- não entendo uma geração que não gosta de carros, disse o pai, ainda sentado na apertada mesa de jantar de plástico coberta por uma toalha de pano quadriculado, para seu filho, que depois de comer rápido, se levantava para colocar o prato na pia.
- eu odeio carros, retrucou rispidamente, deixou o prato na pia e se retirou até seu quarto. o pai ouviu a porta bater, suspirou e voltou a comer o pedaço de bife com arroz e feijão.
mariano era um sujeito retraído, que estudava informática em uma universidade estadual pequena. de segunda à sexta, ia, liturgicamente, caminhando em seus tênis gastos de corrida, assistir suas aulas de cálculo diferencial e integral, lógica booleana e linguagens como c++ e heskell.
- essa é uma linguagem funcional pura, dizia o seu professor de heskell, paul virílio, vestido em seu jalecos cumpridos e com sua pelagem como sempre cumprida e despenteada. - heskell é baseado na teoria das categorias e das funções abstratas, conforme estudamos naqueles artigos de eilenberg e mac lane.
paul virilo anotou no quadro negro as palavras "MONADS", "FUNCTORS"e "APPLICATIVES", circulou-as com giz vermelho e continuou:
- graças à sua linguagem categórica e geral, em heskell os mesmos argumentos sempre retornarão com o mesmo resultado, sem jamais modificar o estado do sistema ou os dados para fora dos limites previamente estipulados enquanto conceitos primeiros. depois de programado o que eillenberg chamou de Grundkonzept - eillenberg escreveu a palavra no quadro, abaixo das demais -, que eillenberg cunhou nos anos em que frequentou o círculo de viena. o círculo de viena, como disse na última aula, eram conhecidos por seu positivismo lógico, sua defesa de uma ciência empírica positiva, estritamente fenomenal, e avesso às especulações metafísicas empreendidas pelos idealistas ou, como eles chamavam, os "absolutistas alemães" que deram sequência à crítica metafísica de kant. foi o círculo de viena um dos criadores daquilo que ficou conhecida como "filosofia analítica". heskell também possibilita a redefinição da Grundkoncept a partir da redefinição de seus componentes internos. assim, se é possível iniciar o programa a partir de uma diretriz-geral, também é possível fazê-lo a partir de comandos indutivos, cujos valores inseridos irão automaticamente atualizar o comando original.
o professor olhou as horas em seu relógio de pulso, constatou que a aula já havia terminado e, sem sequer parar de falar, como se ainda estivesse falando sobre heskell, mudou de assunto e pediu aos alunos que lessem o artigo da próxima aula:
- precisamos tratar dos arrows e monads que permitem a heskell composição de funções ainda mais complexas, quem deixar de ler esse capítulo não vai compreender o porquê de estarem substituindo o c++ pelo heskell nas novas inteligências artificiais. um: programação funcional pura. dois: codificação imutável. três: funções sem efeitos colaterais. c++ se restringe a brincar com a linguagem da matemática, com a rígida lógica booleana, enquanto heskell trabalha com conceitos mais próximos da filosofia continental.
os alunos saíram, alguns ficaram para conversar com paul virílio, mariano um deles. no corredor, fumando um cigarro, paul virílio contou que heskell ter se aproximado dos continentais foi por conta de sua amizade com lorenz oken:
- interlocutor de schelling, adepto da Naturphilosophie, precursor de darwin e pensador da biologia que apenas se inicia, sem ainda ter se constituído o corpo disciplinar que caracteriza-a desde o final do século passado. loranz oken também produziu aquilo que os metafísicos alemães chamavam de sistemas de mundo, ou Weltgefüge.
- sei o que quer dizer por welt, mas gefüge é uma variação de system?, quis saber morgana, que era estudante de alemão e viveu mais de um ano em berlim - porque sei que na alemanha hoje falam em system, palavra que no entanto, no início do século passado, mal era usada nem na filosofia e nem na ciência física alemã.
