sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

NA BIBLIOTECA

O ventilador ligado soprava simplesmente um fiozinho de vento. Passei a mão em minha testa e tirei a franja da cara. Quando fui virar a página do livro, meu suor deixou o papel úmido. Eram dias quentes, e a temperatura ultrapassava os 40º.

O lugarzinho era simples, e apesar de tudo, bem asseado. Um funcionário gordo, vestido um terno enorme, passava o tempo todo junto de sua fiel vassoura, e garantia a limpeza das salas apertadas da biblioteca. E embora fosse pequena, seu  acervo era de excelente qualidade, como se um cuidadoso bibliotecário escolhesse a dedo os livros a serem comprados e oferecidos nas estantes. Passei a ir lá quase todos os dias, e com o tempo acabei fazendo amizade com o gordinho da vassoura. 

Era um sujeito tímido, que gaguejava ao falar. Antes não me dizia qualquer palavra fora o bom dia e boa tarde de cada dia, até que certa vez reclamei de que algum idiota deixara o Martin Fierro na seção das novelas, e ele achou muito engraçado. Desde então passamos a conversar durante os quinze minutos de intervalos que ele tirava para tomar um cafézinho ou comer barrinhas de cereais.

Certa vez apareci acompanhada da escritora Águeda Prazeres. Chegamos juntas e comprimentamos o funcionário, que não demorou a desaparecer e nos deixar sozinhas. Depois de vagarmos pelas seções e folhearmos alguns livros, paramos diante de uma estante repleta de velharias. Folhei um dos exemplares ao acaso e li um trecho que o antigo leitor destacou à caneta na página 56: 

"Os sonhos possuem uma razão. Essa é uma característica do mundo onírico que se deixa facilmente escapar. Muitas pessoas até imaginam que a razão está entorpecida ou mesmo suspensa durante o sono. Os estudos mais recentes, contudo, demonstram ocorrer exatamente o contrário, e que a razão, enquanto dormimos, está  na verdade mais ativa do que quando estamos acordados, e que todo sonho é engenho de alguma razão". 

Ela me perguntou que livro era esse e procurei as informações catalográficas nas primeiras páginas: "O mundo do sonho, Havelock Ellis. London, Bombay, Sydney, Constable and Company, 1922". 

Águeda Prazeres tirou o livro de minhas mãos, dizendo querer ver direito, mas eu tomei de volta. Ela me censurou com o olhar, e tentei me justificar: "Espere, espere, Águeda!", disse, e mostrei a primeira página, que deveria estar em branco. Lá, nas margens das páginas, estava escrito o seguinte: "A.B.H., 1938, B.A.". Ela pegou, leu, e disse que deveríamos investigar imediatamente. Sugeriu que eu procurasse pelos escritores publicados recentemente na cidade, que um deles poderia ser pseudônimo de Hunter. E que ela iria continuar a investigar a outra pista, um endereço encontrado na margem de um manuscrito que nos fez viajar para Buenos Aires. Achei que poderia até ser divertido, e aceitei a proposta. 

Depois, pairou entre nós um silêncio constrangedor. Ela sentou e comeu uma tapioca de queijo e orégano que trouxe na bolsa, e eu continuei a ler Euclides da Cunha. Em algum momento ela disse, querendo descontrair, que estava saindo com um tal de Oliverio: 

"Marcou de me encontrar em um restaurante caro, e ainda pagou por tudo. Se eu te falar o tipo, você nem acredita. Estava sentada na mesa, examinando o cardápio, quando vi ele chegar. Se apresentou e disse ser o Oliverio. Jantamos ostras e bebemos vinho deliciosos. E ele pagou tudo".

"Então qual é exatamente o problema?", perguntei, intrigada com a história.

"Bom, ele era... feio", murmurou Águeda, sôfrega.

"Ele era feio?", repeti, fingindo não entender. Ela não disse mais nada, abaixou o rosto e soltou um suspiro. 

"Era mais a sua postura. Andava praticamente cabisbaixo, como se assim pudesse esconder sua vergonha do mundo", disse querendo justificar-se:"E eu não preciso mais sair com um homem que não ache atraente, você sabe bem que não preciso mais disso na minha vida, Leila".

No início da frase Águeda soava como uma criancinha medrosa. Ao pronunciar meu nome, seu comportamento contudo era outro. Desferiu um súbito soco contra a mesa da biblioteca, e gritou de frustração. Suas pupilas se dilataram, e sua fronte ficou vermelha de raiva. 

"Acalme-se, Águeda. Está tudo bem!", disse, abraçando-a com ternura, mas isso não foi capaz de aplacar sua cólera. Me empurrou para longe dela e ficou andando de um lado para o outro, bufando.

