segunda-feira, 22 de julho de 2024

14. sobre o sumiço de azevedo diniz

estava, azevedo diniz, deitado sob o cobertor. 

há muito tempo que não ouviam falar de oliveira diniz. estava, encafifado no porão de uma velha casa, fugitivo da polícia depois do caso de estupro. 

no rio de janeiro, os amigos falavam com a voz baixa, sem querer acreditar que um rapaz direito como azevedo diniz pudesse cometer crimes na calada da noite. como aquele poeta talentoso, com um futuro enorme pela frente, a chance de se tornar um grande escritor, e brindar seu país com a primeira obra da literatura universal, poderia jogar tudo no lixo? 

era assim que comentavam no escritório.

praxedes, que jogava futebol até sofrer acidente trágico em um automóvel e perder seu pé esquerdo, falava disso a um repórter vestido em boina quadriculada e fumando cigarro mata-rato fedido. 

praxedes, pela potência do chute, era conhecido como "o canhotinha". o pé arrancado pelo acidente, justamente o esquerdo, desaparecido enquanto carne, no entanto permanecia parte daquele rapaz que fora a promessa do bangu futebol clube, fosse em suas frustrações com a carreira desperdiçada, com o dinheiro e mulheres que perdeu, com o destino de escritório medíocre, a vergonha de andar por aí com aquela prótese metálica extravagante, o jeito torto que lhe olhavam as crianças, o jeito cínico que as moças desviavam o olhar e fingiam nada ver, fosse com as dores causadas pela síndrome do membro fantasma. enquanto sentia o cotoco doer, falava ao repórter sobre ora sobre a decisão criminosa de alguém que considerava um homem bom, ora sobre a intempérie estúpida de um sujeito que achava ter todos os parafusos na cabeça. no final, chegou um fotógrafo e tirou uma foto de praxedes. 

a dupla do jornal arrebol madrugador se retirou e quando os funcionários ficaram a sós, na copa da empresa, disse anacleto, em coro ao depoimento dado por seu colega praxedes: o trabalho é tudo na vida de um homem. é o poder de ter dinheiro que permite que realize seus sonhos. que case com uma boa mulher. que possa conhecer a frança.

maria, que era religiosa, replicou, revirando os olhos com tamanho materialismo: isso porque todos os seus sonhos estão todos relacionados com dinheiro. mas só cristo é o caminho para o céu.

alma, que era socialista, entre goles de cafezinho, dá uma risada jocosa: a deus o que é de deus, a césar o que é de césar.

falou aquilo em tom de voz baixo, para que o chefe júlio césar, que estava chegando, fumando seu charuto, não pudesse ouvir o deboche.

vamos, disse o chefe, sujeito obeso e que cheirava exageradamente a colônia francesa, quero todos de volta ao trabalho. não tem mais nada para discutirem sobre essa história. e virou para praxedes, irritado: e não quero mais saber de entrevistas ao jornal, ouviu bem? 

praxedes nada disse. todos foram de volta a suas mesas. anacleto pensando se valeria assim tanto a pena estuprar uma moça. maria pensando nos olhos de thomas plínio, que na noite passada fez-lhe promessas de amor açuradas. estavam em um velho engenho longe da cidade, e depois de fazer amor, caídos entre o monte de palha que cheirava a animais e à lubricidade recém terminada do casal, ele prometia que iria largar o seminário para casar com ela. alma pensava em como os homens somente pensam em ganhar dinheiro. o inferno para os homens enão era nenhum dos castigos excepcionais daqueles narrados no livro em versos que azevedo diniz havia emprestado-a antes de foragir (estavam tomando cerveja em um apartamento, e ele entregou o livro com uma dedicatória: "somente anjos podem verdadeiramente acreditar no céu. seu, azevedo diniz"), mas sim uma ausência total, uma negativa de qualquer desejo. e se é o dinheiro que cumpre todos desejos do homem, então não ter dinheiro que é o verdadeiro inferno. alma suspirou. tão difícil conhecer alguém, pensava, escondendo o choro entre o lenço de pano. e praxedes, mancando, pensava em como incomodava ter que andar com a perna mecânica.

o fotógrafo revela o filme. enquanto a imagem da fotografia se revela, oswaldino pereira reparou que o entrevistado da repartição era praxedes, que havia jogado na base do bangu. comenta para um colega mais velho que reconhece de imediato o canhotinha. conta a história para oswaldino, que conta de novo para o repórter, nelson rodrigues. esse fica fascinado com a junção de duas histórias diferentes. como era linda a vida!, pensava nelson rodrigues. como era trágica! duas tragédias diferentes assim ligadas, pelo acaso ou por deus. nelson rodrigues não sabia quem era o autor da realidade, mas reverenciava como um grande mestre. era, nelson rodrigues, um naturalista convicto: acreditava que as melhores histórias eram escritas pela própria vida. o bom escritor, ele explicava para quem quisesse ouvir, precisa perder menos tempo lendo um monte de historinha inventada para vender folhetim e passar a prestar atenção nos arredores. o documento era a mais elevada forma de literatura; e se os parnesianos ainda estivessem perdendo tempo com seus joguinhos de palavras, com a imaginação de mil e uma maneiras exatamente iguais de agradar um público estúpido de eruditos, bem, azar o deles. nelson rodrigues era um dos escritores mais lidos da cidade, em suas colunas diárias do arrebol madrugador. essa história desse azevedo diniz já era um achado. um jovem bonito, com emprego, poeta conhecido no círculo dos engomadinhos da academia, estuprando a própria irmã. que história! atirado em sua mesa de trabalho, nelson rodrigues fez questão de reler algumas páginas do manual de psicanálise que tinha na estante, escrito pelo médico arthur ramos. em seguida, passou a escrever a reportagem do dia seguinte. 