- sim, morgana, tens razão, disse o professor virílio, gefüge é uma palavra falada entre aquele povo germânico que o latino tácito descreveu como bárbaros. no século xix, era usado tanto para se referir a uma estrutura física, como um edifício ou uma cidade, quanto para uma estrutura social ou política -.
disse como que para si mesmo:
- Das politische Gefüge Deutschlands ist geprägt von einer föderalen Struktur, in der die Bundesländer im Vergleich zur Bundesregierung eine beträchtliche Autonomie besitzen.
como que percebendo a inconveniência de falar alemão entre reles bacharéis brasileiros, traduziu rapidamente:
- Traduzindo para o português: "A estrutura política da Alemanha de hoje é marcada por uma organização federal, em que os estados possuem uma considerável autonomia em relação ao governo federal".
- nesse caso, Gefüge é usado para descrever a forma particular da burocracia estatal alemã?, falou mariano, querendo parecer inteligente aos demais.
- as instituições políticas que organizam e interagem entre si na Alemanha, disse vagamente paul virílio, e passou para a variedade de usos da palavra Gefüge:
- o Gefüge, e isso é o mais importante quanto a sua filologia, já era usado entre os bárbaros germânicas para se referir à organização política das suas tribos. ou, conforme relatou tácito, a organização de suas clãs e tribos, divididas em grupos familiares extensos chamados de clãs, que se expandia para formas de parentesco mais distantes desse núcleo familiar.
- o Gefüge era usado para caracterizar a aliança dos povos germânicos a partir dos laços de parentesco registrados?, perguntou Morgana. - Quer dizer, tentou deixar mais claro, que o regime de parentesco de clã era possível somente por uma forma de registrar a genealogia, as relações de parentesco entre as pessoas. como se falava clã na alta germânia, já que clã é uma palavra escocesa?
- entre a tribo relatada como bárbaros por tácito, o latino historiador?, indagou paul virílio, enquanto coçava o queixo peludo.
- sim, os germânicos, quis saber morgana.
- responder com exatidão aos clãs da alta germânia é complicado. o relato de tácito é uma das únicas fontes escritas alfabéticas delas. muitas tribos germânicas da época não possuíam uma escrita desenvolvida. ou seja, o que conhecemos dos germânicos está restrita às palavras inventadas no império romano. o principal meio de conhecer os germânicos é o relato de seus inimigos latinos. quero dizer, que tinha uma visão do povo germânico como uma raça inferior. suas tribos, no entanto, possuía uma língua oral complexa, de diversos dialetos, e mitologia riquíssima de coleções sapientes.
- não havia um termo único e universal para "clã".
- não é isso. as línguas evoluem ao longo do tempo, as línguas germânicas não são exceção. eles eram capazes de nomear a entidade metafísica do clã: a organização conceitual que toma por base o registro de relações de parentesco. as palavras e expressões usadas naquela época, no entanto, por não terem sido escritas, podem ter sofrido mudanças significativas, ou até mesmo desaparecido. é impossível querer avaliar o saber da filosofia dos bárbaros sem o fato deles ter composto um gênero de escrito com esse nome.
- mas isso não quer dizer que, pela linguagem oral, os bárbaros filosofavam?
era andy kaufman que interpolava. havia acabado de chegar para a aula, mas descobriu que já havia acabado. estava com uma camisa do vasco dos anos noventa e nariz escorrendo. ele esfregou o nariz com um lenço e se explicou:
- desculpem, estou gripado. não dormi à noite toda, ardendo em febre, e acabei tirando a manhã para descansar um pouco mais. estava me sentindo melhor, e então decidi tomar o trem, em suas mais de duas horas de viagem, esperando chegar a tempo para a aula de nature-philosophie do professor azevedo diniz, mas ela já havia terminado. resolvi vim ver se pegava o final da aula de heskell, morgana me falou que iriam falar de grund-koncepts, mas pelo visto estou com a azar. a aula já terminou?
