Caracterizemos brevemente os traços psico-epistêmicos de um Florestan Fernandes. Tal empreendimento não é ocioso, já que, ao invés de nos referirmos a idiossincrasias subjetivas, como que fantasias ou ideologemas que, no ato do conhecimento, seriam o resíduo da produção objetiva, estamos aqui a determinar a psicologia como uma condição para o próprio conhecimento formulado. Esse tratamento psicológico dado ao estudo do conhecimento, ao invés de interditar a possibilidade da verdade objetiva e universal, oferecendo a impossibilidade do conhecimento - necessariamente subjetivo e parcial -, procura sobretudo entender como essas espécies de condicionantes psicológicas se articulam diretamente com a matéria ou conteúdo do saber. Ou seja, como que o saber, ao invés de ser comprometido ou deteriorado pelas disposição subjetivas - suas paixões e afetos -, são, na verdade, possíveis somente neles e por meio deles.
O exame do caso de Florestan Fernandes, portanto, nos serve como ocasião para testarmos essa perspectiva que chamamos de psico-epistêmica, deixando ao leitor a avaliação de sua pertinência para uma história da teoria e das práticas intelectuais, que, à despeito do realce monográfico ou personalista que aqui parecemos impor, deve articular, sobretudo, uma teoria histórica ou social de tais práticas teóricas. Isso implica que as subjetividades, e assim, esse campo de investigação que chamamos de psico-epistêmico, não deve ser tomado como meramente biográfico ou individual, muito embora aqui tomemos uma biografia como ponto de partida. O que pretendemos sugerir é que, ao invés de uma irredutibilidade ao caso concreto e particular, as subjetividades devem ser avaliadas desde a perspectiva de sua interação, de forma que, em nível metodológico e pragmático, a biografia de um sujeito como que evidencia as lacunas e recalques manifestos na escrita de um outro. Essa perspectiva, assim, nos leva em direção a um conceito antes de escritura (cf. Roland Barthes, O grau zero da escritura), em que a subjetividade se vê imposta, desde esse sistema de relações que chamamos de escritura, a tomar posições, ao invés de criar-se a si, autonomamente. Por isso que estamos sobretudo a tomar as subjetividades não como referentes a uma mente individual, mas pertinente a um sujeito transcendental e histórico, cuja totalidade ultrapassa os dados biográficos, de forma a insinuar essa totalidade escriturária em que tal biografia seria somente expressão de uma determinada posição.
Essa longa digressão teórica visa, sobretudo, a introduzir essa nota sobre o caso de Florestan Fernandes. Segundo nossa impressão, tomado de seus textos teóricos sobre sociologia, mas também dos relatos autobiográficos do próprio, encontramos uma convergência entre a mitologia liberal da ascensão social - chamemos isso de mito da democracia social, em que as classes baixas tem possibilidade de ascender econômica e socialmente -, e uma epistemologia que, fundada sobre o conceito de ciência empírica e objetiva, procura instalar o saber sobre um ponto de vista universal e cosmopolita, feito à despeito das subjetividades e, mesmo, contra as suas vaidades e preconceitos.
Explique-se brevemente que a trajetória de Florestan Fernandes, não obstante a origem proletária ou serviçal - enfim, sua origem plebeia -, se inscreve perfeitamente nessa mitologia burguesa que, por meio do trabalho duro, vence todas as barreiras e ascende social e culturalmente.
Ao contrário do que me parece sugerir as mitologias de alguns cientistas sociais das gerações anteriores, associadas ao bacharelismo da primeira república e aos laços senhoriais e aristocráticos, o saber de Florestan Fernandes se formula não como uma produção do sujeito - coisa que, nesse ponto específico, igualaria a produção da verdade cientifica com a criação da obra artística enquanto expressão romântica da subjetividade singular -; mas em Florestan Fernandes a ciência se constitui não sobre as possibilidades de um gênio dotado de aristocrático talento natural, mas sim do árduo trabalho crítico e analítico do profissional sobre os materiais empíricos. Oferecidos universalmente enquanto dado, porção que, à despeito das dispersões representadas pelo tempo e espaço - são eles os fundadores da subjetividade -, são os mesmos para qualquer homem de qualquer origem ou condição.
A ciência e seus padrões epistêmicos, nesse sentido, estão atravessados por uma espécie de subjetividade burguesa, democrática e liberal: a universalidade exegética, possível à razão mais comum, se formula como oposta ao esoterismo aristocrático que animavam os antigos salões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário