Não tenho tantas lembranças de mamãe. Morreu quando eu tinha dois anos de idade. Na verdade, não sei bem do que lembro, o que foi me contado ou o que eu mesmo, ao longo dos anos, passei a inventar.
Uma coisa pelo menos é certa: Seu nome era Joanne. O nome do meu irmão do meio, Jean, foi escolhido em sua homenagem.
A memória da minha infância não é clara, mas lembro bem de quando papai trouxe uma torta de morangos para o aniversário de doze anos do Jean. Uma torta deliciosa, eu não havia comido nada parecido. A sensação daquela torta em meu paladar era mais deleitosa do que o torpor inconfundível de ter uma boa ideia correndo pelos meus nervos... Se fosse possível reter a memória de nossos sentidos, seria para retomar ao corpo de agora o gosto daquela torta de morango...
Papai botou a torta em cima da mesa, e eu me aproximei que nem esses cachorrinhos, que cercam o dono ansioso pela comida. Estávamos presentes, além do homenageado, Jean, é evidente: eu, papai, Pierre, Jeanne...
Precisarei explicar este problema, para que meu raciocínio seja acompanhado com rigor.
Houveram três Jeannes em minha família.
A primeira era minha bisavó, a inesquecível Madame de Pompadour, a quem certas pessoas atribuem má-fama. Foi só na escola que descobri isso. Os meninos me contaram que minha bisavó fora uma mulher devassa, que fora amante de muitos homens. Contaram detalhes que na época não entendi por conta da minha inocência. Fui uma criança lenta, no que tange à iniciação no mundo dos homens... Não me refiro nem aos atos, às ações propriamente ditas, mas simplesmente era lento meu entendimento sobre as perversões que desde cedo as crianças compreendem que os adultos fazem, e que passam muito rapidamente a comunicar entre si... Lembro quando me deparei com o termo Cunnilingus facere, talvez nas páginas do Satyricon, de Petrônio, e evidente que não poderia perguntar ao professor de latim seu significado exato... Sabia que Cunnilingus facere era referente a algum ato indecoroso, mas me faltava melhor entendimento sobre aquelas palavras...
Tinha um aluno, um pouco mais velho, e o que lhe faltava à inteligência - seu nome era Pierre - lhe fora de outra maneiras recompensado. Pierre conhecia os caminhos para todos os lupanares, e sabia de memória os versos de Ovídio. Também ele próprio compunha os seus, e de boca em boca fazia espalhar, pelos alunos do colégio - até mesmo entre os menores, de dez, nove anos - uma profusão de obscenidades que, juro, Helena, minha mão quase treme só de lembrar... Como poderia uma criança pensar em tais palavras - e mais ainda: adorná-las com rimas, colocá-las dentro de um compasso, de forma a quase deixá-las - não belas, atrocidades como aquelas jamais poderiam ser consideradas belas, é evidente - mas os ornamentos eram capazes de fazer até seus monstros verbais passarem por coisa memorável...
Foi este Pierre que me passou o Satyricon. Não era nem mesmo um livro, era um pergaminho, copiado a mão, cumprido e amassado, com certeza já muito manuseado... Talvez fosse apócrifo, ou tivesse trechos inventados, eu não sei, nunca me preocupei em consultar novamente e comparar as cenas que vi, quando menino, com as que veria agora, com a experiência de homem já adulto...
Pierre cobrava um módico preço para quem quisesse ler aqueles trechos...
Creio não ter mencionado o detalhe, mas no pergaminho só estava copiado aqueles trechos mais baixos, mais obscenos, que a mente de Petrônio - uma mente doentia, agora cogito... Talvez os médicos-cirurgiões, com suas inovações, os recentes progressos nos métodos e nas ciências... Imagine se fosse possível, Helena, verificar no cérebro o dano causado pelos costumes, pelas mentiras, pelas coisas malignas que infestam nosso mundo... Se daqui a cem ou cento e cinquenta anos tivessem a oportunidade de examinar o cérebro de Petrônio, poderiam verificar os mais variados indícios de pensamentos falsos e perversos... Sei que falo como um louco, mas se a luneta nos permitiu enxergar as formas das estrelas, calcular com precisão o seu movimento, por que não cogitar uma tecnologia que faça o mesmo com os nossos pensamentos...? Desculpe o longo parêntesis, meu amor, voltarei ao relato principal -.
Falava sobre aquilo que a mente suja de Petrônio foi capaz de pensar, e não só de pensar, mas de por em palavras na superfície de um papel. Foram palavras pensadas por um romano, há cerca de mil e seiscentos anos atrás, que passavam de mão em mão, de menino para menino, e assim muitos eram iniciados nas coisas do mundo...