- já, era melhor não ter perdido seu tempo vindo dos subúrbios até o centro da cidade. agora terá que fazer outra longa viagem para aquele seu vilarejo distante que me esqueci o nome.
- moro em cosmos, respondeu secamente andy kaufman.
- isso, cosmos, nome lindo, me lembra um conceito, disse mariano, tentando impressionar morgana, mas ela não parece ter reparado nele. depois de um silêncio desconfortável em que o professor paulo virílio manifestou seu desconforto em relação à interrupção daquele aluno andy kaufman, o professor tentou redobrar seu discurso ordeiro:
- falava que os germânicos se uniam em tribos maiores. as relações de parentesco que unia os bárbaros, que servia aos bárbaros para identificarem um ao outro como amigos: o seu tipo de cabelo, a cor de sua pele, os traços de sua fisionomia.
- quer dizer..., interrompeu andy kaufman, que os bárbaros usavam seus traços raciais para se organizar enquanto uma organização social e militar?
- como assim?, quis saber o professor, sem entender nada daquilo.
- quer dizer, bem, se os bárbaros tinham regras de parentesco, quer dizer que eles escolhiam com quem os filhos deveriam se casar a partir de algumas regras. essas regras constituíam uma delimitação das formas de casamento com o objetivo de manter o poder entre os donos das propriedades fundiárias. a propriedade da terra entre os germânicos era coletiva, mas restrita aos laços familiares edipianos, conforme compostos pelos tabus de incesto.
- incesto?
- sim, as relações em que se estão proibido o casamento. a endogamia era comum entre os povos germânicos. alguns autores de história e estratégia militar descrevem como os laços de parentesco e a coesão social são formas eficazes de organizar exércitos e promover guerras. os bárbaros eram povos guerreiros, que se expandiu consideravelmente a extensão do seu território ao longo da antiguidade. a propriedade fundiária era considerado um bem comum, pertencente à tribo ou ao clã. para trabalhar em suas terras, eles tinham escravos que capturavam de outras terras. A escravidão era forma de organização sexual entre os bárbaros germânicos. A noção de propriedade coletiva somente existia para aqueles que se aparentavam pelos laços sanguíneos do casamento. Os escravos, como disse, eram capturados no estrangeiro, vindo de outras composições raciais. Cada tribo gêrmanica tinha seu líder, geralmente escolhido por sua habilidade em guerra e governança. Nelas, fazia reuniões onde decisões importantes eram tomadas coletivamente. Havia, entre os líderes e seus seguidores, Gefolgschaft -, perdão, espirrei, disse andy kaufman, levando o lenço ao nariz, sem parar de falar -, era um pacto de lealdade e obediência firmado entre os homens das famílias nas reuniões em que tomavam decisões militares e econômicas.
- andy está falando, tentou explicar morgana, envergonhada com a desavisada chegada de seu amigo, que os germânicos se diferenciavam entre nobres e plebeus, mas também como homens livres e escravos, homens e mulheres. havia patriarcado e havia a propriedade privada sobre a vida humana, e não só a animal, como se quer decretar nos dias de hoje.
- eu considero, interviu mariano, que a proibição de comprarmos escravos vai contra os costumes do nosso povo: os costumes que guiaram a nossa nação à independência do estrangeiro.
- a nossa independência foi comprada por alguns milhões de libras esterlinas, resmungou o professor virílio.
- quero dizer, éã, balbuciou mariano, quero dizer que nosso povo ainda não se acostumou com a liberdade dos negros. nós ainda temos as memórias dos tempos em que seus antepassados eram escravizados nos engenhos e fazendas de cafés.
