Poderia atribuir o desregramento das últimas semanas aos danos nevrológicos ocasionados durante a confortável estadia na casa dos amáveis pais de minha ex-namorada. Nunca compreendi uma família feliz; para mim toda mesa de jantar é uma cena flaubertiana em que algum personagem secretamente quer matar-se com a faca de cortar pão. E na luxuosa casa alugada pelos meus ex-sogros, além de ser necessário jantar todos os dias em família, sorrir e conversar, a conversa muitas vezes era atravessada pelo inglês, já que meu ex-sogro é originário da Irlanda.
Claro, todos eram muito amáveis, e delicadamente falavam quase sempre em português quando em minha presença. Meu superego era quem me condenava por não saber articular corretamente os fonemas dessa língua dos infernos, e cada palavra que eu pensava em dizer eu me obrigava a pensar de novo e calá-la, pois me parecia sempre uma grande descortesia não exprimir meu pensamento dentro dos limites do inglês.
Não que eu tivesse muita coisa a dizer. Na verdade, na grande parte do tempo preferia ficar calado. E isso incomodava minha namorada.
Quer dizer, ex-namorada. Depois de mais uma briga (brigamos quase todos os dias durante a estadia em Paraty), dessa vez em uma lanchonete de bairro, levantei-me, engoli o choro na hora de pagar a conta e saí correndo pelas ruas da Tijuca. Estava com ódio de mim mesmo. As lágrimas queimavam meus olhos. Eu só queria morrer, e lembrei que na minha carteira havia alguns quadrados de LSD que eu não havia vendido na festa que fui no dia anterior.
Havia ido para uma festa de Techno na madrugada anterior por dois motivos. Primeiro pois me pareceu um tratamento adequado, extravasar toda a tensão da viagem com música, dança e drogas sintéticas. Segundo pois poderia recuperar parte do dinheiro gasto na viagem vendendo droga à custo hiper-faturado.
Nesse dia tomei um quadrado de LSD, cheirei um pouquinho de quetamina e uns comprimidos de clonazepam. Depois de dormir umas quatro horas, achei que seria bom escrever. Peguei a pouca maconha que me restava e preparei com leite. Era tão pouco que quase não me fez efeito. Então resolvi tomar quatro comprimidos de clonazepam para ver como batia.
No dia seguinte, depois de 14 horas de sono, levantei feito um zumbi. Eram quase quatro da tarde, e eu havia perdido um compromisso com Clara (várias mensagens dela no meu celular, reclamando). Como um zumbi, fiz algo para comer, provavelmente ovo frito, e deitei novamente, provavelmente para assistir youtube.
Não via Helena desde que retornamos de Paraty. Havíamos combinados um tempo, dar espaço um ao outro, depois de tantas brigas, repensar a relação. E depois de quase uma semana sem vê-la, eu já estava morrendo de saudade. Fomos então nos encontrar na lanchonete e, por conta da noite anterior, da maconha e dos tranquilizantes, bom, eu estava como um zumbi. Ela me disse que não queria namorar um zumbi. Que estava chegando cansada do trabalho e queria alguém que lhe animasse, que lhe desse vida, e não um zumbi. E eu era um zumbi, mas um zumbi sentimental, desses que sentem cada palavra como se fosse uma faca contra a pele. Deu-se então a cena já descrita: saí correndo da lanchonete, chorando, lembrei-me do LSD em minha carteira (havia quatro ou cinco quadrados), e me pareceu que seria uma boa ideia tomá-los todos antes de me matar. E assim o fiz.
Já em casa, executei algumas sessões de enforcamento até quase desmaiar, desferi murros e arranhões em minha cara e pernas. O mundo inteiro já estava desfigurado pelo ácido, mas não tanto quanto meu pensamento. Diante do espelho passei a falar com minha própria imagem, mas quem falava não era eu, e sim o demônio que volta e meia me possui, e que por isso mantenho uma imagem de São Judas Tadeu para vigiar-me aqui no quarto. O demônio então me disse que se eu já iria morrer, não precisava morrer assim, um patético suicida. Que poderia ir para as ruas, que poderia beber e procurar festas em plena segunda-feira, que não havia mais qualquer medo, que eu poderia terminar a noite lambendo a lama no centro, ou então com a cara estourada no alto da Mangueira, nada havia a ser temido, pois como morto, quem diria, eu recebera pela primeira vez a vida em sua forma mais livre e soberana.
Fui para o boteco do bairro e bebi uns três copos de cachaça em meia hora. Já era quase meia noite e tudo estava fechando, perguntei ao taxista onde a noite continuaria, ele disse Pedra do Sal. Mas eu não lembro mais de nada direito. Devo ter mandado mensagem para alguém, para meu irmão ou para Helena, porque os dois apareceram, me enfiaram no carro do meu irmão e, sob gritos e esperneios, me levaram para um hospital. Lá tomei soro, bradei contra o poder médico de simplesmente interditar meu corpo e meu desejo, meu irmão mandou eu calar a boca, fomos para casa, lá gritei com Helena e falei que eu não aguentava mais ser quem ela queria que eu fosse, que ela não me amava, que ela amava a fantasia que queria me transformar, e em certo momento, inconsciente ou não, fiz a paródia de uma cena dostoievskiana e atirei-me aos seus pés, e de forma cínica, debochada, tentei beijar e lamber a sola de seus pés, jurando submissão eterna. Ela recuou, assustada. Eu me encolhi em posição fetal e, como um bebê, comecei a chorar e pedir permissão a ela para que eu me matasse, pois não aguentava mais viver.
Ela ainda dormiu uma última noite ao meu lado antes de terminar de vez comigo.
A vida segue, e a gente segue com ela. Conheci em seguida Beatriz, viciada em cocaína e outros fármacos. Passei alguns dias com ela, cheirando pó e quetamina. Para me distrair da dor, sentava-me diante do computador, cheirava algumas carreiras de ritalina e escrevia como um louco minha tese sobre Gilberto Freyre (progresso considerável: em uns três dias alcancei a impressionante cifra de 38 páginas completas).
Desde o incidente com o LSD, contudo, passaram a me acusar de toxicômano. Com esperanças de ter Helena de volta, concordei com meu sintoma, mas nada adiantou.
Hoje, durante a aula de bio-dança que faço com Clara, a professora passou a falar da vida. Das bactérias, fungos, árvores, pássaros, de como tudo está infestado de vitalidade. Falou palavras bonitas, ordinárias, sim, mas que para mim, que só pensava em morte, me fizeram chorar. E em algum momento, quando falou de cultivar seu jardim, me lembrou o desfecho de Cândido... Que precisarei aqui transcrever.
Pangloss dizia às vezes a Cândido: “Todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivésseis sido expulso de um lindo castelo a grandes pontapés no traseiro pelo amor da senhorita Cunegunda, se não tivésseis sido submetido à Inquisição, se não tivésseis percorrido a América a pé, se não tivésseis dado um bom golpe de espada no barão, se não tivésseis perdido todos os vossos carneiros do bom país de Eldorado, não comeríeis aqui cidras recheadas de pistaches”. “Isso está bem falado”, respondeu Cândido, “mas é preciso cultivar o nosso jardim”.
Hoje é meu primeiro dia de sobriedade. O primeiro de sete dias longos. O primeiro de uma demorada contagem regressiva para o carnaval. No carnaval, me darei permissão de morrer mais uma vez. Sei que não será a última. Mas morrerei com a esperança de que as próximas vidas sejam mais saudáveis que a atual.
O primeiro dia de sete.
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