domingo, 30 de abril de 2023

A VIDA VERDADEIRA DE RENÉ DESCARTES, V.

O pobrezinho do René Descarte ajeitou discretamente o cinto e o fecho da calça, espiando se alguém ao lado estava prestando atenção em seus movimentos. Aparentemente, todos olhavam para a frente da classe, para o padre Xavier, que dizia, com sua voz arrastada:

- São Tomás de Aquino, diz o seguinte: A origem da alma é qual, fora divina?; a origem da memória é qual, fora a alma?; e se a origem da alma é divina, e a memória é propriedade da alma, logo a memória também é divina. 

Padre Xavier, apesar de vagaroso, encadeava seu raciocínio com firmeza, sem hesitar nas palavras empregadas, e repetia de tempo em tempo trechos em latim da Summa Theologiae ou de outras obras que René imaginava que deveria prestar reverência. 

Os demais ouviam com atenção. Só deveria existir, para eles, Padre Xavier e seus ensinamentos, e se fosse possível, o próprio corpo do padre desapareceria e seus alunos veriam diante da vista, como escritos, as palavras que ele repetia de cor, e que os alunos também deveriam repetir em sua mente, reproduzir no pensar cada sílaba que o padre tratava de anunciar.

René Descartes nunca conseguia acompanhar o exercício. Sempre se distraía em outro pensamento. 

Em particular, confessou certa vez ao padre Chouet, que ensinava física e matemática e com quem tinha certa intimidade, às vezes não conseguia prestar atenção nas aulas, pois lhe ocorriam outros pensamentos. O padre respondeu que as palavra deveriam ser conhecidas de cor porque eram enunciação e interpretação autorizada da verdade divina, e olhou René com um sorrisinho que lhe fez parecer um bobo, um selvagem a se questionar o porquê das pessoas dizerem boa tarde ou boa noite.

 René fez um gesto afirmativo com a cabeça, mas na verdade não entendia o que o padre quis dizer. 

Saiu da conversa ainda mais confuso do que antes. Na verdade, o pequeno Descartes sentiu-se estúpido, pois muitas vezes as palavras dos filósofos para ele nada significavam. Pensando consigo mesmo, chegou a cogitar que era absurdo as palavras por si fossem capaz de ensinar alguma coisa. 

Ao invés de teologia e metafísica, lhe interessava portanto a matemática, a física. Gostava especialmente de poder refazer por si só o seu caminho.

Na disciplina de teologia, o padre Xavier explicava que as palavra deveriam ser conhecida de cor, porque eram mesmo averdade divina, não pensada por ele, pobre alma pecadora, mas por toda a história de pensadores, No seu rosto, havia também um sorrisinho. 

Fazoa um gesto com a cabeça, afirmativo, que tinha se tornado um hábito, para representar que tinha entendido alguma coisa, mas novamente não havia entendido nada.

 Nas aulas seguintes, continuou pensando em outras coisas que não as palavras que o padre repetia, em alto e bom som, para toda a classe ouvir e entender com clareza o que dizia.

Narro a seguir um pensamento não só intrusivo, mas uma lembrança recorrente, que lhe ocorria enquanto o padre dava sua lição de teologia:

Minha madrasta Françoise deu um tapinha forte, mas talvez carinhoso, na minha cara.

- Foi você que comeu os figos cristalizados, não foi?

Baixei a cabeça, porque sabia ser o autor do delito.

- Se disser que não,, vou ter que usar a palmatória. René...

Quando viu que fiz cara de assustado, a fisionomia deFrançoais mudou por completo. Antes era agressiva, parecia uma bruxa malvada das histórias que Jean contava para me assustar. Depois, virou uma fada  passou a mão em meus lábios e disse, com a voz mais doce do que o açúcar delicioso do figo que imoralmente eu havia devorado:

- Ei, Ei, René... Está tudo bem, e me abraçou junto dela.

Depois que mamãe morreu de pneumonia, papai casou-se com Françoise. Alguns dias antes do aniversário do Jean que papai apresentou ela como sua esposa. 