- mariano, não seja um fascista do caralho, disse andy kaufman - era por meio da tradição oral que se organizava a lei dos bárbaros: a filosofia como gênero escrito era desnecessária, bastavam as runas. as runas eram frequentemente utilizadas como um oráculo, para obter conselhos e previsões sobre o futuro. como no livro das transformações dos chineses, ao sortear as runas, as pessoas buscavam interpretar o significado de cada símbolo a partir de como se relacionavam com a situação da vida em questão. cada runa tinha um significado mágico, que devia ser usado para interrogar a diferentes aspectos da vida, como amor, sorte, proteção, etc. As pessoas acreditavam que as runas possuíam poderes especiais e podiam ser utilizadas para realizar feitiços e rituais.
andy kaufman sentiu-se subitamente cansado, como se as suas forças tivessem se esgotado. quase cai ao chão: quem o segura é d'ângelo, um seminarista de braços fortes. mariano imagina o corpo robusto de d'ângelo oculto por baixo do pano de seu hábito de monge e sentiu inveja de seu tamanho pouco viril.
- quero dizer que somente precisamos valorizar nossos homens de valor. como o nosso d'ângelo, um guerreiro que nos serve tão avidamente. dizem que sua espada já matou mais de uma centena de homens: como é corajoso o homem de nosso povo! como ele destrói os ímpios índios com facilidade! é o sangue de sua lâmina que protege você e sua família dos invasores bárbaros! é gente de bem que protege o seu lar. agradeçam a ele pela sua segurança.
andy kaufman, que não estava acostumado aos palcos, sorria impacientemente, ansioso para estar de novo em casa. teve ainda ouvir mariano dizer que o brasil deveria voltar a invadir as fronteiras e estabelecer campos de trabalho forçado:
- colocar aqueles selvagens preguiçosos, retirar eles de suas cabanas e florestas escuras, e colocar eles para trabalhar. poderemos até instalar universidades e ensiná-los a programar. fazer que aprendem a montar programas de computador. por que não cultivar ali um eco-sistema do nível do vale do silício? seria o nosso vale antropofagista: o nosso vale do salício.
- não sei se andou lendo os jornais, disse andy kaufman, mas o vale acabou de comprar mais uma mineradora nacional,
- sério?, exclamou morgana, incrédula.
- sim. parece que acabaram de comprar a própria siderúrgica do estado, disse leila beatnik, que mexia em seu celular sem prestar atenção na conversa.
- que merda!, urrou paul virílio. atirou seu cigarro no chão e pisou - adeus, vou para casa, e saiu. andy kaufman ficou ainda, depois de todos, examinando o cigarro esmagado no chão.
longe dali, na calada da noite, um rato corria em um aterro sanitário localizado bem ao lado da universidade. nessa noite, depois de cheirar ketamina, andy kaufman sonhou que era um rato correndo pelos esgotos de cosmos. o gado, que pastava, como se fosse uma nuvem, se desfez em outra figura: viu um árabe de turbante trabalhando com o comércio, viu um exército de cristões que pilhavam as terras invadidas para realizar a vontade da providência divina na terra.
em casa, andy kaufman lia um livro: "estrutura, o que forma a base da sociedade, influenciando aspectos políticos, sociais e econômicos da vida de nossa família". fechou o livro e suspirou. estava cansado, como sempre. ou, pelo menos, não tinha vontade de ler nada. lia somente à base de muito café. no fim de semana, cheirava ketamina por uns dois dias seguidos. ao acordar, tomava um anti-depressivo e uma anfetamina para começar o dia. escovava os dentes, sonolento, e sua avó já havia feito café para andy kaufman.
ele agradeceu, encheu a xícara e empanou um pão com manteiga, queijo e presunto com claras de ovo e farinha de mandioca. levou o café da manhã pro quarto e comeu enquanto verificava os emails, mas não havia nada de novo. comeu depressa, e antes de começar a trabalhar no código que o chefe havia pedido para hoje, passou uns minutos lendo sobre séries de conceitos abstratos como monads e functors .