O funcionário apareceu, a sua vassoura empunhada como arma. "O que aconteceu, o que aconteceu?", exclamava.

Me aproximei de Águeda e perguntei se ela estava bem. O funcionário ficou assistindo às duas, como quem não entende nada. Ela respirou fundo, disse que não era nada, mas lembrei do canivete com que matou Huckle. Olhei para o bolso de sua calça jeans e encontrei lá o contorno da arma.

"Precisam de alguma coisa?", perguntou o solícito funcionário.

"Vamos pegar uma águinha para Águeda", eu disse, e com ele fui até o bebedouro. Puxei um copo plástico e enchi de água gelada. Ele ficou do meu lado, observando. "Sua amiga está bem?", coitadinho, estava assustado. Eu disse que sim, meti a mão na bolsa, tirei de lá um frasquinho e pingue uma gota no copo. Ela tocou o líquido, que ficou avermelhado por alguns segundos, e depois perfeitamente transparente. Seria impossível Águeda perceber que a água estava envenenada. Para garantir, fui até a mesa em que ficava o café e coloquei uma colherada de açúcar.

"Para ela se acalmar", eu disse, como quem confidencia uma travessura.

O funcionário assistia de boca aberta, a vassoura apertada na mão direita, o semblante gordo perplexo. Não podia acreditar no que seus olhos viam. Aquela jovem de cabelos loiros, que ele sempre achou ser uma flor de menina, estava ali, bem na sua frente, colocando drogas ou seja lá o que fosse dentro da bebida de uma mulher. E o pior era o jeito desinibido com que fazia isso, como se ele não estivesse ali, assistindo a tudo, como se já tivesse feito isso milhares de vezes.

Dei um sorrisinho, e o funcionário sorriu de volta. O composto era uma mistura de clonazepam com um estrato de ópio que eu havia preparado na véspera. Uma dose mínima e seria mais que o suficiente para ela ficar nas nuvens. Menos de uma hora e ela estaria mansa como um gatinho.

Voltamos os dois juntos para perto de Águeda, que ao ver nos aproximávamos esfregou os olhos chorosos. "Cuidado, ela pode se tornar perigosa a qualquer momento", sussurrei para o funcionário, e ele assentiu, sério, apertou com força a vassoura, como se ela fosse a sua única esperança de sair vivo. 

"Tome, Águeda, beba um pouquinho de água com açúcar", eu disse.

"Obrigada, amiga", e bebeu tudo de uma vez. "Vou me sentar um pouquinho aqui, tudo bem?", e se dirigiu para a cama que havia no canto da biblioteca.

Ficamos eu e o funcionário sozinhos. Ele se ajeitou, esticou as costas e estufou o peito. Apoiado sobre sua vassoura como se fosse um cajado, me explicou, sem gaguejar, que havia um pouco de chá na copa, e que os novos frequentadores da Miguel Cané deveriam se submeter a um ritual de iniciação para que seguissem frequentando a biblioteca. 

"Como?", perguntei, incrédula.

"É só ir na minha sala", me disse, "tomar um cházinho comigo...".

Olhei para o homem, para seu tipo gordo e inofensivo, e achei que não seria muito cortês de minha rejeitar a um convite. Perguntei para Águeda se estava tudo bem e ela resmungou qualquer coisa, já deitada sonolenta na cama, se cobrindo com os velhos lençóis que fediam à armário velho, e senti repulsa por ver uma criatura tão limpa como Águeda deitada em algo assim.

O funcionário então me tomou pelo braço, disse "vamos" e me lavou na direção de uma salinha que eu nunca tinha entrado. "O que vamos beber?", perguntei, me fazendo de inocente, sorrindo. "Psilocybe recém-colhidos, que juntei a mel e limão na água quente dessa jarra", me respondeu, mostrando a garrafa de vidro debaixo da luz de um candelabro.  A cor era escura, de um azul quase negro. "Os torrões boiando na superfície parecem estrelas em meio a uma galáxia escura", ele disse. Fiz uma careta, aquilo era nojento. "Não se preocupe", se apressou a dizer, "eu mesmo que moí os cogumelos, são da melhor qualidade, posso lhe assegurar, senhorita". 

Me deu a xícara e começou a encher outra para ele. "Minha querida amiga, acaricie a delicadeza dessa porcenala chinesa". Sem jeito, passei o indicador em seus contornos. "Isso", disse, e suas palavras tremiam de deleite. "Sinta o seu calor, absorva o cheiro estranho que meu elixir exala". Ele meteu o dedo dentro da bebida e leva à boca:"O seu gosto ocre, prove de uma vez". Estava impaciente, queria que eu tomasse logo a bebida. Fiz o mesmo que ele, coloquei o dedo e pinguei algumas gotas na minha língua. Quase vomitei. O gosto era tão repulsivo quanto a aparência. 