Antes os meninos já trocavam as palavras entre si, mas creio que não sabiam muito bem ao que aludiam. Tinham ciência da existência do pecado, eram filhos legítimos da conspiração de Adão e Eva, mas não compreendiam ao que se referiam... Ao homem cabe antes a imitação do que a compreensão, e por esta coisa mínima talvez podemos separar os homens ordinários dos filósofos legítimos... Quando pararmos de aos demais imitarmos, quando pensarmos com nossa cabeça o nosso próprio pensamento, veremos tudo de modo tão claro. Os costumes, repletos de vícios, são como sujeira que se acumula e embaça as lentes dos óculos. Quando passarmos da simples imitação para a reflexão verdadeira - e isto não é simples, Helena, exige toda uma vida de preparação, verdadeira ginástica mental para nos separarmos das falsas conclusões que herdamos dos outros - compreenderemos a razão da natureza, e não a razão suja dos costumes. Poderíamos assim, quem sabe, passar a reorganizar a sociedade, não seguindo os vícios que são impostos desde cedo pelo simples hábito, por costume.
A maldição de Adão e Eva é transmitida pelos nossos pais, e continua a ser cultivada nos colégios em que nos enfiam com a esperança de que alcancemos alguma clareza ou educação sobre a natureza, seja física ou moral. E em que lugar de nossa sociedade não está marcado pelo lodaçal imundo do vício e das mentiras? (Pessoalmente, revelarei o que se passou ontem, na corte do próprio príncipe...)
Em algum momento, não lembro exatamente quando, passei a compreender o que os adultos faziam quando às escondidas. Os sons que saíam do quarto em que dormiam papai e Françoise.
Depois que mamãe morreu, papai se casou com Françoise. Não era uma mulher ruim. Tenho algumas lembranças dela.
Pode parecer despropositado este longo arremedo de lembranças, mas são parte de meu projeto pessoal, de repassar para mim todas as memórias, tudo que ainda está preso em minha alma, para assim compreender melhor como vim a conhecer o que conheço, e depois, como um agricultor que separa o joio do trigo, separar os erros dos acertos. Desculpe empregar seus olhos como cobaia, Helena, meu amor, e fazer com que leia esse fluxo tão erráticos de pensamentos. Trata-se ainda não da verdade, porque a verdade deve ser logicamente encadeada. Aqui não redijo a verdade, e se sobre o papel verificará somente um bando de impressões desordenadas, é porque assim também nos ocorre na experiência. Portanto, se não redijo a verdade, eu pelo menos a ensaio, não no papel, mas dentro de meu espírito. Como uma bailarina, que precisa treinar um milhão de vezes o mesmo movimento até poder realizar com perfeição uma peça por inteiro, estou aqui, nesta carta, como em quase todos momentos em que vivo - sou um filósofo, é para isso que existo, é para isso que consagraram meu corpo - realizando o movimento da razão, aprimorando seus músculos, preparando-a para o verdadeiro salto.
Deixarei portanto que por agora as memórias venham, e até mesmo me possuam, na exata e desordenada maneira com que me ocorrem, pois até o mais mísero acontecimento, talvez dele possa extrair exemplos, como fazemos com as história dos antigos, e a partir de nossa miséria particular, quem sabe, encontrar algo de útil, uma passagem estreita, talvez menor do que um buraco de fechadura, para o caminho da verdade.
Aquele dia, em que examinei o pergaminho de Pierre... Não posso mentir, fiquei impressionado com a vivacidade das cenas... Era quase como se eu tivesse ali, diante dos olhos, aquelas coisas que os meninos falavam entre si, dando risadas, e então, só então, tive verdadeira compreensão daquelas palavras que - admito, pois nunca fui e não tenho pretensão de ser nenhum santo - até mesmo eu dizia, por imitação, sem saber bem o que dizia, mas que causava nos demais alguma comoção, risada, zombaria, piadas, estas coisas que para a meninice são tudo que existe.
Li os supostos trechos do Satyricon durante a madrugada... Estas coisas não sei porque, mas estão claras em minha memória. Depois de duas horas de sono agitado, acordei para atender a aula. Um vento frio sacudia as folhas da montanha que ficava ao fundo do colégio. Ouvi um grito de pássaro, e quando olhei vi um bando de albatrozes sentadas em uma fachada de pedra mais distante... Como você pode imaginar, La Haye não é próximo do mar, e até hoje não sei explicar o branco daqueles albatrozes de fronte ao arvoredo da montanha, as flores azuladas e vermelhas das trepadeiras contrastando aos rochedos negros.
Ainda pensava nos trechos da obscena novela de Petrônio quando começou a aula. Não lembro de nada que ocorreu. Só pensava, afinal, em Satyricon. Como pode ver, tens provas do poder vil das cenas mais vis adornadas de jeito razoavelmente elegante, capaz de estimular as paixões de um jovem, que antes de mais nada, quer viver os gozos da juventude. E com o progresso dos anos e de meu conhecimento, meu amor, passei a dar razão às palavras de Céfalo, aquelas que iniciam A república com elogio à velhice e ao celibato. Melhor, portanto, que continuemos nosso amor assim, pela distância segura do papel, pois as necessidades do corpo - que sim, ainda sinto - não quero que impeçam a razão de meu pensamento.
Sei que pediu para que falasse de minha família, e acabei não falando muito sobre. Agora meu pulso já dói de tamanho exercício feito com a pena. Sua curiosidade terá que esperar até a próxima carta para ser saciada.
Te amo. Sou teu por inteiro, extensão e pensamento.
René Descartes.
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