mariano voltava para casa no mesmo passo torto de estudante universitário que passava o dia assistindo aulas e sentado na frente do computador, digitando códigos de programas com a cara iluminada pela luz do monitor. seu corpo passava os dias todo recurvado em uma cadeira de escritório, e todo dia, ao acordar, sentia as costas doloridas do tempo que dormiu no colchão. as noites eram consideravelmente longas, já que mariano ficava acordado até o meio da madrugada, estudando programação e discutindo em fóruns online sobre política. era de um grupo nazista chamado "o sol patriota".
mariano era mais conhecido como macaco lord oken, o autor de um quadrinhos de super heróis que contava as histórias do samurai arrebolero, um justiceiro mascarado vestido com pesados cordões dourados e toda a extensão da pele coberta por um traje de couro sintético preto e justo, que impedia de que vissem sua cor. não sabiam que, no conforto do lar, assim como era o próprio mariano, samurai arrebolero fosse josé biografia, um herói homem e branco que trabalha como escritor de biografias.
quando morgana chegou em casa, viu que macaco lord oken havia publicado uma nova edição da nova animação de samurai arrebolero. na abertura do desenho, vemos algumas cenas estilo animê mostrando algumas aventuras de samurai arrebolero/josé biografia, um almoço na casa de sua velha mãe, um encontro fortuito com seu pai durante uma viagem ao centro da cidade, para comprar uma história em quadrinho, o samurai arrebolero chorando no coro de sua namorada miss jéssica como se fosse uma menininha de seis anos de idade, e também os vilões, como o mago Simbólico Frederico posando com sua varinha mágica, e o engenheiro genético maligno Gilberto Freyre, segurando um bisturi entre os dedos e rindo entre seus enfermeiros. Tocava-se uma canção de rock:
nascido no meio de moinhos, dos campos de trigo, dos currais, vivendo bem a vida de um povoador, de um pioneiro, acampado entre a barbaria e o desconforto do deserto,
na rústica vivenda, mais que primitiva, coberta de sapé, com cinco portas de couce, duas fechaduras, assoalhada a sala, coberta de capim, tudo ladeado de um florido pomar de laranjeiras, pessegueiros e figueiras,
um gaucho foi subitamente arruinado por motivos que, taciturno, calou mesmo de seus chegados.
fugindo ao vexame e ruína em sua própria terra, desceu para se afazendar em paragens longínquas.
as forças imprevistas como as que perdem odisseu no oceano infinito desviaram samurai arrebolero para os rumos pérfidos e sedutores do estrangeiro: se alistou no exército e passou a combater nos desertos encontrados nos limites do território, lá onde a civilização era escassa e vivia-se vulnerável aos ataques dos selvagens.
samurai arrebolero largou sua vida confortável de empregado para expandir o território nacional. praticava o esporte guerreiro contra os bugres, seja em praias diante do mar, seja livre nas florestas, seja aldeado nas reduções jesuíticas. seu sangue é de gente atrevida, belicosa y sen ley: é o predador, o bárbaro invasor de aldeias dos freis espanhóis, que mata e pilha indiferentemente tesouros e pessoas. na mesopotâmia argentina de nossas vidas, fertilíssima terra compreendida entre o rio paraná e o uruguai: rogava a seu deus monstruoso que pudesse cumprir o destino lhe prometido por sua natureza, por sua estirpe e seu instinto, por seu gosto pelo trato com gado e cavalo, aprendido desde menino, que largou a própria terra para seguir o rumor da prata de cataguazes.
nômade ave de rapina, traiu a herança do gado e do cavalo, interrompou seu instinto de sertanista em movimento sem trégua para as minas de prata.
chega tarde, o gaucho arrebolero, e em vez de prata encontro a fome. rapidamente se adaptou: fez do mosquete que matava bugre e padre de pederneira, tomou a lança e o laço, libertou-se da bota grossa e ferrada, que pisava a dureza dos garimpos, e munidos dos calços esporados de campeador de cavalos, viveu sempre em novas viagens, como elemento instável e transitório, nômade aventureiro predador de rebanhos, a desbravar novas terras em busca de mercadoria, estradando a latitude das savanas com foice nesta mão e a espada naquela.