"o que leva um homem a desejar a própria irmã?

"doutor freud, ilustre médico alemão e inventor da psicanálise, escreveu que não existe nenhuma determinação na conduta moral do homem, nem mesmo naquilo que se refere aos seus impulsos amorosos. como todo animal, precisamos seguir as necessidades da natureza, e o impulso reprodutor não possui nenhuma prescrição fora o imperioso impulso de inseminar a fêmea. 

"certa vez, depois de uma conferência proferida na faculdade de direito, o ilustre doutor arthur ramos, que ano passado se tornou o segundo presidente do clube psicanalítico do rio de janeiro (lembremos que um de seus fundadores e primeiro presidente, o saudoso doutor fréderik nos deixou depois de um acidente em seu submarino) explicou pessoalmente que o impulso reprodutivo não possui nenhuma limitação a prioristica, mas que a civilização, pela força da lei, imprime seus desígnios ao desejo desregrado do homem. 'é dessa forma', explicou, 'que o humano deixa de ser um animal racional e se torna um animal político: pela repressão dos instintos naturais e a criação de necessidades artificiais, reações fantasiosas que passam a orientar a vida psíquica da pessoa'.

"o tabu do incesto vem a ser como forma de impedir a multiplicação dos indices patogênicos dos grupos genealógicos. o cruzamento endogâmicos, ao longo das gerações, eleva a ocorrência de comorbidades, já que multiplicam gradualmente a porcentagem dos genes defeituosos. na mesma medida que o material eugênico de-vem para sua forma especializada, o acúmulo dos caracteres cacofônicos também se acentuam até o ponto em que se faz surgir, inesperadamente, mesmo que de pais perfeitamente normais, as mais inesperadas monstruosidades.

"os casos de psiquiatria severa estão crescendo no país. alguns pensam se tratar da importação de uma forma de vida desenvolvida a um país totalmente selvagem em sua constituição. os brasileiros, compostos pelo menos em duas terças partes de material genético inferior, não possuem capacidade psíquica para viver o ritmo veloz da vida moderna. os carros não cessam de causar acidentes fatais. os casos de alcoolismo crescem. e mesmo as animalidades mais pulgentes começam a surgir, nesse caso de atavismo profundo que é a história de nosso país. os jovens, deprimidos, fracos, estúpidos, bestializados pela vida, desenraizado da tradição, perdem toda fibra moral. degeneram ao estado mais primitivo de sua genealogia. 

"esse foi o caso de azevedo diniz, que na segunda-feira do dia treze desse mês cometeu um crime horrendo. depois de um jantar na casa dos pais, foi até o quarto da irmã e violou-a. foi para casa como se nada tivesse acontecido. seu colega de trabalho, que havia jogado no bangu fc na juventude e prometia ser um grande craque antes do acidente de automóvil que amputou sua perna, o canhotinha praxedes, contou que azevedo diniz foi ainda por três dias de trabalho antes de desaparecer. não se sabe o porque da família ter ido a polícia, mas a coragem de denunciarem um crime abominável - que não mancha de forma alguma a pureza de uma mulher inocente, esposa casada e zelosa do lar - mesmo que cometido por alguém da própria família.

"azevedo diniz segue foragido. a polícia informou que não poupará esforços para enviar o criminiso à cadeia."

em uma cabana localizada em uma rua miserável de são cristóvão, azevedo diniz escrevia uma carta em que explicava não ter nada haver com aquele crime. pagou um escravo para que enviasse à casa de lola baruch. a jovem, quando reconheceu a letra de azevedo diniz, não conseguiu disfarçar o tremor. sua tia perguntou, mexeriqueira, o que era, mas lola baruch mentiu. a tia fingiu acreditar, mas lola baruch sabia que contaria para sua mãe. andaram o resto do caminho com a tia falando de um assunto qualquer, fingindo que nada havia acontecido. na cabeça de lola baruch, o que acontecia afinal? não sabemos, mas sabemos que no dia seguinte foi até a polícia, junto do pai e da mãe, e deu seu depoimento sobre azevedo diniz. dizia não acreditar que seu amigo pudesse cometer um crime desses, e contou haver desavenças graves entre o pai de azevedo diniz e ele. cogitou, para os dois detetives, a possibilidade daquilo ser uma armação. 

como provar que ela foi mesmo estuprada?, lola baruch perguntou. sua mãe levou a mão à boca ao ouvir aquela palavra. 

menina!, exclamou colérico o pai e agarrou seu braço com força. ela ganiu de dor e tentou arrancá-lo, mas os dedos eram fortes. levantou-se, puxando lola baruch, que sôfrega foi conduzida para fora da delegacia. os detetives se entreolharam. travinarus sugeriu que aquela hipótese não poderia ser descartada. seu parceiro, o comissário lemrot, era cético. ninguém difamaria a honra da filha assim, a troco de nada. quer dizer, azevedo diniz e seu pai deveriam se odiar, e somente por conta desse ódio que o pai pode entregar a vergonha da filha para toda a sociedade assistir. mas duvidava que tivesse fabricado aquela história para incriminar gratuitamente azevedo diniz. travinarus, contudo, argumentou não haver prova empírica de que a mulher foi mesmo estrupada. lemrot então suspirou, cansado, e mandou que solicitasse ao juíz um mandato para fazer o exame ginecológico na vítima. é pra já, disse animado travinarus, que adorava fazer exames ginecológicos.


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