lévi-strauss coloca um pouco dessa ideia no seu pensamento selvagem: não é que as sociedades frias não tenham história, mas elas vivem em uma temporalidade diferente: o devir existe, mas de uma forma diversa. isso se relaciona com uma percepção culturalista e historicista (talvez essas ideias possa ser remetida a franz boas) em que o tempo não se dá como uma constante universal: as formas de vivenciar e processar os efeitos da temporalidade são sociais e, portanto, variam conforme cada sociedade.
sobre o conceito de "povos sem história", ou seja, povos que existiriam como que fora do tempo, em que o devir entra por um ouvido e sai pelo outro, lévi-straus procurará sair de tal negatividade entre sociedades originais, isto é, que estão em estado de natureza, e sociedades desenvolvidas, capazes de acumular na sua forma a passagem do tempo, na distinção entre sociedades frias e sociedades quentes: "umas procurando, graças às instituições que se dão, anular, de forma quase automática, o efeito que os fatores históricos poderiam ter sobre seu equilíbrio e sua continuidade; as outras, interiorizando resolutamente o movimento progressivo histórico, para dele fazer o motor de seu desenvolvimento" (p.268)
como eu leio essa distinção? de um lado, temos sociedades arquivísticas, que continuamente registram e acumulam bancos de dados; do outro, temos sociedades mitológicas, que continuamente rejeitam a necessidade tão imperiosa e civilizada de acúmulo: por meio do sistema mitológico, elas ao mesmo tempo (1) esquecem os acontecimentos ao revolvê-los a um significado mítico e (2) reescrevem, sob os mesmos signos, uma série de novas informações.
desde um ponto de vista marxista, e portanto, materialista, a distinção entre sociedades frias e quentes remete a procedimentos de estocagem de informações. lévi-strauss demonstra como o mito, ao contrário dos teóricos da a-historicidade das sociedades frias, pode sim guardar informação, mas que esse é um arquivamento barato, adequado a baixa produtividade de tais sociedades: elas não tem arquivos civilizados, eles não tem historiadores, ele não tem escritores; tudo que usam são signos, transmitidos oralmente, de uma geração para outra, pelo sistema parental. para registrar e ordenar os acontecimentos, não produzem caracteres sobre papéis: usam a natureza vegetal, animal e geológica; o que se rejeita, portanto, não é a temporalidade, mas sim os dispositivos materiais (as tecnologias) que as sociedades civilizadas incessantemente produzem para continuamente arquivar as novas informações.
perceba que os arquivos naturais (flores, animais, céus e montanhas) são também sistemas de significantes. neles, se escreve a história universal dos selvagens. essa matéria, que empregam para a escrita, é acumulada historicamente no tempo natural ou telúrico do desenvolvimento da terra, um ritmo que certamente se afeta desde as trocas metabólicas feitas entre natureza e homem (os selvagens, por exemplo, selecionam as espécies vegetais e animais que lhe são benéficas), mas que, mesmo para produzir culturas humanas, seguia esse tempo de reprodução da natureza, um tempo muito diverso das sociedades baseadas na troca de mercadoria e produção industrial. (lévi-straus demonstra, no entanto, que também empregam artefatos e engenhos humanos, mas para todos efeitos, esses objetos não descrevem o movimento acumulador das sociedades quentes: a produção de database, nas sociedades frias, é lenta e avessa a expansão).
o mito, erguido sobre uma base material muito limitada, terá, naturalmente, pouco espaço para a escrituração. o mito, portanto, é um banco de dados curto, que precisa ser reescrito continuamente. na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma: as sociedades frias "não tem história" porque, por conta dessa limitação material, não acumulam continuamente os resíduos e informações: o tempo para elas não é um inchaço progressivo, como é nas nossas, mas um contínuo apagar e criar, organizado desde um sistema geracionalmente transmitidos.
portanto, lévi-strauss planeja sair do dualismo entre sociedade com história e sem história mostrando que (1) o devir do tempo existe para toda forma de vida; todos estamos submetidos a esse fluxo que destrói e renova; isso quer dizer que as sociedades frias, tal quais as quentes, de fato processam o tempo: eles só acumulam muito pouco, eles somente não expandem as bases arquivísticas: a mantém dentro de um limite material característico. na verdade, as sociedades frias ativamente rejeitam esse sentido imperativo da história universal, europeia e capitalista baseado no acúmulo e expansão infinito. são sociedades fundamentalmente da finitude; tal penúria de arquivos podemos explicar pela baixa produtividade das sociedades frias: quanto mais matéria existe no mundo, mais necessidade de trabalho para produzi-la. conclui-se ainda que, portanto, (2) o que chamamos de "história" é na verdade uma prática disciplinar, baseada na expansão e acúmulo de dados e arquivos, e somente possível em determinada fase histórica da produção material.