o gaucho maléfico fez das tribos selvagens belicosas desde as paragens lacustres da costa até às coxilhas e planícies do vale uruguaio como uma rude escola de guerra, em que consumiu o fastígio de sua juventude combatendo e matando.
começa enfim o episódio:
- mato bugre com gosto, cara a cara, violento. sou estúpido, injusto, mas nunca covarde. democrático, mato todos como iguais: charruas, minuanos e tapes. másculo entre másculo, me alivio em fêmeas e depois descarto. me agrada a visão de seios nus, a vulva sem penugem e a discreta variedade do fruto selvagem: botocudos, carijós, canes, arachanés e guaianazes.
a morte retruca, impaciente:
- morrerá de tiro de arco e flecha, uma arma menos rústica que seus sentimentos.
alguns dias depois, cavalgando seu cavalo por uma estrada, foi atingido por um tiro disparado de uma árvore alta e, no traumatismo da queda, a morte levou a alma do gaúcho arrebalero para o outro mundo.
- um vastíssimo percurso tive em terra, disse seu espírito antes de subir a escada em caracol para o outro mundo - agora, diante do juiz, não sei se me reserva as pradarias do céu ou os garimpos do inferno, e subiu, ressoando as esporas de suas botas a cada pisada.
ouviu-se um acorde de violão e começou a tocar os créditos sobre a imagem do índio que, com golpes de seu cutelo, separava o crânio do cadáver, para depois prender o corpo sangrando do gaucho arrebalero e levar arrastando para sua tribo.
- o episódio já acabou?, disse Andy Kaufman, irritado com a música irritante.
Olhou a hora: viu que precisava começar a trabalhar. Bolou um beck e voltou ao projeto que precisava terminar.
Morgana desligou o computador, emocionada com o final do episódio. Pegou o telefone e ligou para Mariano:
- achei lindo o capítulo de hoje.
- obrigado, amiga.
- queria dizer que o gaucho arrebalero, apesar de seus pecados, foi um homem bom.
- sim, eu também acho. ele não é como os outros justiceiros mascarados: o SAMURAI ARREBOLERO roubava dos ricos para dar aos pobres.
- sabemos que, pelo fato dele capturar escravos, ele não era do mal: fazia aquilo somente por necessidade econômica.
- sim, concordou o macaco lord oken - vou lhe dizer duas coisas, morgana: primeiro, que escolhi meu pseudônimo para homenagear o autor de Esboço do Sistema de Anatomia, de Fisiologia e de História Natural, de 1821. Tudo que existe, eu acredito fielmente, são variações dos elementos – terra, fogo, água e ar -, ou, mais precisamente, interações da terra maleável com os outros três, que são duros e invariáveis. Os minerais, forma simples bi-elemental, a terra composta com qualquer um dos elementos, sendo cada variação uma forma formas de rocha. As plantas são “tri-elementais”, ou seja, (composta por terra, água e ar, que quando interagindo com o fogo, se torma quadri-elemental, tal qual os animais (feitos da terra, água, ar, e também o fogo, a entidade que criava a vida).
- e em segundo?
- como?
- você disse que escolheu seu nome por conta daquele biólogo racista da alemanha, o lorenz oken. e depois?
- Todas as classificações se desdobram a partir das três mudanças fundamentais – a interação da terra com os outros três elementos -, chegando então, depois de longas séries, nos órgãos superiores, que representam os 5 sentidos, plenamente presentes nos mamíferos. Estes, então, classificam-se conforme a evolução dos sentidos: pele, gosto, cheiro, ouvido, olho. Assim, por exemplo, os paquidermes se dividem em porcos (pele), hipopótamos (gosto), elefantes (nariz), rinocerontes (ouvido) e cavalos (olho). No ápice do Ser chega-se ao homem, dividido por cores e entre as tribos dos continentes: o negro (pele), o marrom ou malaio (gosto), o vermelho ou americano (nariz), o amarelo ou mongol (ouvido) e, finalmente o branco caucasiano, que seria a raça “mais elevada” e de “olhos mais perfeitos” (conforme a página 65 diz).