Vi sua fisionomia com os olhos que as crianças veem as coisas. Não me cobre tantos detalhes. Lembro que era mais alta que mamãe. Seus quadris eram largos, e os espartilhos apertados fazia com que parecesse uma ampulheta. Teve certa vez, que desprovida dos adornos, vi Françoais nua.... Era assombroso vê-la nua, a ampulheta obrigada a regredir ao formato de carne e osso, e compreendi então, cheio de horror, o quanto o espartilho apertado deformava seu corpo até que se parecesse outra coisa, desumana, inumana, não sei descrever, irei chamar novamente de ampulheta.... 

Os relato de viajantes contam de tribos selvagens, costumes bárbaros terríveis, que deformavam das mais grotesca o corpo feminino... Em certa tribo eram obrigadas a estendero pescoço até a altura de um florim, e o narrador comparava as mulheres desta tribo às estranhas girafas, que diziam habitar o sul da África, e que eu contudo só havia visto por meio de ilustrações... Poderia existir um ser humano tão grotesco quanto uma fera? Li o relato com ceticismo, embora, confesso, fiquei impressionado com a mera possibilidade de se modificar o corpo de um ser humano ao ponto de aparentá-lo a uma besta...

Estava contudo distraído, não pensava em nada, quando entrei na saleta e vi Françoais desamarrar a última fita de seu espartilho. A criada atrás, de auxiliar, entediada, fazia tudo parecer um ritual ordinário. Quantas vezes deve ter visto o espetáculo de um corpo nu, bem assim, diante de seus olhos?Eu, contudo, um menino, sem iniciação apropriada, não pude acreditar, e quando Françoais soltou o espartilho e caiu o último pano que vestia, primeiro ocorreu em mim um choque, um frenesi, cuja origem hoje compreendo, mas que na idade de menino me pareceu simplesmente um castigo dos céus por assistir aquilo, que eu não deveria assistir, com meus olhos de carne que a terra irá ainda comer... Assisti a forma assombrosa daquele corpo, e se no momento estava enfeitiçado pelos torpores do sentido, hoje compreendo que doeu em mim ver um corpo assim, não o feminino, que já conhecia pela visão de minha irmãzinha Jeanne nua, mas por admirar uma mulher adulta, o quanto a cinta, o abusodos costumes, causaram em sua vida, em seu corpo de criatura... 

Aquela cintura não sabia se queria ou se repelia, para dizer a verdade. O que houve foi que rapidamente me ocultei, com a esperança de que ninguém soubesse de que vira minha madrasta nua. 

Estou me comprometendo, é melhor explicar que nada disso foi voluntário. Tudo, afinal, foi acidente. Eu regressava de férias, de meu colegial. Tinha meus quatorze anos, estava me encaminhando para o fim dos estudos com os jesuítas. E pela convivência com os rapazes mais velhos, repletos de vícios, havia aprendido o prazer sensorial de me embriagar. Passei, de vez em quando, a tomar vinho, uísques, ou o que mais tivesse disponível, pelo simples prazer de meus sentidos enganar.

De Françoais, confesso, gostava de beber seu conhaque, que mantinha cuidadosamente escondido dos demas. Ela sempre tinha uma garrafa de conhaque  atrás de um quadro de minha bisavó. Ficava em seu salão particular. A descoberta ocorreu de maneira trivial, estava passando, a porta estava aberta, ela já parecia ébria, então não percebeu minha presença, e também fingi que não vi nada. 

Desde então, quando ela estava distraída em algum outro cômodo, ou tivesse se ausentado para a rua, entrava e roubava um gole do conhaque dela. 

Naquele dia, que houve o incidente, achei que não estava em casa. Mas quando entrei no quarto,  flagrei Françoais nua, acompanhada da criada que lhe ajudava a tirar a indumentária. 

A mente de René Descartes vagava, sem rumo, enquanto o padre Xavier fazia seu falatório sobre a memória, naquele ritmo pausado e monótono que René considerava insuportável. 

