quinta-feira, 25 de julho de 2024

o escravo dialético

a tematização do universal e do infinito, que parecem contraditórias, são no entanto relacionados: é pelo aparelho da razão, força universal, capaz de romper as determinações e condicionamentos da vida natural, e mesmo cultural e histórica, em seu estado de anestesia reflexiva, que o ser humano se põe na relação com o outro. 

a alteridade iluminista, de maneira que para o pós-estruturalismo já se tornou estranha e ideológica, parte do aparelho imperial e colonialista europeu, era somente possível de se formular dentro da perspectiva da reação da razão diante das forças condicionantes a que estava sujeita a consciência. 

desde o ponto de vista em que a filosofia do iluminismo já estava em crise, adorno irá reformular o hegelianismo a partir de sua dialética negativa, em que a síntese "não é apenas a qualidade emergente da negação determinada e simplesmente nova, mas o retorno do negado; a progressão dialética é sempre também um recurso àquilo que se tornou vítima do conceito progressivo. o progresso na concreção do conceito é sua autocorreção". (dialética negativa, p. 276). 

a perspectiva da razão corrigir a própria razão parece ser uma espécie de nova volta no parafuso: a vigilância em que a razão já havia criticamente posto a consciência irrefletida agora deve vigiar também a si mesma, aos seus próprios produtos. as negações determinadas, produzidas no movimento dialético, se fazem um conceito, é sempre um conceito parcial, que produz sua positividade ao passo que produz sua negatividade: acende uma luz tão rápido quanto apaga outra. 

não é de surpreender que o dialético, na caracterização tão representativa do próprio adorno, é essencialmente não somente um paranoico, sempre desconfiado de tudo e mesmo de si, mas também um operário do conceito, sempre a beira da exaustão, sempre a beira do colapso nevrático, já que o tempo inteiro posto na obrigação do movimento, da negação das suas negações prévias. se a verdade dialética formula um conceito de reificação do conceito, conceito em que o conceito tende, pela lei natural de seu movimento, a se esquecer de sua própria conceitualidade, a possibilidade de uma "filosofia primeira", fundamento em que irá se arquitetar, de forma crescente, do princípio as consequências, em série lógica dedutiva, a lei da verdade, está totalmente rejeitada: os princípios primeiro, pois, caducam tão logo desapareça a experiência real e histórica de sua produção. 

a filosofia só ocorre processualmente, o conceito, portanto, precisa ser continuamente recriado para assim dar vazão ao esforço do filosofar: e se o conceito é puro trabalho de levar o irracional à sua superação reflexiva e morte (três estudos, p. 163), é porque o entendimento é produto do trabalho, em oposição à sensibilidade, que antes é o dado, ou ainda, a submissão do sujeito ao trabalho pretérito, seu laço de sujeição com o trabalho conceitual prévio, que lhe determina e condiciona. "o primado do logos sempre foi um fragmento da moral do trabalho". (três estudos, p. 95). nietzsche, na sua sabedoria singular, não por acaso caracteriza sócrates, o pai de todos os dialéticos, como alguém em luta contra a natureza das coisas, que emprega a dialética para matar tudo aquilo que deveria ser simplesmente porque é. e ainda: contra todo o trabalho do conceito prévio, esquecido, mas atuante contra sócrates. o trabalho do passado atormenta e escraviza o futuro. e adorno, descendente socrático, no seu século xx, assim como maiakovski no reino vizinho da poesia, somente pode dar expressão a essa ânsia filosófica por meio dessa reflexão incessante, essa luta consigo mesmo e contra o mundo do hábito, contra a suspeição continua de tudo que existe: é sob essa forma doentia que o filósofo dialético deve existir.

"pois esse momento de tensão violenta - reflexo das necessidades da vida -, que caracteriza todo trabalho, está ligado a todo pensamento; o esforço e a tensão do conceito não são metafóricos" (p. 95). o verdadeiro filósofo, afinal, é sempre o escravo.

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