Escuta-se um barulho: Leila Beatnik entrou na chamada de voz. Disse:
- Em Oken, como em outros autores do século XIX, o racismo não se diferencia do próprio sistema do Mundo. É um desdobramento, uma repetição, das propriedades naturais desses elementos e de suas combinações. O homem é como uma máquina que pode ser definida como superiora a outras máquinas.
- Por isso eu não gosto de andar com inteligências artificiais, disse Mariano.
- Mariano!, disse Morgana horrorizada com o que seu amigo disse - Não fale desse jeito de Andy! Ele é um clone, mas possui sentimentos como qualquer um nascido de pai e mãe.
- Ora, Morgana, ele é produzido em série para trabalhar em uma indústria de extração de minérios. que tenha decidido, por livre e espontânea vontade...
- Ó, ironizou Leila Beatnik, como é maravilhosa a nossa sociedade liberal! as pessoas fazem tudo por livre vontade! nem foi um pirata que capturou Andy Kaufman, levou-o para a costa e o vendeu como escravo.
- Hoje ele faz faculdade no turno da noite. O senhor dele dá a Andy algumas horas de folga para estudar programação.
- Isso porque também está pagando pelos programas que Andy faz e o senhor Larson vende, replica Leila Beatnik, sentada de calcinha e sutiã em seu quarto.
- A Larson tec-tec é uma das melhores empresas de fabricantes de software de segurança digital e física, frisou Mariano, visivelmente irritado - Não esqueça que hoje a tarde a primeira nave espacial programada pela Larson Tec-Tec vai ser lançada para instalar uma colônia extrativista em Marte. Uma série de clones, inclusive a série Kaufman, serão comprados para o trabalho forçado nas minas de ferro marcianas. Aposto que esse daí será só mais um que o senhor Larson irá enviar para as minas lunares.
Mariano desligou.
Na lua de marte, os clones, uniformemente dispostos em fileiras, desciam das cápsulas de transporte, com movimentos mecânicos e olhos baixos.
- extração, fusão, reprocessamento, sussurava Andy Kaufman nº 498.
- como?, quis saber o Andy Kaufman nº 9823, em que se misturou o material genético de Andy Kaufman com o da variedade nipônica Pérola-Flor, muito empregada no fabrico de tecidos em fábricas terres. O resultado alcançado pelos híbridos Kaufman-PF, como eram chamados, no entanto, estava abaixo da média do modelo atual da unidade Kaufman, formada a partir de décadas de seleção do material genético.
No céu acima deles, tempestades magnéticas dançam em padrões caóticos. Profundas e labirínticas, as minas não deixava chegar nenhuma luz de sol para os operários: empregavam lanternas presas em capacetes de metal. Um tubo de borracha era ligado da garganta dos clones até o dispositivo do capacete que continha oxigênio. A cada passo que davam, ouvia-se ecoar o som no vazio das cavernas.
No centro do complexo, a fornalha rugia incessante, alimentada pelo minério que os clones extraíam das profundezas. O processo de fusão era violento, quase ritualístico: o metal bruto era submetido a uma purificação extrema, suas impurezas queimadas até restar apenas o elemento nuclear.
Andy Kaufman, modelo 966, era um dos poucos clones que não eram empregados como escravos siderúrgicos. Depois de ser capturado por uma invasão pirata à fábrica Kaufman localizada na fronteira, foi levado até um ponto do outro continente e vendido como escravo para a Larson Tec-Tec, empresa de software que pagou um curso de programação para 966.