Como todos podiam estar prestando atenção naquilo?

- Porquê a retórica, dizia o padre, De oratore, I,V, é a zona erógena da língua: por isso importante sabê-la de cor. Controle sua libido por meio e através da linguagem. Não se desvie das coisas santas, não permita aos sentidos nada fora o mínimo: respiração, circulação, pulsação. O resto é traiçoeiro, e trai o espirito. Preste portanto atenção às palavras que digo. São compostas pelas maiores auctoritas, e é com as palavras deles que deves não somente falar, mas pensar. Nam ut praecepta omnia, quae ad eloquentiam pertinent, in hac una sententia continentur: ut id, quod cuique dicendum sit, apte, perspicue, ornate dicatur. Que sejam belas as palavras porque somente o belo és capaz de fazer amar. E lembras bem de quem tu amas: Dicit ei: Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo, et in tota anima tua, et in tota mente tua. Hoc est maximum et primum mandatum. Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, Este é o maior e o primeiro mandamento...

A mente de Descartes, contudo, seguia rumo próprio, que nem ele contudo trataria de compreender. Da madrasta, sentiu certa culpa, e da culpa pensou na mãe, Jeanne, que talvez por semelhança simplória, nomesmática, fez com que se lembrasse de sua irmã mais nova, batizada também como Joanne, homenagem à mãe e à bisavó....

Era quatro anos mais nova que eu. Lembro que no aniversário de Jean ela se queixou por não lembrarem que seu nome também era uma homenagem... Meu pai silenciou, espantado, que a filhinha indignava-se com o lapso. 

- Vamos, Jeanne, disse Françoais, não seja má educada. Hoje é aniversário de Jean. Deixe que Joaquim use o nome de seu irmão - e indicou com a cabeça, olhar frio como a neve que caía lá fora - para lembrar de sua tão querida mãe.

Eu não sei o que houve, mas as palavras de Françoais causaram um efeito estranho. Era um aniversário, estávamos todos, se não felizes, cheios de energia. A energia, contudo, parece que se evaporou, E em silêncio, sentamos para comer o bolo de morango.

Pierre, como sempre inquieto, que tentou alegrar o clima:

- E aí, Jean, como se senta aos doze anos?

E todos olharam para Jean, não somente porque era aniversário dele, mas porque agora ele era o responsável por, pelo menos naquele instante mínimo que iria durar o discurso dele esperado, deveria sustentar o peso daquele clima desagradável que ninguém compreendia bem, mas que todos sentíamos como se fosse um vento gelado. 

Ele olhou vagamente para um lado, parecia envergonhado. Mastigou um pedacinho de bolo. Olhou de relance para papai, e depois desviou os olhos para Pierre, não para seu rosto, mas para seu peito ou qualquer lugar em que pudesse não olhá-lo nos olhos:

- Não mudou muita coisa.

Depois, papai arranhou a garganta e ficou falando sobre como foram seus doze anos, que naquela época estava iniciando seu trabalho como aprendiz em certa companhia de advogado, e que no entanto seu enorme talento muito rapidamente havia feito que conseguisse um posto no tribunal de Rennes. Depois, passou ao relato de como era viver naquela cidade, longe de sua família e que não conhecia ninguém, mas que era obrigado estar por conta do trabalho.

- Saía de tocha na mão, sozinho, pelo campo aberto. Naquele tempo de Rennes, existia muito menos prédios. Podia-se ficar sozinho, longe de tanta gente. Gostava de vez em quando de caminhar pelos campos.

- Conte-nos da vez que encontrou aquele animal estranho, amor, disse Françoais.

- Bom, eu estava no meio da madrugada, nem tão longe de casa, apenas um ou dois paus. Sabem como são escuras as noites de hoje? Acreditem, há trinta anos atrás era ainda mais escura as asas das graúnas. Os morcegos eram da cor do céu. Não havia nada fora arbustos, sombras negras que a imaginação transfigurava em monstros. Em certos pontos, havia algumas árvores, vegetações mais elevadas, mas em geral não se encontrava nada de interessante, que valesse a observação.

