caso de "paulo m. oliveira" e de "blásio demétrio", respectivamente aristides lobo e fúlvio abramo, traduzindo clássicos na prisão para a editora”. Durante a leitura d’A utopia, impressionou-me logo de início, na breve narrativa em primeira pessoa que nos encaminha ao primeiro diálogo, a repetida escrituração da cordialidade entre as personagens: Primeiro que não há menção a um nome que não seja em seguida caracterizado - ou melhor, louvado - por suas virtudes. Como ilustração, lerei o parágrafo em que se descreve Pedro Gil, personagem cuja importância será a de introduzir Rafael Hitledeu a Thomas Morus: Durante a minha estadia nesta cidade conheci muita gente; mas nenhuma relação me foi mais agradável que a de Pedro Gil, antuerpiense de uma grande integridade [...] merece, realmente, uma das mais elevadas [posições]; já pelos seus conhecimentos, já por sua moralidade, pois a erudição que possui iguala a independência do caráter. Não há, portanto, nome próprio que não seja laureado de breve e genérica caracterização. De mesmo modo, não há ação que não seja acompanhada por agradecimentos que caracterizam sua enorme cortesia: Assim que Pedro acabou essa narrativa, agradeci-lhe o empenho e solicitude em me fazer desfrutar conversação com homem tão extraordinário; depois, abordei Rafael e, após as saudações e cortesias habituais num primeiro encontro, levei-o à minha casa com Pedro Gil. Aí, sentados no jardim, sobre um banco de relva, a conversa começou. Estes trechos são oriundos das primeiras páginas do livro, das cenas que nos introduzem ao que, de fato, será seu assunto: o primeiro discurso, em que se discute os vícios das sociedades de cortes; o segundo, em que se descreve a maravilhosa ilha de utopia. O primeiro, contudo, me interessa mais que o segundo, pois ali se demarca um contraste bastante evidente: entre o espaço público das cortes e o espaço privado do jardim. Se no jardim discute-se amistosamente, nas cortês, ao contrário, as paixões vis tomam conta, e a discussão, ao invés de buscar conhecimento, antes refere-se nas tentativas dos particulares de se elevarem perante os demais.
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