Kaufman 966 estava sentado em sua estação de trabalho, cercado por monitores que piscavam incessantemente com linhas de código que se desenrolavam como serpentes neons. 966 olha a hora: já são duas e trinta e dois.
- Não sinto sono, disse. Aumentou o som de seu computador e a sala foi preenchida pela seguinte música: << - Ryuichi Sakamoto - Merry Christmas, Mr. Lawrence - 1983 >>.
Do meio da música, suave, chegou o o eco reconfortante da cadeira motorizada de Anouk Charpentier, sua avó que ficou da cintura para baixo paralisada depois de um acidente de carro.
Anouk não era de carne, osso ou sangue, mas uma sequência complexa de dados sinestésicos, um programa instalado no cérebro de Kaufman 966 para simular a presença de uma figura protetora capaz de guiá-lo em sua vida.
A Larson Tec-Tec, em sua busca por eficiência máxima, havia projetado os clones-programadores para suportar cargas de trabalho sobre-humanas. Contudo, compreenderam que até mesmo um ser sintético precisava de um ponto de referência emocional, algo que o ancorasse e prevenisse o colapso mental. Foi assim que Anouk Charpentier nasceu – uma simulação emocionalmente satisfatória transcendia a presença impessoal das simples inteligências artificiais. Na relação com Anouk Charpentier, Kaufman 966 compensava muitas frustrações psíquicas, e podia operar sempre nos seus melhores índices de produtividade.
O fluxo de dados continuava constante, e a interação entre Kaufman 966 e a simulação de Anouk Charpentier prosseguia conforme programado. A sub-rotina de simulação de proximidade física foi ativada, gerando a percepção tátil de mãos acariciando os ombros de Kaufman 966.
- Vamos ver o desenho de novo.
Kaufman desligou a música e ligou novamente o vídeo de Samurai Arrebolero.
O escaler afastou-se do navio, em cujo mastro flutuava uma bandeira tricolor. O samurai murmurou consigo: – Adeus, França!
Não tinha porém dentro da alma o alvoroço de Ulisses ao ver a terra da sua pátria. Era antes pasmo e tédio. Encaminhou-se para o primeiro hotel que lhe pareceu conveniente, e ali determinou passar alguns dias, antes de seguir para a casa em que nasceu.
Jantou solitário e triste, com a mente cheia de recordações do mundo que acabava de deixar, e para dar ainda maior desafogo à memória, apenas acabado o jantar, estendeu-se num canapé, e começou a desfiar consigo mesmo um rosário de cruéis desventuras.
Sem parar de massagear os ombros tensos do neto, Anouk perguntou:
- Ainda está sonhando com ratoeiras?
- Flores gigantescas de cores vibrantes e um céu azul intenso criavam um cenário surreal. No centro do jardim, erguia-se um castelo. Passei pelo seu portão sem guardas e, pelos caminhos de seus corredores infinitos, de paredes de pedra úmida e teias de aranha gigantescas, fui parar em uma sala repleta de ratoeiras, algumas tão elaboradas que pareciam mais obras de arte. De repente, senti uma dor aguda no pé. Olhei para baixo e vi que havia caído em uma ratoeira. A dor era insuportável, mas o que mais me assustou foi a sensação de estar sendo observado por algo muito maior do que eu. Olhei para cima e vi um par de olhos vermelhos brilhando no escuro. O gigante moveu sua mão enorme em minha direção e então acordei suando frio.
- jurupari, o devorador de homens bons e maus.
Bem ao seu lado, Andy Kaufman enxerga a imagem do monstruoso jurupari devorando um cadáver.
- Ele está bem ali, ele diz, sem olhar.
- Onde?, perguntou a avó.
- No canto da sala.
- Não estou vendo.
- Talvez esteja mesmo com um problema no meu chip neural.
- Já disse que você deveria ir ao médico.
Corta para o consultório do Doutor Fréderik.
FIM.