Essa cerimônia não é como as outras", retornou o funcionário a explicar, enquanto bebia de sua xícara. "Essa cerimônia, senhorita, está perfeitamente integrada ao homem e ao seu ambiente... Digamos, é algo que irá nos permitirá viver naturalmente, realizar nossas pulsões mais secretas, e não segundo às espúrias necessidades inventadas por essa sociedade imunda, minha amiga". E fez um gesto na direção da porta, como se quisesse deixar bem claro que o mundo lá fora não merecia qualquer comiseração.

E parecia verdadeiramente feliz. Eu ainda estava me recuperando daquela simples gota de chá quando ele me disse, cheio de pressa, "Vamos, vamos! Não temos tanto tempo!", e começou a beber de uma vez a sua xícara de chá: "Pre-pre-pre-precisamos ter ter o pico-co antes do meu antes do meu chefe chegar, não posso da-dar pin-pinta", explicou, sorrindo, olhando para o chão. 

Prendi a respiração e virei aquele líquido fétido em minha garganta. Dei um, dois, três goles grandes e no quarto engasguei. A xícara caiu no chão, e a porcelana se partiu. O chá sujou todo o chão de mármore negro. "Não se preocupe, não se preocupe, minha amiga!", ele me disse, erguendo a vassoura ao ar, de prontidão: "Eu trato de limpar isso agora mesmo, pegue logo outra no armário, tem mais chá na garrafa", e passou a esfregar a sujeira. Peguei a outra xícara, e ainda tonta, me servi de mais um pouquinho. Saí da copa, pigarreando para tentar tirar aquele gosto de minha garganta, sentei em uma das mesas da biblioteca e fiquei assistindo Águeda dormir como um anjinho. Minha mão tremia, e dei mais um gole no chá. 

Dez minutos depois a xícara estava vazia. O funcionário se juntou a mim, mas ficou varrendo a poeira. "Você até hoje não me disse o seu nome", eu disse, assistindo ele varrer. "Meu nome é Jorge", e sem parar de varrer me estendeu a mão para que eu apertasse. 

Aquilo de alguma forma selaria o início de uma aliança sórdida, pensei: Ele acobertando os meus crimes, e eu os dele. Fiz questão de não olhar para seu rosto enquanto apertei desajeitadamente a sua mão. Era áspera, e me passou uma impressão de sujeira. Jorge rapidamente recolheu a sua mão, como se temesse meu toque, e passou a varrer com mais ânimo, forçando a vassoura contra o chão.

"Be-be-be-bem..." - o pobrezinho tremia - "be-bebem, se se me permite eu vou falar falar eu vou falar eu vou ler esse trechinhozinho que tenho aqui aqui no bolso, uma fá-fá-fábula...". Apoiou a vassoura na parede, retirou um caderno do bolso e passou a ler:

"O céu estava escuro e carregado. Refletia o humor sombrio da multidão reunida na pista de corrida. Para todos era apenas mais um dia divertido. Tomavam cerveja, faziam churrasco. Mas para um homem, era um dia triste. Tinha quinze anos e já era manco, sua perna torta e torcida, e tinha um único em mente: impressionar a todos que estavam assistindo à corrida. Mas enquanto os corredores se posicionavam na linha de largada, era evidente que ele não tinha a menor chance de vencer. Eram altos e fortes, suas carnes tingidas pelo sol e tonificadas pelos meses de treinamento. A arma foi disparada, e os corredores saíram correndo, deixando o manco para trás. Ele lutou para seguir em frente, sua perna arrastando-se atrás dele enquanto se arrastava pela pista. Elizabeth olhou-o com compaixão, seus olhos cheios de tristeza enquanto via lutar o coxo contra o próprio corpo.

A corrida estava chegando ao fim, era óbvio que o vencedor seria o homem bonito, alto e moreno que havia tomado a liderança logo no início. A multidão explodiu em vivas enquanto ele cruzava a linha de chegada, e ninguém prestou atenção no homem manco que havia chegado em último lugar. Até Elizabeth foi com eles.

Enquanto a multidão se dispersava e os corredores comemoravam suas vitórias, o manco se afastou, sua cabeça pendendo baixa em derrota".

