quinta-feira, 25 de julho de 2024

narcisismo e paranoia na civilização

adorno louva o sistema burguês trabalhista de hegel por formular, na perfeição bem-acabada do conceito, o mundo unificado por meio das relações de troca, da mercadoria. seria, por parte de hegel, uma espécie de intuição do espírito do tempo: a empreitada do alemão teria "inferido a partir do conceito, esse caráter sistemático da sociedade, muito antes que ele pudesse impor-se no campo acessível à experiência de hegel". 

adorno se refere à sistematização hegeliana da integração das partes com a totalidade como expressão do espírito capitalista, de um modo que a fenomenologia e o projeto filosófico de hegel poderia ser um espelho de cristal para as relações constituídas sob o signo da mercadoria, em que tudo somente pode ser em relação a um outro: "essa capacidade da produção esquecer a si mesma, o princípio de expansão insaciável e destrutivo da sociedade de troca, espelha-se na metafísica hegeliana". não queremos sugerir que conceitos não possuem tal poder de clarividência; de certo, a obra hegeliana permitiu, deu forma, as aspirações teóricas de adorno em relação ao capitalismo do século XX, assim como o mito de édipo serviu a freud para inteligir com tamanha clareza suas próprias ideias. a mitologia, essa espécie de laço espiritual, série de histórias e imagens partilhadas, funda essa possibilidade de entendimento, e mesmo comunicação. poderemos, contudo, pensar na extensão e duração dessa mitologia das partes pelo todo, uma ontologia sinedótica em que o singular somente consegue existir pelo e no olhar do outro. 

trata-se de procurar o chão histórico em que se desenvolveu o narcisismo, é claro, já que este consiste na auto-consciência doentia de si, ou ainda, uma percepção de auto-percepção persecutória, que não permite esquecer de si mesmo em nenhum momento: seu corpo, sua fala, seus movimentos, tudo e mais ainda se torna objeto de consciência para o narcisista, como se, em sua fantasia, recriasse em si e para si o olhar e julgamento do outro: só é capaz de se conceber mediante ele. se a civilização é um desenvolvimento da coesão social pela integração e alienação progressiva do trabalho, então a civilização também caracteriza um caso progressivo de narcisismo, em que o eu, na proximidade crescente com o outro, somente pode conceber a si mesmo desde seu olhar. não por acaso que, na intensificação da modernidade, a sinceridade e autenticidade surgem como questões centrais para a vida reflexiva: como ser para si mesmo? como escapar do fluxo repressivo e modelador, a violência imposta pela proximidade do outro, pela manifestação tão clara do leviatã social? 

a relação de força entre o outro e o sujeito é tema central na tragédia íntima de rousseau, cujo corpo parece fracassar, como se fosse um ser extemporâneo, incapaz de se adequar a sua própria e tão clara intuição do panótico social, cada vez mais objetivado na indústria cultural, na perseguição levado a cabo pelos instrumentos do jornalismo, na criação dessa fantasia aterrorizadora e deliciosa de ser celebridade. rousseau se deleitava, mas, também, sofria: termina sua vida entregue às reflexões intimas, cerrado em seu desejo recorrente de distanciamento e solidão, cuidando de sua mórbida velhice em uma casa de campo, longe da vida citadina e da conspiração do público. é um homem cuja obra e biografia representam, tanto ou mais que a conceituação de hegel, a tensão da vida capitalista enquanto uma ontologia do valor de troca, em que somente conseguimos nos conceber a partir da consciência de sermos consciência de um outro. o sujeito cartesiano, marco mitológico da filosofia moderna, funda-se antes de mais nada na subjetividade de si para si: e descartes precisa se isolar em um chalé taciturno para silenciar o ruído externo e ficar a sós consigo mesmo. 

a sociedade, leviatã já idealizado por hobbes em que esse todo imaginário subjuga todas as partes, é uma entidade persecutória, cujo olhar é quase impossível de se abstrair. por último, retomando ao comentário sobre a antecipação divinatória de hegel, sobre a forma com que seu sistema formaliza a vida histórica dos séculos seguintes, vale fazer uma breve hipótese de carácter histórico. a aristocracia do século XVIII francesa, como demonstra o exemplo de rousseau, já vivia sob essa condição narcísica, de se saber inconsciente ou conscientemente cindido entre um eu e uma imagem do eu ao outro, incapaz de definir o originário, e atormentado por essa impossibilidade. 

sobre isso, o exemplo de rousseau (que em certa obra, na divisão que faz de si mesmo em vários, na própria representação como terceira pessoa, encorpora tão bem) é eloquente, mas ainda podemos pensar em como, desde o século XVI, a experiência de corte na inglaterra, estimulou a thomas morus a escrita de sua utopia. ali, a  tensão entre a vida pública, a necessitada de deleitar e de cultivar um ethos particular, entra em choque com a inconveniência característica da verdade. a adequação da retórica e a extemporaneidade da filosofia se confrontam, mais uma vez, sendo esta valorizada pelo seu poder de se livrar do domínio do outro sobre si. essa, talvez, fosse a paixão que animasse ainda a filosofia de rousseau: o desejo de se libertar do outro e se ver transparente, de si para si, e não de si para o outro para si. 

em hegel, contudo, e essa talvez seja sua radicalidade em relação a seu predecessor francês, esse desejo parece caducar diante da consciência de que o sujeito é, na verdade, sujeito-objeto; de que sua apercepção - em continuidade a kant - é sempre fenomênica, uma imagem projetada dentro da projeção social, que não é outra coisa fora a história do espírito.

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