- Não sei o que você fazia no meio do nada a essa hora, papai, eu disse, com minha voz de bebê.

- Não sei René. Talvez Fugere urbam.

- Quê?, eu disse sem entender

- Fugir da vila. Ir para um lugar em que pudesse ficar sozinho comigo mesmo. 

- Por que, papai?, perguntou agora Jeanne.

- Vocês fazem muitas perguntas, disse papai, sorrindo, enquanto indicava, com gestos irritadiços do indicador, que desejava mais um pedaço do bolo de morango.

- Está mesmo uma delícia, disse Françoais enquanto a criada colocava mais uma fatia no prato de papai.

Com toda candura do mundo, ela então virou para Jean e perguntou:

- O que o aniversariante achou do bolo?

Jean ficou vermelho, virou a cara e começou a nervosamente comer sua fatia de bolo. Constrangida, Françoais e toda a mesa passaram a fazer o mesmo. 

Pierre, novamente, quebrou o gelo, e disse:

- E o bicho esquisito, papai?

- Ah... Provavelmente era só um lobo, mas o que me impressionou era seu tamanho. 

Terminou sua fatia, então largou os talheres no prato de porcenala, o que fez um barulho estrondoso. Todos em silêncio. Meu pai levanta, olha para cada filho na mesa, e encarando o lustre, disse o seguinte:

- Era um lobo maior que um homem.

Indicou para a criada recolher seu prato e saiu, imagino, para seu cômodo particular.

Na mesa, Pierre perguntou, gentil, para Jeanne:

- E você, irmãzinha, tem dormido melhor?

Ela fecha a cara.

- Fiz xixi na cama de novo.

O irmão dissimulou surpresa. Era normal que vez ou outra Jeanne mijasse na cama.

- Sério?, Pierre perguntou, fazendo-se incrédulo.

- Sim..., e Jeanne ficou em silêncio, o garfo e faca em cada mão, mas imóvel.

Silêncio novamente, Françoais, quando terminou seu bolo, se levantou. A criada prontamente tirou seus pratos e talheres. 

Todos nós olhamos para Pierre, como se dele esperássemos alguma coisa de sua parte. Ele deu a última garfada, limpou a boca com o lenço e se retirou, a pretexto de estudos. 

Ficaram só as crianças na mesa.

- Mijona, Jean disse para Jeanne.

- Pior você que é burro, respondeu ela, mas em um tom de voz que sabíamos todos que estava derrotada.

- Não vai falar mais de seus pesadelos?, falou Jean, em tom maldoso.

- Eu não tenho mais pesadelos!, e ao falar isso sua voz se elevou. 

- Não foi isso que ela me contou outra noite, ele disse, virado para mim.

- Cala a boca, por favor..., Jeanne suplicou, escondendo o rosto nas mãos.

- "Tenho medo de meus pesadelos, tenho medo de meus pesadelos", diz Jean, com falsete, zombando de Jean. Escute só o que ela me contou, continua ele, olhando para mim. Um homem velho, de bigode, chegou e perguntou se ela queria uma bonequinha. Ela disse que sim. Aí ele foi e levou a bonequinha mais bonita de todas pra ela. 

- Para de contar pro René..., e com os olhos cheio de lágrimas, saiu correndo para nosso quarto.

- Mas disse que só daria se ela fizesse xixi na frente dele, completou, sem se importar com a reação de Joanne.

Comi mais um pedaço somente para demorar mais na mesa de jantar. Sabia que Joanne estaria chorando em sua cama. Queria deixá-la chorar em privacidade. 

Jean também continuou comendo, normalmente, pelo que pareceu,

Na aula, o professor parou de falar por um momento. A sala inteira ficou em silêncio por mais de dois minutos. Aquela súbita paz dos sentidos fez bem a René Descartes, que por algum motivo, conseguiu retirar-se de seus pensamentos e fazer-se presente, no espaço escuro daquela classe.

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