Levantou a cabeça, e sem esboçar nenhuma reação, olhou para mim. "É sua?", perguntei, desconcertada. "É sim", ele me respondeu. Fechou o livro e me olhou mais uma vez, esperando algum comentário: "Você é escritora, não é?", me perguntou. Como ele sabia disso? Nunca contei para ele nada a respeito de mim. "Bem...", e eu não soube o que dizer, e disse que o texto era muito emotivo e profundo, e que fiquei realmente comovida com a sua crueldade. Ela pareceu ficar satisfeito com minhas palavras; Sentou na mesa, ao meu lado, e disse sorrindo que o chá já estava começando a bater, e que teríamos uma deliciosa tarde pela frente.

Ele se manteve sorrindo, ao meu lado, mas não falou nenhuma palavra. Constrangida, olhei para a parede e vi uma baratinha. Me levantei, pedindo licença, Peguei o livro que estava lendo mais cedo e, com um golpe certeiro, matei o inseto. Uma gosma verde ficou grudada na capa, bem em cima do retrato do autor.

"Você estava lendo a Euclides da Cunha", exclamou ele, encantado, observando a capa de Los Sertones. Expliquei que no Brasil trabalhei como editora de uma revista, e até que publiquei alguns contos naturalistas, mas que hoje havia desistido das palavras, que preferia trabalhar com música. Jorge me confessou ter escrito uma novela, ainda sem título, e que iria me dar os manuscritos para que pudesse opinar. Eu disse que tudo bem. Depois, me pediu para ouvir alguma canção de minha autoria, e à contragosto tirei uma fita-cassete da bolsa e coloquei no tocador da biblioteca. Depois de alguns segundos de estática, começou a tocar um violão velho e desafinado, em um ritmo que se mantinha o mesmo, sempre duas notas hipnoticamente alternadas entre o ruído abafado das cordas. Meus dedos se lembraram da sensação daquelas cordas, e das notas que entravam por dentro deles e corriam até alcançar os seus olhos. Cada som emitido vibrava aos meus nervos, e faziam o mundo ao meu redor estremecer. E passamos esses minutos que duraram mais que a eternidade assim, discutindo sobre os poucos escritores brasileiros que ele já ouvira falar, como Coelho Neto, Graça Aranha e Oliveira Viana, e censurei ele por nunca ter lido a Aluízio de Azevedo, à despeito do seu interesse pelo realismo. Em algum momento ocorreu algo estranho, tive uma alucinação, não sei, deve ter sido o alucinógeno. Nunca havia visto nada parecido. Tudo estava mais vívido, mais belo, grandioso e, às vezes, estranhamente melancólico, grotesco. Olhei para o rosto de Jorge e vi sua bochechona, as fissuras de sua pele, o bigode feito. Quantos anos devia ter esse homem? Trinta, quarenta, Cinquenta? A idade de meu pai. E era feio, coitado. O terno surrado, também, dois números acima, não ajudava. Olhei para seu rosto e ele olhou para o meu. Sua pele piscava em rosa, verde e amarelo. Enquanto Jorge abria e fechava a boca para falar palavras que eu sequer conseguir entender, pois falava muito rápido, e gaguejando mais do que nunca, seu queixo se liquifazia, e palavra por palavra era derramado no chão.

"Senhor...", me precipitei em sua direção, preocupada, mas com um movimento ele virou a cara e escondeu ela para o lado. Eu só queria ajudá-lo. "O que está acontecendo?", perguntei algumas vezes até que virasse para mim. "Seus olhos são lindos", me disse, comovido. Colocou a mão no meu joelho e apertou delicadamente.

Agora era eu que não tinha coragem de olhar para ele. Olhava para a parede velha de alvenaria, e atordoava sequer registrei o que me disse a seguir. "Obrigada", respondi baixinho, apenas para não parecer mal-educada.

"Posso lhe beijar, se-senhorita?", sussurrou no meu ouvido depois de alguns segundos.

Olhei então mais uma vez em seu rosto. Estava no lugar, e brilhava em cores estranhas, que lhe davam um aspecto fantasmagórico. Seus olhinhos desviaram ao sentir meu olhar. As pupílas eram do tamanho de bolinhas de gude, e muito escuras. Demorei alguns segundos sem responder, olhando aqueles olhos sombrios. Ele se aproximou de meu rosto e me deu alguns selinhos, a mão nervosamente apertando meu ombro. "Não!", eu exclamei, me afastando, e disse que não queria, que era comprometida, e que me desculpasse pela descortesia. Ele disse que quem tinha que se desculpar era ele, e ficou cabisbaixo, olhando para a gravata, e fingindo ajeitá-la, em silêncio.

"Acho que vou embora", eu disse por fim. Ele assentiu. Deu um sorrisinho amarelo e me acenou, me desejou boa tarde. Acordei Águeda, que ainda estava grogue, e disse que precisávamos ir embora. Ela assentiu, e fomos sem nos demorar mais tempo.







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