domingo, 1 de janeiro de 2023

BREVE RELATO DE UM CANSAÇO

Pensava seriamente sobre como deve ser um cachorrinho desses de apartamento, que por meio da seleção eugênica teve seu genoma cuidadosamente manipulado pelas sociedades humanas. Observei o formato peculiar de sua fisionomia medonha. Dizem que o crânio do chihuahua, eugenicamente reduzido, provoca-lhe grande cefaleia, e que seu temperamento ruim, sempre prestes a disferir séries de latidinhos irritantes, é na verdade causado por essa comorbidade. o que pensava esse cachorrinho por meio de seu cérebro comprimidos pela caixa craneana? por que sentia-se irritado, ou então furioso, como se estivesse sempre se sentindo ameaçado? de onde vem tanto medo? quais razões obscuras que seu cérebro pequenino engendra? olhei para os olhos enormes que pareciam dóceis, e até melancólicos. devagar, levei a mão até suas costas ossudas e acariciei o pelo bem-cuidado. não era macio, mas era gostoso de passar a mão. ele parece ter gostado, e então tomei coragem de me aproximar. era tão adorável, e tive vontade de esfregar meu rosto no dele, de cobri-lo de beijos e abraços. e tão frágil, pequenino! como devia ser isso, viver no meio de seres humanos horríveis e barulhentos? como pode suportar o estresse que o mundo moderno deve causar em seus sentidos super amplificados de caninos? e passamos assim, não sei quanto tempo, um olhando para o outro. comovido, passei meu dedo delicadamente no focinho do animal e disse, os olhos marejados, "ah, meu bom amigo... só deus saberia dizer o quanto somos parecidos, os dois animais presos em corpos imperfeitos, corpos feios, deformados, que padecem não só das piores misérias das células e genomas, mas das inventadas pelas sociedades humanas. o que fizeram conosco, não é mesmo? e de miséria em miséria, existirá a pior? preciso eu trabalhar e ganhar dinheiro, mas posso comer bifes à parmegiana e chocolate. você é livre, mas para a servil liberdade de um cão: a de deitar, cagar, dormir. quem então é mais feliz, eu, humano, ou você, cachorro?". e ele me respondeu: "john, o que o doutor está me falando? sinceramente, não estou entendendo". olhei triste, como se esperasse outra resposta, mas depois sorri, leniente. dei-lhe um último afago, um beijo no focinho e fui-me embora, pois já estava cansado de conversar com cães.


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